Mínimas
Reflexões de dentro da bolha burguesa
[para serem lidas de baixo para cima]
CCCXVIII
"Ao designar alguém pela sua identidade coletiva, um problema se coloca. Sem designação pelo nome próprio, há o apagamento do sujeito com sua história, sua experiência e suas realizações em suma, tudo que constitui sua singularidade. Quando se privilegia o pertencimento a um coletivo, há indivíduo, mas não há sujeito." (AMORIM, M. O identitarismo e seus paradoxos. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-identitarismo-e-seus-paradoxos/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2023-09-14)
Parece-me que, como psicanalista, é difícil não discordar da posição de Marília Amorim. A desigualdade das relações não permite que haja sujeito para todos. Numa sociedade sexista e racializada, para alguns, diante do enfrentamento cotidiano da violência, talvez somente a experiência comunitária permita acessar algo diferente da objetificação imposta. A autora diz: "sem designação pelo nome próprio, há o apagamento do sujeito com sua história", mas numa sociedade racializada geralmente são brancos e homens os que tem direito ao nome próprio e à história pessoal. Na individualização da história a autora promove o apagamento da história de dominação à qual os "identitários" estão assujeitados há séculos. Quantos são os nomes próprios de escravizados e mulheres negras heroínas deste país que foram apagades sob o argumento de que identidade coletiva é coisa dos outros? Os argumentos da autora escondem, como enunciação, argumentos próprios e típicos da identidade coletiva dos brancos: o pacto narcísico e sexista da branquitude.
SETEMBRO 2023
CCCXVII
"A iconoclastia e a proibição da imagem são a raiz do monoteísmo mosaico e profético (assim como do islã). Pois bem, é precisamente a imagem, em suas formas variadas e reproduzíveis ao infinito, que dominará a consciência futura. Desde já, a língua, em particular aquela que leem os jovens, se reduz à legenda das imagens. Em um nível certamente comercial, não filosófico, a predominância judaica, sobretudo nos Estados Unidos, nos meios de comunicação de massa e no cinema, na televisão e na publicidade, é um exemplo ulterior dessa revolta edípica contra o domínio milenar do verbo revelado e legislador sobre o judaísmo." (STEINER, G. [2003] Aqueles que queimam livros. Belo Horizonte: Âyiné, 2020, p. 32)
A revolta edípica à qual Steiner faz referência aqui encontramos em algumas páginas anteriores:
"Tomemos um conceito da psicanálise - esta ciência cristã dos judeus -, a desconstrução é uma revolta edipiana, um homicídio do pai. Ela aspira a demolir o logocentrismo patriarcal que, durante milênios muitas vezes trágicos impôs às tradições judaicas, mas não apenas a elas, seus imperativos prescritivos. É preciso romper uma segunda vez as Tábuas da Lei. Sua terceira versão permanecerá não escrita; a palavra-chave é aqui 'apagar.' Não houve 'verbo no início'; não haverá no final." (Idem, p. 29).
Discordo de Steiner em alguns pontos (sem considerar, aqui, a ideia de antipatriarcalismo da psicanálise). O primeiro deles: o de que a demolição do logocentrismo patriarcal deva ser lido apenas como uma rebelião judaica. Pesa nesta leitura os ranços do mesmo logocentrismo a ser demolido, por não ver fora do europocentrismo branco e letrado, na oralidade de culturas e modos de ser igualmente atacades e exterminades, um secular e resistente antilogocentrismo-patriarcal. (Basta lermos e ouvirmos em Nêgo Bispo seu entendimento histórico do papel contracolonizador do politeísmo.) Cabe interrogar também em que medida a dominação da imagem como revolta contra o verbo (algo com o qual concordo e, este sim, eurocêntrico porque capitalista e neoliberal), implica num enfraquecimento do patriarcalismo. Basta levantarmos, junto com o domínio da imagem, a proliferação de agitadores fascistas e a função politicamente ultradireitista da disseminação de fake news sem lastros (verbo-legais [logos-legis] e metafóricos).
A passagem do domínio do verbo ao da imagem, penso, não tem nada de rebelião. Corresponde à queda do esclarecimento ao mito, como assinalaram Horkheimer e Adorno quando propuseram uma dialética à razão burguesa.
O império das imagens, no qual não conta mais o que quer que seja da verdade, é contra tanto a revelação divina quanto os saberes ancestrais.
O que tem relação com a verdade se transmite por se escrever no corpo e não no papel, e o que se escreve no corpo é prenhe de ancestralidade. Nem tudo que se escreve no livro, se escreve no corpo. Por isso, mentir é mais fácil aos livros. Haja vista a razão burguesa, dita esclarecida, ser a mesma que queima livros.
Há, no entanto, autorxs capazes de fazer do livro corpo, como Conceição Evaristo, Pedro Lemebel e Paul Celan. Para estes a ficção e a poesia não são devaneio ou entorpecimento diante da barbárie, mas, sim, a convocação para o mergulho nela. Algo como um anti-livro, para os parâmetros burgueses de literatura. (São membros, pois, da desacademia de letras.)
A mimese, aquela relegada aos "primitivos", nunca se separou totalmente da verdade; mas o texto, sim, quando, em nome da civilização, se propôs separado da natureza, que ficou relegada a objeto de dominação. A natureza virou coisa controlável e o saber, tecnologia de controle: nesse contexto não há mais corpo no saber. Exemplo disso é o mito (escritura) da expulsão do Paraíso - a considerar as insistência de Nêgo Bispo! -, no qual encontramos já o germe da concepção burguesa de trabalho. Daí advém, também, a cosmofobia do homem branco eurocentrado, incapaz de ter uma relação mimética com a natureza, mas rico em mimetizar sua destruição da mesma: a própria mimese perde corpo, e, com ele, a verdade. Neurotizada, isto é, sob o corpo objetificado, dominado, a mimese deixa de ser arte para ser compulsão à repetição. Talvez possamos pensar, com a ajuda de Steiner, a participação do texto nessa relação histórica de poder:
"Há, no texto escrito, quer se trate de távola, mármore, papiro, pergaminho, osso gravado, rótulo ou livro, certa autoridade (palavra que, na sua origem latina, contém 'autor'). Só a escrita e a transmissão desse modo já implicam uma pretensão ao magistral e ao canônico. A autoridade do texto escrito é evidente nos documentos teológicos, nos códigos jurídicos, nos tratados científicos, nos manuais técnicos; e, ainda que de maneira mais sutil, até mesmo autossubversivas, nas composições cômicas ou efêmeras, está mesmo assim presente em todos os textos de natureza contratual. O autor e seu leitor são ligados por uma promessa de sentido. Em sua essência, a escrita é normativa. Ela é 'prescritiva', para usar uma palavra que, pela riqueza de suas conotações e de seu significado mais profundo, solicita uma atenção particular. 'Prescrever' é ordenar, antecipar e circunscrever (outra palavra densa de significado) um âmbito de ação, de interpretação, de consenso intelectual ou social. 'Inscrição', 'escrita', 'escriba', assim como o conjunto semântico de forte energia ao qual se unem, ligam intimamente, inevitavelmente, o ato de escrever a formas de governança. A 'proscrição', que é um termo afim, proclama o exílio ou a morte. Sob todos os aspectos, mesmo por trás de uma aparente ligeireza, os atos da escrita e sua consagração nos livros manifestam relações de força.
O despotismo exercido por padres, pela classe política, pela lei, sobre os iletrados ou os subletrados, não é mais que a expressão exterior dessa verdade absolutamente fundamental. A autoridade implicada pelo texto, a posse e os usos dele por uma elite letrada são sinônimos de poder. Os tomos encadeados das bibliotecas monásticas medievais têm um quê de inquietantes. A escrita capta o sentido (com são Jerônimo, o tradutor repatria o significado assim como o conquistador retorna com os prisioneiros)." (Idem, p. 41-2).
Parece sempre ter havido, por meio do uso do texto escrito, uma relação de dominação, de força, de governança. Na promessa de sentido da autoridade do texto podemos ouvir a forja da verdade somada à expulsão dx poeta que, por sua vez, não promete outra coisa senão a significância, ou seja, suspensão e multiplicação de sentidos.
Não são poucos os intelectuais que conhecemos e que somos que fazemos uso religioso ou de autoridade de um texto. Nestas ocasiões, não conta a experiência do interlocutor, pois ele não passa do equivalente de um iletrado, um não-iniciado, um sem-percurso. Em que pese o argumento da experiência maior de um lado, por meio da força do texto ela fica surda às diferenças que possam haver do outro lado, pois conta apenas quem tem versus quem não tem o texto como arma.
Este uso do texto pelo texto, como negação de experiências ou como revelação religiosa, gera grandes prejuízos também para quem o domina e o sustenta a qualquer custo:
"O corpus prescritivo e normativo dos escritos canônicos levou a gerações de memorização automática, sem reflexão (o paradoxo é que a escritura tornada autoridade engendra a transmissão oral simulando a oralidade, tornando-a repetitiva). O texto dominador, mas silencioso, não permite a dinâmica vivaz do questionamento, da revisão, da refutação crítica. Sufoca a criatividade da dúvida. Em um sentido radical, a ortodoxia é escrita, seja a Torá ou a lei, ou ainda nessa construção profundamente judaica que é a arquitextualidade do marxismo [e eu acrescentaria: do freudo-lacanismo] e de seus exegetas despóticos. Os textos sacros suscitam comentários sem fim e comentários aos comentários ('a fabricação dos livros é sem fim', diz Qohélet). Mas essa produção interminável é parasitária, secundária e, em definitivo, estéril; como um rio de areia no deserto da Namíbia. Leva a maçantes discussões do pilpoul (aqui também, a presumida dialética da escolástica marxista e pós-marxista deixa entrever seu precedente talmúdico)." (Idem, p. 24-5, colchetes meus).
Como alguém que frequenta os meios psicanalíticos estou seguro de que uma citação como está produzirá uma vergonha secreta e uma indignação defensiva nos membros mais adesos às multiplicações estéreis dos textos de escola.
Mas vejamos, por meio da oralidade, a contrapartida do peso dominador do texto, nos desdobramentos que Steiner faz a partir do Fedro, de Platão:
"A escrita é um arquipélago no meio de uma imensidão oceânica da oralidade humana. A escrita, para não falar dos livros em suas diferentes formas, constitui um caso à parte, uma técnica particular em um conjunto semiótico largamente oral. Dezenas de milhares de anos antes da elaboração das formas escritas a humanidade contava fábulas, transmitia doutrinas religiosas e mágicas, compunha encantamentos ou anátemas. Conhecemos uma infinidade de comunidades étnicas, mitologias sofisticadas e tradições populares naturais sem verdadeira 'literatura'. Não conhecemos nenhuma população, neste planeta, que ignore a música. Sob a forma de canção ou composição instrumental, ela parece ser universal. É o idioma fundamental da comunicação da sensibilidade e dos sentidos. Ainda hoje, as estatísticas da alfabetização devem ser lidas com cautela.
Uma boa parcela da população deve, no melhor dos casos, se restringir a textos rudimentares. Ela não lê livros, mas canta e dança." (Idem, p. 38).
E, mais adiante, Steiner propõe o seguinte:
"A oralidade aspira à verdade, à honestidade da auto-correção, à democracia, por assim dizer, da intuição compartilhada (o 'esforço comum' de F. R. Leavis).
O texto escrito e o livro impedem essa possibilidade." (Idem, p. 43).
E ainda:
"O recurso ao escrito, ao texto 'escritural', enfraquece a força da memória. O que está escrito e arquivado - os 'bancos de dados', a 'memória' dos nossos computadores - não precisa mais ser memorizado. Uma cultura oral se nutre da rememoração incessantemente renovada: um texto ou uma cultura do livro autorizam (mais uma vez o termo possui diversos significados) todo gênero de esquecimento. Essa distinção vai ao coração da identidade humana e da civitas. Onde a memória é dinâmica, onde ela é instrumento de transmissão psicológica e comunitária, a herança é atualizada, tornada presente. A transmissão das mitologias fundadoras, dos textos por milênios sagrados, a capacidade do bardo ou do cantor de fábulas de recitar epopeias imensas sem nenhum escrito atestam a memória potencial tanto de quem recita como de quem escuta. Saber 'de cor' - mostrando a força e a riqueza de sentido dessa expressão - significa ser possuído, deixar o mito, a prece, o poema se ramificar e se expandir em nós, modificar, enriquecer nossa paisagem interior enquanto percorremos nosso caminho. Por sua vez, eles se modificam e se enriquecem graças à nossa viagem pela vida." (Idem, p. 43-4).
Por que nós, povos dos livros, resistimos tão fortemente aos saberes daqueles tantos que cantam e dançam? Mais do que isso: corremos para colocar em livros e bulas papais razões as mais diversas para destruí-los ou, no mínimo, silenciá-los.
Steiner sustenta a tese de que os judeus sobreviveram a séculos de ataques por causa da cultura centralizada no trabalho do texto. Mas lembremos que os povos da oralidade estão aí há séculos, atualizando suas heranças, resistindo sem texto e sem escrita, mas jamais sem sabedoria ou história. E o que eles dizem ter em comum? Algo que se transmite por se escrever e se atualizar no corpo, como afeto, como mimese, como saber real: a ancestralidade.
Por que nós, povos do livro, fazemos tão pouco caso disso? Corremos dizer que são "primitivos" perto de nossos ideais de uma colônia interplanetária. Sabemos bastante sobre os sóis das galáxias vizinhas, mas estamos destruindo nossa Terra, mesmo que os povos que cantam e dançam, que pouco sabem sobre astrofísica e insistem em ouvir as figuras míticas de seus delírios lisérgicos, não cessem de gritar sobre os erros seculares que estamos cometendo.
O que aconteceria se deixássemos a elxs que dissessem o que é sintoma, o que é neurose, o que é loucura?
Creio que teríamos que analisar séculos de destruição do homem branco eurocêntrico. É disso que é feito nosso inconsciente: a catástrofe única vista pelo Angelus Novus, traumas acumulados de destruição produzida pelos povos dos livros - minoria, nessa imensa humanidade de transmissão oral.
"Então vamos destruir os livros!" Ora, por que buscar assim na história dos povos dos livros a resposta?
(Lembremos, afinal, o quanto, desde o Index do catolicismo romano até a censura dos governos militares latino-americanos, a democratização da leitura foi considerada subversiva e o objetivo de reservá-la apenas aos dominadores ainda se faz presente. Aliás, basta lembrarmos de quantos serviçais iletrados são necessários para manter-se, aos filhos privilegiados da burguesia, as condições necessárias à leitura.)
Nós não temos, porém, a resposta, pois ainda pouco sabemos cantar e dançar.
(Talvez não seja à toa a tamanha falta de corpo dançante e cantante entre intelectuais e cientistas. Eles só exercitam o "cabeção" [o verbo/logos], de modo que não são capazes de entender o que é ter/ser corpo.)
O que na clínica chamamos de white people problem é o tédio do homem expulso do Paraíso. A melancolia, a acédia, outros nomes para o tédio próprio dos sem desejo, é o estado de quem não tem mais a mimese como recurso, o homem sem poesia: homo sine poetica.
Antes de terminar, é importante mencionarmos, ao menos, a hipótese com a qual Steiner conclui seu incômodo ensaio. Assim ele a propõe:
"Depois de quase meio século de ensino e de escrita, de uma vida de leituras e releituras contínuas (ainda não havia completado seis anos quando meu pai me iniciou na música de Homero, nos adeuses de João de Gante em Ricardo II, na poesia de Heine), uma hipótese psicológica me assombra - não há outra palavra." (Idem, p. 67).
Ei-la:
"O sábio, o verdadeiro leitor, o escritor, está saturado da terrível intensidade da ficção, é formado para responder ao mais alto grau de identificação com o textual, com o fictício. Essa formação, esse enfoque nas terminações nervosas e nos órgãos de empatia - cujo alcance não é jamais ilimitado - pode mutilá-lo, separá-lo daquilo que Freud chamava de 'princípio da realidade'. É nesse sentido paradoxal que o culto e a prática das humanidades, da bibliofilia e do estudo podem chegar a desumanizar. E, por causa disso, talvez nos seja mais difícil responder ativamente à realidade intensa das circunstâncias políticas e sociais, e nos engajar plenamente." (Idem, p. 69).
De um lado a dominação e o recalque da mimese como modo de estar no cosmos; de outro, o retorno do recalcado, dominando aquilo que o dominou: a mimese cega ao ficcional - a mutilação dos órgãos da empatia - a feliz apatia do beletrista e de parte considerável dos povos do livro.
Consideremos que não apenas o veneno ficcional, mas também a sofisticação teórica produz da mesma intoxicação desumanizante, cujo efeito é a dificuldade de "responder ativamente à realidade intensa das circunstâncias políticas e sociais, e nos engajar plenamente".
O inconsciente comum do homem burguês eurocêntrico, o homo sine poetica, precisa dar mais lugar ao canto e à dança, ou será dominado pelo tédio da ausência dos mesmos ou pelo ódio que a eles endereça.
JULHO 2023
CCCXVI
"É, evidentemente, confuso o processo psicológico da ordem do inconsciente pelo qual os negros passam. Ser sujeito no outro significa não ser o real do próprio corpo, que deve ser negado para que se possa ser o outro. Mas essa imagem de si, forjada na relação com o outro - e no ideal de brancura - não só não guarda nenhuma semelhança com o real de seu corpo próprio, mas é por este negada, estabelecendo-se aí uma confusão entre o real e o imaginário. Guardadas as devidas proporções, essa confusão leva o negro diante de um processo muito próximo do que se conhece por despersonalização, que é vivenciado de uma forma crônica como consequência da discriminação e que, estranhamente, não o leva às últimas consequências, ou seja, à loucura. Esse processo despersonaliza e transforma o sujeito num autômato: o sujeito se paralisa e se coloca à mercê da vontade do outro. Assim fragilizado, envergonhado de si, ele se vê exposto a uma situação em que nada separa o real do imaginário. As fantasias estão simultaneamente dentro e fora. É justamente porque o racismo não se formula explicitamente, antes sobrevive num devir interminável como uma possibilidade virtual, que o terror de possíveis ataques (de qualquer natureza, físicos ou psíquicos) por parte dos brancos cria para o negro uma angústia que se fixa na realidade exterior e se impõe inexoravelmente." (NOGUEIRA, I.B. Cor e inconsciente. In: KON, N.M., SILVA, M.L. da e ABUD, C.C. O racismo e o negro no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2017, p. 124.)
Este longo e denso trecho de um texto de Isildinha Baptista Nogueira traz muitas reflexões clínicas de fundamental importância.
A autora mostra como o racismo participa da constituição subjetiva.
Ou seja, esta constituição do sujeito não pode ser abstraída em favor de um suposto sujeito universal sem que interroguemos a dominação que aí se esconde por favorecer aqueles para quem a imposição de uma diferença não se coloca. A forma supostamente universal da constituição do sujeito é a forma do homem cis branco, numa sociedade resultante do racismo colonial e sexista. A mera aplicação desta forma particular universalizada ideologicamente a grupos subalternizados já constitui, por parte da psicanálise como teoria e instituições que a sustentam e por parte dos psicanalistas que a praticam - brancos em grande maioria -, uma gigantesca contribuição com a ideologia do branqueamento.
As concepções universalizadas da psicanálise oferecem aos negros algo deste ser no outro branco que, como ideal de eu, se impõe social e historicamente.
O real do próprio corpo, corpo preto, e a imagem ideal imposta de brancura, negam-se mutuamente gerando, em função das constantes práticas discriminatórias, o que a autora chama de um processo muito próximo da despersonalização. É importante notar que a autora define como confusão essa relação entre real do corpo e imagem branqueada de si, pois, permite-nos pensar a produção de uma certa continuidade entre real e imaginário que, sabemos bem, tem efeitos melancolizantes quando não há ou está impedida, por alguma razão, a participação do simbólico como condição para diferenciá-los. Vale dizer: a ideologia do branqueamento talvez tenha justamente por estratégia a produção desta continuidade entre real e imaginário ("ele se vê exposto a uma situação em que nada separa o real do imaginário"), na medida em que mantém discursivamente universalizadas - da colonizadora democracia racial ao sujeito da psicanálise - as "condições" social e historicamente oferecidas a pessoas brancas e não-brancas (e também homens e não-homens, héteros e não-héteros, não-deficientes e deficientes, etc). É nesse sentido que importa entender quando a autora diz "é justamente porque o racismo não se formula explicitamente, antes sobrevive num devir interminável como uma possibilidade virtual, que o terror de possíveis ataques […] por parte dos brancos cria para o negro uma angústia que se fixa na realidade exterior e se impõe inexoravelmente" como revelação das táticas de suspensão do simbólico: não explicitar a formulação do racismo, mantê-lo sempre como interminável ameaça, como fonte de angústia. Os efeitos dessa estratégia também podemos ler com Isildinha: "transforma o sujeito num autômato: o sujeito se paralisa e se coloca à mercê da vontade do outro".
Pelo que a autora deixa tão nítido, a não formulação explícita do racismo é o que causa o fato das fantasias estarem "simultaneamente dentro e fora". Enquanto a psicanálise e nós psicanalistas não compreendermos a importância clínica de formular explicitamente o racismo, continuaremos tratando por fantasia o que é estratégia de dominação e, com todas as letras, contribuindo com ela. O silêncio diante da circunstância em que se faz possível a formulação explícita do racismo já é, em si mesmo, racista, ao menos por omissão diante da violência. Apontar o racismo é recompor o simbólico como anteparo para desfazer a confusão entre real e imaginário. Não podemos mais acompanhar em silêncio o sujeito negro seguir negando o corpo próprio e tomando a brancura por imagem de si, mas tal mudança implica dar-se conta do quanto e como o racismo (e outros "ismos") faz parte do inconsciente, seus mecanismos, produções e formações - muito embora tanta resistência da psicanálise em percebê-lo (e sabemos o porquê). Noutros termos: em que medida a formulação explícita do racismo como parte do tratamento clínico psicanalítico não separa fantasia de dominação objetiva e age como S a separar I de R?
ABRIL 2023
CCCXV
As considerações da História como trauma, tal como nos inspiram as teses sobre o conceito de História de Walter Benjamin, em especial na alegoria da nona tese, nos colocam questões-feridas que não se deixam fechar, tais como o cotidiano como catástrofe, a necessidade e impossibilidade de representação dos choques, a condição de letra do trauma, o excesso de real que o constitui, a morte da morte e a perda do sentido da vida, etc.
Estas questões são desenvolvidas no artigo de Márcio Seligmann-Silva "A História como trauma", cujos trechos trago para refletir aqui: "A experiência prosaica do homem moderno está repleta de choques, embates com o perigo." (SELIGMANN-SILVA, M. A História como trauma. In: NESTROVSKI, A. e SILIGMANN-SILVA, M. orgs. Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p. 73).
O século XX marcou uma virada no cotidiano da humanidade. O que antes podia ser experimentado como evento ocasional passou, com a modernidade, para o registro do cotidiano.
O progresso, a tempestade que bate nas asas do anjo da História, é o mesmo que produz e acumula as catástrofes que deixam atônita a figura pintada por Paul Klee, na alegoria de Benjamin. Neste sentido, a Shoah é o ponto onde culmina o terrível encontro entre progresso tecnológico e catástrofe:
"A Shoah é o superlativo por excelência da história. Enquanto morte de milhões de pessoas realizada sob uma organização industrial a Shoah abala a visão relativista da história tanto por causa da sua unicidade como também devido à impossibilidade de se reduzir esse evento ao meramente discursivo. Para Friedlander não se pode afirmar que a Shoah é um fato linguístico: Ela é não apenas real, mas, como ainda veremos mais de perto, representa o real por excelência. […] ele [Friedlander] vê na Shoah um objeto que escapa à representação justamente devido ao seu 'excesso': 'esse excesso', ele escreve, 'não pode ser definido, exceto via uma afirmação geral sobre algo 'que deve ser posto em frases mas não pode selo'.' O historiador da Shoah fica preso a esse duplo mandamento contraditório: por um lado a necessidade de escrever sobre esse evento, e, por outro, a consciência da impossibilidade de cumprir essa tarefa por falta de um aparato conceitual 'à altura' do evento, ou seja, sob o qual ele poderia ser subsumido." (Idem, p. 77-8).
Diante de choques gigantescos como a Shoah, mas também como a caça às bruxas, o genocídio dos povos originários, a diáspora africana, o anjo da História se vê diante do real por excelência.
Conceber a História como trauma implica em fazer falar em cada um o anjo da História. Walter Benjamin carregava o seu e tentou fazê-lo falar, de diversas formas.
A angústia, o pânico e a depressão são "síndromes" contemporâneas ou modos pelos quais nos encontramos com o anjo, atônito com o acúmulo de ruínas, que habita também em nós. Corremos aos remédios e às drogas para entorpecer nosso anjo ou tentamos virá-lo de costas para a História, convencendo-o de que o progresso nos promete um lugar seguro e limpo no refúgio da colônia espacial.
E como ouvir o que o anjo não diz? E como fazê-lo falar seu impossível dizer?
Antes de tentarmos uma resposta a essas questões, vejamos o que Seligmann-Silva diz sobre o conceito de trauma:
"O trauma é justamente uma ferida na memória. […] O trauma, para Freud, é caracterizado pela incapacidade de recepção de um evento transbordante - ou seja, como no caso do sublime: trata-se, aqui também, da incapacidade de recepção de um evento que vai além dos 'limites' da nossa percepção e torna-se, para nós, algo sem-forma. […] Uma outra característica da sintomatologia do trauma, extremamente importante para a reflexão sobre a representação de catástrofes e, mais especificamente, para uma teoria da representação da Shoah, é a literalidade da recordação da cena traumática." (Idem, p. 84-5).
Enquanto ferida na memória o trauma, como destaca Seligmann-Silva, transborda as possibilidades de representação. E se daí resulta uma compulsão à repetição é justamente porque, embora impossível, esta representação se faz, ao mesmo tempo, necessária.
O sem-forma do evento que fere a memória, impõe, para que se dê a ele alguma mínima-forma, que se revisite a cena traumática o quanto for para isso necessário.
Mas interessa-nos neste texto, sobretudo, o que o autor extrai da relação formulada por Freud entre o trauma e a fantasia nos desdobramentos da teoria do trauma. Vejamos:
"Esse conceito de trauma mostrou-se eficaz para a atual teoria da história (e da literatura) justamente porque problematiza a possibilidade de um acesso direto ao 'real', a saber: revoluciona a concepção do mesmo. Freud não chegou a abandonar totalmente o papel da etiologia do trauma, ou seja, a tentativa de reconstrução da cena traumática 'como algo que, de fato, ocorreu num espaço e tempo delimitáveis', mas ao longo de sua teoria procurou relacionar essa etiologia com uma psicanálise voltada para o 'fantasma' dessa cena. Em vez de uma visão positivista do evento como um fato que estaria 'ao alcance das nossas mãos', a concepção da realidade, sob o prisma do conceito de trauma, possibilitou aos intelectuais - após décadas de crítica da representação nos termos que vimos acima - uma 'volta à história' sem os riscos do positivismo ou do historicismo." (Idem, p. 85-6).
Seus desdobramentos nos levam ao conceito de real em Lacan:
"Lacan transpõe para a psicanálise o sentimento moderno, cotidiano, de que o real gerar rupturas; ele é originalmente malvindo. Para Lacan, o registro do simbólico - o Eu, vale dizer - nasce apenas através do trauma. Existe algo como uma 'alienação essencial'. Na base das nossas trocas simbólicas localiza-se o que ele denominou de trou réel." (Idem, p. 86).
A leitura que Seligmann-Silva confere ao furo real de Lacan não é fundada no purismo estruturalista, mas fortemente atravessada pela concepção da realidade como trauma, do cotidiano como lócus de choques e da modernidade como tempo e espaço de acúmulo de ruínas que transbordam a representação. O real como impossível não é sem história, mas é a própria História enquanto trauma. Se o próprio Freud precisou ir além do evento traumático presente e paupável na vida do sujeito, se ele buscou nas proto-fantasias o evento chocante, é porque, na leitura de Seligmann-Silva, uma concepção de realidade diretamente assimilável e historicizável não daria conta de explicar o impossível e o necessário apontado pela compulsão à repetição. O real escapa, mas a fantasia/fantasma da cena traumática não é abandono da História - como se ela fosse redutível ao imaginário ou ao novelesco -, mas retorno à ela, na medida em que ela se constitui por esta dialética entre catástrofe e representação. Seligmann-Silva não concebe a História como roupagem imaginária dos discursos, como o fazem alguns lacanianos, mas parece colocá-la na impossível e necessária intersecção entre real (catástrofe) e simbólico (representação). É nessa interseção que voltamos a encontrar o que, no trecho acima, aparece como literalidade da recordação da cena traumática: o trauma como letra:
"[…] enquanto um black role (na expressão de Sidra Ezrahi) que vai além dos limites da linguagem e do humano - ao menos de um humano desejado - a Shoah resiste na sua literalidade pós-traumática à estratégia de representação das metáforas. Por outro lado, não há representação sem metáfora; se o Holocausto é incomparável… como representá-lo? Mais do que isso: a metáfora, assim como o plot, dá um indício de comensurabilidade. O consolo que o testemunho (também) visa só pode se dar via comparação. A retórica analógica do 'como' não funciona para a descrição da Shoah porque o seu registro, como todo registro da cena traumática, é o do absolutamente literal." (Idem, p. 88).
Diante da impossibilidade da metáfora o trauma se faz letra. Seligmann-Silva nos alerta, tomando por caso extremo o holocausto (em grego: ὅλος - "todo" - καυστον - "queimado") ou Shoah ("catástrofe" em hebraico), para a dimensão daquilo que tem registro (S1), mas não possibilita a substituição metafórica (ou deslizamento metonímico, acrescento - não permite quaisquer relações com S2, tais como S1/S2 ou S1->S2). A lâmina fere e marca o corpo assim como o choque fere e marca a memória. A letra é a marca, o corte na memória. O real da letra do trauma não precisa ser lido como resistência à quaisquer teorias da História se considerarmos o trauma como algo que não se constitui sem história. A história não está fora do trauma, senão que é, ela mesma, história congelada, dentro do próprio trauma. O trauma não se deixa desdobrar numa linearidade temporal historicista uma vez que, nele, o choque tirou do tempo o seu devir. O trauma é o anjo que não voa porque foi arrastado pela tempestade do progresso. É preciso que ele fale do que vê, que dê seu testemunho para que possa voltar a voar e para outra direção que não a da tempestade.
Nas palavras de Seligmann-Silva:
"[…] a historiografia do Holocausto pôs em questão o dogma da neutralidade da escrita da história: ela assume-se agora como trabalho transferencial, como necessidade de dominar um trauma. Não pode haver mais espaço para uma antiquada objetividade dentro desse registro da história como trauma. O historiador trabalha no sentido da libertação do domínio de uma imagem do passado que foge ao nosso controle; esse passado deve ser incorporado dentro de uma memória voltada agora também para o futuro - dentro de uma memória que possibilite a narração, diria Benjamin. A 'passagem' do 'literal' para o 'figurativo' é terapêutica." (Idem, p. 89).
E mais adiante ele resume o seguinte:
"Por um lado tanto o testemunho deve ser visto como uma forma de esquecimento, uma 'fuga para frente', em direção à palavra e um mergulhar na linguagem, como também, por outro lado, busca-se igualmente através do testemunho, a libertação da cena traumática. […] libertação significa luta pela sobrevivência, pelo ver-se livre do passado e por liberar esse passado da sua terrível presença e literalidade." (Idem, p. 90).
Forçar figuratividade no que é da ordem da letra do trauma; mergulhar na linguagem a crueza real do choque; liberar o passado e se libertar dele; eis o caminho do trabalho transferencial proposto por Seligmann-Silva ao historiador benjaminiano. Assim como o autor defende em profundidade que historiadores possam ver o que há de furo real na História, como modo de romper com a ingenuidade do dogma da neutralidade da escrita da história, defende também, mas talvez sem o saber, que analistas possam ver o que há de História no que chamam de furo real, de modo a romper com a ingenuidade ideologicamente sustentada presente nas concepções de um sujeito universal da linguagem, para o qual a História - leia-se: o real da dominação e das lutas contra ela que a História põe em movimento - seria um dispensável coadjuvante, quando não uma presença incômoda.
Nossos corpos são marcados por catástrofes geracionais. Por meio dos racismos, machismos e misoginias, lgbtqia+fobias, heterocisnormativismos, classismos que chamamos de estruturais, chegam-nos um acúmulo de ruínas. Quando começaremos a dar ouvidos ao inconsciente como lugar que esconde também um anjo de olhos escancarados, boca dilatada e asas abertas?
FEVEREIRO 2023
CCCXIV
Em seu Psicanálise & Homossexualidades, Thamy Ayouch propõe revisitar dialeticamente a relação entre simbólico e imaginário na psicanálise:
"Primeiro, cabe repensar a mistura indissociável do Simbólico com o Imaginário. As figuras habituais do Simbólico - 'Pai', 'Mãe', 'Nome-do-Pai', ou 'Falo' - ainda que sejam definidas fora das mudanças sociais, carregam uma irredutível concepção imaginária das relações sociais próprias a uma época e uma cultura. […] Se o primeiro Lacan dá primazia ao Simbólico e denuncia as captações imaginárias como ilusões, aqui, é através do Imaginário que pode surgir uma subversão do Simbólico considerado como lugar da repetição fixa, idêntica, da pulsão de morte." (AYOUCH, T. Psicanálise & Homossexualidades: teoria, clínica, biopolítica. Curitiba: CRV, 2015, p. 88).
Quando se retira das figuras do simbólico sua origem imaginária, cria-se com elas pedaços enrijecidos de imaginário que, transpondo em muito sua dimensão de posição e lugar, dá consistência para sentidos socialmente impostos como se universais fossem. Dizer que o Pai é simbólico como se isso bastasse, reduzindo a história do conceito e a materialidade do poder nele investido por esta história como dimensões imaginárias que atrapalham a pureza das relações estruturais, implica em retirar estas próprias relações do real que as atravessa quando nos deparamos, por exemplo, com as violências cotidianamente praticadas em nome do patriarcado que, de modo não menos inconsciente, muitas vezes, marca corpos, se transmite e carece de interpretação, crítica e transformação urgentes e há séculos.
As relações estruturais, assim isoladas,recaem, como necessário cego que se repete por ter dado as costas à contingência de que proveio, na mesma gosma imaginária do qual pretenderam se limpar. Universalizar o que é de uma época e de uma cultura como se de universal se tratasse é transformar a gosma ideológica do pensamento colonizador em puro cristal da ciência endurecida. Mas, uma vez que a aqueçamos, derreter-se-á revelando aquilo de que é feita.
Sigamos com Ayouch:
"O problema aqui consiste em considerar estruturas historicamente situadas da paternidade como estruturas linguísticas, elementares, da inteligibilidade. No contrário, Judith Butler propõem conceber as posições simbólicas como normas cuja contingência foi ocultada por uma reificação teórica. O Simbólico aparece como sedimentação de práticas sociais. […] Contestar a autoridade do Simbólico não implica voltar ao reino do Imaginário, mas afirmar que a norma é aberta, na sua inscrição temporal, e, portanto, suscetível de ser deslocada e subvertida desde o seu interior. […] E na base da linguagem está um Simbólico social, que provém da sedimentação de práticas sociais. São aqui processos de materialização e de poder […]" (idem, p. 89).
O simbólico ordena estruturalmente o imaginário, mas ao preço da reificação das relações de poder presentes no instante da sedimentação simbólica do imaginário. As posições extraídas contingencialmente no instante social e histórico no qual se forçou simbólico no imaginário, passam a ser estruturas de poder ocultadas. Como sugere Butler, citada por Ayouch, o que era simbólico se torna norma social cuja contingência foi ocultada por reificação teórica - reificação esta que, por sua vez, é um processo de materialização do poder, longe de ser tão só e abstratamente relações estruturais de linguagem. E vale insistir que devemos considerar nesta materialização não somente o que de imaginário escapou ao simbólico, mas também o que de real afetou/marcou o corpo e se transmitiu entre gerações na forma de violências objetificadoras que também escapam ao simbólico e, neste caso, igualmente ao imaginário: há, no que chamamos de práticas sociais que se sedimentam, acontecimentos que são muitas vezes, desde a experiência subjetiva e singular, traumáticos.
Concluo com a força crítica de Ayouch no seguinte trecho:
"Quando a 'diferença de sexos' é ontologizada, a teoria psicanalítica retoma a teoria sexual-infantil do seu autor. Reproduzindo, no seu movimento, o olhar do menino vienense do século XIX que, face a uma dessemelhança anatômica, introduziu a alternativa de ter ou não ter, a teoria efetua uma verdadeira captação imaginária. As categorias de gênero e os estudos de gênero revelam que esta percepção interpretativa da realidade já está inscrita nas condições históricas de valorização do masculino e depreciação do feminino próprias à Viena burguesa do final do século XIX. A interpretação da sexuação como posse ou privação do pênis carrega um imaginário coletivo e subjetivo: fica historicamente situada numa perspectiva falocêntrica que desejaríamos que fosse diferente hoje em dia. Endereçar uma crítica psicanalítica à psicanálise consiste então em desconstruir a pretendida imutabilidade das categorias psíquicas de homem e mulher, mãe e pai, feminino e masculino." (idem, p. 90).
(E quanto a nós, que pretendemos levar adiante esta crítica, cumpre-nos não somente ouvir e promover na clínica a desconstrução da heterocisnormatividade compulsória, falocêntrica racista e colonial como também as formas traumáticas com que foram incutidas nos sujeitos.)
DEZEMBRO 2022
CCCXIII
Em reportagem para o TIB de 19 de novembro de 2022, comentando o filme "Argentina 1985", de Santiago Mitre, no qual Ricardo Darín interpreta o promotor Julio Strassera, André Uzêda diz o seguinte:
"Por aqui, naquele mesmo ano de 1985, enquanto os argentinos mergulhavam nos arquivos das prisões ilegais, esmiuçavam as torturas nos porões do regime e buscavam o paradeiro de mais de 30 mil desaparecidos, nós, bem à brasileira, encaminhávamos uma transição civil pelo voto indireto, sem expurgar o entulho de 21 anos de patrimonialismo das casernas e, sobretudo, escondendo as gravíssimas atrocidades de agentes do estado,ancoradas na Lei Geral da Anistia, de 1979. Por covardia, sonegamos um encontro com nosso passado e, em ato contínuo, abrimos perigosas brechas para sua repetição como rima corrosiva no futuro. Tivesse havido um criterioso ajuste de contas
com os militares, seria impensável o então deputado do baixíssimo clero Jair Messias Bolsonaro, no processo de abertura de impeachment contra Dilma Rousseff, em 2016, citar orgulhosamente o torturador Brilhante Ustra — ele mesmo, realocado como adido militar no governo Sarney e, até hoje, mesmo revelado o facínora que foi, ser razão para que suas filhas recebam pensão do estado brasileiro." (Uzêda, A. O Brasil precisa sim ser a Argentina. Newsletter do TIB. Disponível em https://racismoambiental.net.br/2022/11/19/o-brasil-precisa-sim-ser-a-argentina-por-andre-uzeda/. Acesso em 25 de novembro de 2022).
Uzêda identifica, acertadamente ao meu ver, neste trecho, a repetição daquilo que não foi efetivamente simbolizado em nosso passado. A ausência brutal da nomeação das violências históricas impingidas sobre um povo e a negação de qualquer ato reparador da justiça não é sem efeitos sobre as tentativas de ligação pulsional disso que se repete.
Deveríamos estar um pouco mais atentos às chamadas coincidências entre fatos marcantes. Seria importante nos autorizarmos a interrogar possíveis laços inconscientes entre eles.
Será coincidência, por exemplo, que uma das cenas mais significativas do golpe de 17 de abril de 2016 tenha sido o voto pelo impeachment do deputado federal Jair Bolsonaro, que marcou, no tecido do corpo social, o nome do torturador da presidenta Dilma Rousseff que institui a Comissão Nacional da Verdade de 2011 a 2014 que recomendou a responsabilização criminal, civil e administrativa de 196 de uma lista de 377 violadores de Direitos Humanos? Não teria sido o ato traumatizante de Bolsonaro o que despertou a extrema direita fascista brasileira (portadores do complexo de Ustra)?
E será coincidência que este mesmo deputado lançaria sua pré-candidatura à presidência em sua filiação ao PL em 7 de março de 2018, sete dias antes do assassinato brutal de Marielle Franco, uma das principais defensoras dos direitos humanos na política brasileira e grande lutadora pela desmilitarização da política pública de segurança?
Lembremos: hoje, 29 de novembro de 2022, somam-se 1721 (um mil, setecentos e vinte um dias) do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, sem que saibamos o nome do mandante e o motivo.
Há uma dialética entre o gigantesco esforço político de suspensão do recalque histórico da verdade e uma força descomunal no sentido do apagamento da mesma. Sabemos de qual destes dois lados está nossa covarde lei da anistia, assinada pelo ditador João Figueiredo em 28 de agosto de 1979 e que diz o seguinte:
"É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares." (Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm)
Para confrontar o esquecimento imposto por esta lei, citemos o compromisso proposto pela Agenda Marielle Franco para as candidaturas a ela signatárias:
"Resgatar e honrar a memória e os passos das que vieram antes, celebrando e homenageando figuras ancestrais que estão conectadas a esses povos originários e fomentando uma cultura política que esteja aberta para a inovação nas linguagens mas não para o apagamento da nossa história." (Agenda Marielle Franco. Rio de Janeiro: Instituto Marielle Franco, 2020, p. 14. Disponível em: www.agendamarielle.com/)
Nossa democracia continuará assentada no esquecimento enquanto não dermos voz e alguma justiça aos nossos traumas históricos. Esconder os crimes e vê-los se repetir é um mal-dito caminho do qual só conseguiremos sair mediante alguma inscrição simbólica da verdade. A difícil é importantíssima sustentação institucional dos resultados da eleição presidencial deste ano é um exemplo desta inscrição: devolveu o medo e a angústia aos golpistas e alienados da extrema direita, retirando do silêncio grande parte da população democrata que se encontrava silenciada sob o peso dos efeitos perversos do laço fascista - prova de que já não havia e, de certo modo, ainda não há plenamente, lugar seguro para a oposição política.
A frase cômica de um ministro do STF a um destes extremistas - o "Perdeu, Mané! Não amola!" do Luís Roberto Barroso - é um condensado cujo riso provocado carrega o alívio de que a verdade se inscreveu institucional e democraticamente.
A luta política da esquerda continuará, pela PEC da Transição, contra o teto de gastos e o orçamento secreto, contra as chantagens emocionais do dito mercado etc, mas um passo importante foi dado na direção da resistência ao fascismo. Uma anistia, qualquer que seja, aos golpistas seria negar novamente a inscrição possível da verdade.
Aquilo que a CNV começou em 2011 precisa ser levado adiante em diversos níveis. Foram necessários quase 37 anos para que o atestado de óbito de Vladimir Herzog fosse retificado podendo nele constar que sua morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército – SP (Doi-Codi). Sustentemos a esperança de que, antes de completar 5 anos, venha à luz a verdade sobre o crime contra Marielle e Anderson.
Do mesmo modo, precisamos de 6 anos para que algo da verdade aparecesse em setembro deste ano quando a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão de Combate à Corrupção homologou o arquivamento do inquérito das pedaladas fiscais contra Dilma Rousseff e Guido Mantega, sob a justificativa de que:
"[..] tanto o Tribunal de Contas da União quanto a Corregedoria do Ministério da Economia afastaram a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos que concorreram para as pedaladas fiscais do ano de 2015, seja em virtude da constatação da boa-fé dos implicados, seja porquanto apenas procederam em conformidade com as práticas do MPOG (Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão)" (retirado de matéria de Eduardo Reina, de 22/09/22, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-22/mpf-arquiva-inquerito-pedaladas-ligadas-impeachment-dilma)
Ou seja: inscreveu-se democrática e institucionalmente que o impeachment de 2016 foi verdadeiramente um golpe. (E, aqui, nem vou tocar no lawfare da Operação Lava Jato contra Luiz Inácio Lula da Silva.)
Precisamos fazer da verdade algo bem mais barulhento no Brasil. Os dominadores deste país, desde a invasão e colonização - basta tomarmos as análises decoloniais da carta de Pero Vaz de Caminha, por exemplo -, inventam discursos para deixar no silêncio, recalcado mesmo, o saber que os dominados têm sobre suas mutilações e genocídios e que transformam em voz de indignação, luta e resistência quando conseguem sair da objetificação que lhes é imposta.
Desde o início da história deste país as fake news são instrumentos de colonização e dominação, sem jamais terem se transformado em manifestações de liberdade de expressão ou argumentos de debate democrático. Por isso, o discurso do deputado federal enaltecendo um torturador no golpe contra Dilma, não foi uma provocação política, uma irreverência de mal gosto ou gesto de um tresloucado. Foi, como dobra histórica do que se repete, um violento ataque antidemocrático, eco ruidoso do AI-5, e que ainda se estende, ecoa, seja de modo terrorista ou delirante, nos bloqueios de estradas e portas dos quartéis.
Postas numa dialética histórica e materialista, as fake news não são somente exemplares cibernéticos de guerra de informação, mas a forma tecnologicamente mais avançada do discurso colonial. Não vamos combatê-las somente com o estudo e o domínio, por parte da esquerda, dos algoritmos e das pautas das redes sociais - o janonismo cultural. Precisamos urgentemente estudar e mostrar os mecanismos colonizadores presentes não somente em seus conteúdos, mas, principalmente, em suas formas, suas lógicas.
CCCXII
"A sujeição deve igualmente ser inscrita na rotina da vida cotidiana e nas estruturas do inconsciente. O potentado deve habitar o sujeito de tal maneira que este último não possa, doravante, exercer sua faculdade de ver, de entender, de sentir, de tocar, de mover-se, de falar, de se deslocar, de imaginar ou mesmo não possa trabalhar e sonhar senão em referência ao significante mestre que, a partir desse momento, se debruça sobre ele e o obriga a gaguejar e a cambalear.
O potentado colonial dificilmente se desviou dessa regra. Em todas as etapas da vida cotidiana, o colonizado foi constrangido a uma série de rituais de submissão […]" (MBEMBE, Achille. (2006). O que fazer com as estátuas e os monumentos coloniais? In: Revista Rosa, vol. 2, n. 2, novembro 2020. Disponível em: https://revistarosa.com/2/o-que-fazer-com-as-estatuas-e-os-monumentos-coloniais)
Algo deste colonizado não nos fala a todo momento? Pode a psicanálise ouvir isso sem também ela derrubar seus monumentos coloniais?
Ou será que só estamos preparados para ouvir potentados, isto é, o chamado "sujeito universal"?
Em que medida as instituições de psicanálise não são, simbolicamente, os pesados monumentos erguidos em nossas cidades com a mesma função de nos fazer lembrar, o tempo todo, do significante mestre que debruça sobre nossas costas e, sem muitas camadas de metáfora, nos chicoteia quando desobedecemos as cartilhas eurocêntricas?
Guardadas as devidas proporções, quem não sabe falar a língua do pai, ainda hoje, gagueja nos assentos de formação psicanalítica e quem, literal e minimamente, não começar a sonhar com os significantes mestres erguidos nas escolas de psicanálise, não terá seu lugar de trabalho respeitado por muitos colegas.
Quem vive numa destas instituições passa a ter "de ver, de entender, de sentir, de tocar, de mover-se, de falar, de se deslocar, de imaginar" segundo a lógica e o idioma do potentado. Multiplicam-se as imitações, tiques, trejeitos iluminados. Os jargões se tornam senhas (ou tésseras se quisermos exemplificar com um deles) de entrada ou pertencimento: "tocar o real", por exemplo, deve constar numa produção qualquer para que seja considerada aceita.
NOVEMBRO 2022
CCCXI
"Mas, igualmente, somente com a subversão, se ela não triunfa, é mais provável que seus produtos, propostas e virtualidades, sejam ou possam ser cooptados e assimilados dentro do padrão dominante, na medida em que sejam úteis e compatíveis com as trocas e ajustes requeridos nele e, claramente, ao preço da adaptação destes elementos aos fins e exigências de tal padrão, isto é, procusteados, distorcidos, inclusive desnaturalizados e degradados. [...] Nesse caso, se alguns dos elementos produzidos pelos dominados e a subversão aparecem como úteis ao rearranjo do poder, eles serão totalmente expropriados de seus produtores e serão devolvidos a eles como originais de seus dominadores. Isto é, transformados em instrumentos de dominação." (QUIJANO, A. Colonialidad del poder y subjetividad en America Latina. In: QUIJANO, A. Ensayos en torno a la colonialidad del poder. Buenos Aires: Del signo, 2019, p. 340-1. [Tradução minha]).
Em que pese esta reflexão de Quijano fazer referência à resposta colonial à subversão de um padrão global de poder, de imagens e símbolos, de padrões de conhecimento e de produção do conhecimento, vale pensarmos, em um registro bem mais reduzido, a força que tem a resposta colonial dentro dos laços de poder das instituições psicanalíticas.
É notório os modos como a psicanálise lacaniana - com a qual tenho familiaridade e lugar para observar com calma - cooptou e assimilou, dentro de seus padrões dominantes, a força subversiva de discursos e epistemologias queeres e feministas, evidentemente, procusteando-as, distorcendo-as, desnaturalizando-as e degradando-as.
É fascinante ver como alguns autores são capazes de fazer das fórmulas da sexuação a cama de Procusto das epistemologias queer e feministas, como se o lacanismo tivesse nascido queer e feminista ou como se seus fundamentos teóricos não tivessem nada de compulsoriamente heteronormativo, cissexista e colonial. Ao contrário, há quem faça parecer que existe entre psicanálise e tais epistemologias uma convergência natural, de modo que uma possa muito bem se oferecer como um acréscimo à outra, sem quaisquer necessidades de críticas. Nestes casos em que a cooptação de teorias subversivas de atores sociais dominados aparece como uma aproximação amistosa e "alguns dos elementos produzidos pelos dominados e e a subversão aparecem como úteis ao rearranjo do poder, eles serão totalmente expropriados de seus produtores e serão devolvidos a eles como originais de seus dominadores. Isto é, transformados em instrumentos de dominação."
A teoria psicanalítica é colonizadora a cada vez que acochambra uma teoria subversiva de atores sociais dominados a seus padrões pré-estabelecidos e universalizados.
CCCX
O pacto colonial masculinista branco heterocisnormativo é o geocentrismo do século XXI. A cada dia fica mais revoltante e ridículo ver o exemplar do homem-cis-hétero-branco-ocidental-machista-burguês-lgbtqia+fóbico como o centro do universo.
A mesma psicanálise que deu um golpe no egocentrismo, desta vez será golpeada, ao menos, por causa de seu falicismo heterocisnormativo.
CCCIX
A psicanálise que toma as marcas sociais de um falasser oprimido e cotidianamente objetificado como itens de superfície imaginária e não como incorporações subjetivas, e ainda busca reduzi-los ou adequá-los à escuta higienista do sujeito de linguagem, está fazendo política colonial e não psicanálise.
O inconsciente só pode ser efetivamente político se for ouvido como manifestação das construções dialéticas de um corpo desejante numa sociedade de sexuações compulsórias que impõe racializações e diferenças de classe. Ouvir o falasser retirando-o desse contexto, como se tudo isso fossem adereços imaginários de um sujeito sem cor, gênero e classe, é tomar o inconsciente como uma plataforma neoliberal de igualdade absoluta, sobre a qual cada um pendura as identidades de sua história pessoal. O inconsciente neoliberal, equivalente à entidade de mercado, é uma invenção abstrata e universal descorporalizada.
Tal proposição nos permite dar outro entendimento à fórmula lacaniana de que o inconsciente é o discurso do mestre. Sim, de fato, o inconsciente da teoria lacaniana muitas vezes é o discurso do mestre. E precisamos nos interrogar o que significa submeter sujeitos subalternizados a ele.
CCCVIII
As teorias sérias, em geral, admitem ter uma genealogia. Mas não a teoria lacaniana, para alguns lacanianos, evidentemente. Este fato deveria bastar como prova de que a tomada e os usos desta teoria podem resvalar na metafísica e na ontologia.
Um dos efeitos dessa ontologização é a tomada do "saber psicanalítico" como um saber de primeiro nível, acima dos demais, considerados, estes sim, teorias, das quais o que vem endereçado à psicanálise não é reconhecido como crítica, mas vivido como um ataque.
JUNHO 2022
CCCVII
Somam-se às questões subjetivas sofridas pelos sujeitos negros a violência e a força repressiva do pacto narcísico branco.
Soma-se aos traumas do racismo o esquecimento imposto pelo colonizador.
Vejamos o seguinte trecho de Lélia Gonzalez:
"A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória incluir. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando a memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo para nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela para tudo nesse sentido. Só que isso tá aí... e fala." (GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: GONZALEZ, L. Por um feminismo agro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 78-9).
Uma clínica do trauma não seria suficiente para lidar com a memória como falasser: corpo falante de uma história que não foi escrita. Para que se leia o que não foi escrito - para retomarmos o que Benjamin nos apontou - é preciso ainda que a clínica se coloque a ouvir as violências do esquecimento, ou seja, o pacto identitário branco que se impõe às formas de subjetivação dos sujeitos negros.
Extensivamente, do mesmo modo há um pacto cis-hetero-machista que se impõe violentamente sobre mulheridades e outras possibilidades de sexuação. E ainda: há um pacto europeu-ocidental que se impõe sobre outras culturas consideradas primitivas, inferiores ou dependentes.
A clínica que não se dispõe a ouvir e apontar a violência dessas forças toma ideologicamente por equivalentes sujeitos desiguais nas relações de poder (nada mais neoliberal, digamos de passagem). O sujeito universalizado, ao qual todas as outras possibilidades de subjetivação - muitas vezes negadas no laço social que impõe silêncio e esquecimento - são reduzidas, corresponde à normatização dessa identidade homem-branca-hetero-cis-europeia.
A interseccionalidade é um conceito urgente para pensarmos as relações de poder na clínica e a clínica das relações de poder, na medida em que ela aponta as armadilhas coloniais que sustentam o pressuposto fantasioso de um sujeito universal sem sexo, gênero, cor, classe e origem, isto é, descorporificado e des-historicizado.
Não basta lidarmos com a violência do trauma, é preciso que intervenhamos também na violência do esquecimento. Violência esta que muitas vezes impede, inclusive, que se fale das inscrições capazes de restituir a história que não foi escrita. Justamente porque há um pacto de poder para impedir que ela seja escrita (consideração fundamental que devo à Ana Paula Gianesi). São ao menos duas, portanto, e não uma, as camadas de violência com que nos defrontamos quando ouvimos sujeitos social e historicamente objetificados.
Relegar somente ao papel da fantasia essa objetificação corre os riscos de contribuir com o que Gonzalez chamou, na citação acima, de discurso da consciência. É fazer vistas grossas e ouvidos moucos, se não à violência do trauma, ao menos à violência do esquecimento e do silenciamento. Sem ser mediado por conceitos e teorias capazes de ler as relações de dominação e a presença desta nos modos contemporâneos de subjetivação, o conceito de fantasia reduz ao plano do particular um gozo que lhe excede por vir de fora e que melhor seria se fosse interrogado em sua materialidade histórico-estrutural, isto é, como a segunda violência mencionada, e que não é menos inconsciente, muitas vezes.
De um modo inverso, a crítica de que as questões sociais e históricas atrapalham ou não deveriam importar tanto aos psicanalistas por estarem carregadas de consistências imaginárias e/ou por desviarem as atenções para o que viria do princípio de realidade - menos digno de ser considerado clinicamente -, mantém a clínica psicanalítica numa estratosfera, fora da historicidade de seus conceitos e da geopolítica de suas práticas. Lugar de proteção, sem dúvida, mas nessa torre de marfim a psicanálise perde de vista as vias pelas quais se deixa atravessar, sem perceber muitas vezes, pelos pactos de poder firmados como caldo cultural burguês a partir do que de mais real restou do século XVII até nossos dias: a violência colonizadora da acumulação primitiva do capital.
A concepção de que o racismo e o machismo, por exemplo, precisam ser tratados somente via sujeitos, como se não estivessem presentes em nossas práticas, instituições e teorias, revela, ao menos, a ingenuidade de quem ainda não se defrontou com sua própria camada de inconsciente colonizado e acredita na torre de marfim como abrigo seguro para a psicanálise. Como escreveu Ayouch: "quando se fecha à evolução da clínica e da história, a teorização passa a ser um processo auto-erótico do núcleo pulsional do(a) teorizador(a)." (AYOUCH, T. Da transsexualidade às transidentidades: psicanálise e gêneros plurais. Percurso, Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, 2015, pp.23-32, p. 29).
Poderíamos começar com a crítica a um conceito central à psicanálise: a sexualidade. Por que não levamos mais a sério as considerações de Foucault sobre a relação entre sexualidade e poder?
Retomemos o que Butler escreveu sobre isso:
"O corpo só ganha significado no discurso no contexto das relações de poder. A sexualidade é uma organização historicamente específica do poder, do discurso, dos corpos e da afetividade. Como tal Foucault compreende que a sexualidade produz o 'sexo' como um conceito artificial que efetivamente amplia e mascara as relações de poder responsáveis por sua gênese." (BUTLER, J. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, p. 162).
A quem serve a diferença sexual propalada pela psicanálise? O que sustenta essa diferença que mostra do lado homem o lugar do falo e do lado mulher o lugar da falta dele?
Difícil pensar hoje que os mais variados e diferentes processos de sexuação tenham que passar pela lógica desta "diferença" universal. O que já foi, entre psicanalistas, a "questão trans", acende hoje luzes sobre a violência que está em jogo na "questão hétero-cis" que se impõe quando fazemos operar a lógica da diferença fálica universal.
Não encontrando razão de ser na clínica, onde as sexuações podem ser pensadas sem este universal, resta pressupor que a diferença sexual fálica serve como delimitador de relações de poder. E enquanto a psicanálise sustentar tal crivo universalizante estará contribuindo para a exclusão e colonização de sexuações dissidentes do universal. Uma psicanálise que se queira decolonial precisará abrir mão do falo como organizador universal da diferença de poder para que as diferenças de gênero e de sexualidade tenham lugar e voz.
A diferença fálica universal só pode ser pensada como efeito de ocultação dos interesses de uma particularidade: o poder do homem hétero cis branco machista burguês.
Ademais, vale considerarmos o que nos traz Ayouch:
"A diferença entre os sexos definida de forma binária (ter/não ter) procede dessa captação imaginária. Ela provém da teoria sexual infantil do menino da Viena do século XIX que introduz a alternativa de ter/não ter. Várias vezes, quando essa teoria sexual infantil do menino é tomada literalmente, ela acaba ecoando na teoria sexual infantil do(a) psicanalista teorizador(a). (AYOUCH, T. Idem, p. 28).
E, na sequência, um parágrafo bastante lúcido:
"Uma ruptura epistemológica surge quando o sistema que servia para abordar o mundo aparece adaptado apenas a uma parte desse mundo. As transidentidades introduzem uma verdadeira ruptura epistemológica: elas revelam que as identificações de gênero definidas em função do aparelho genital designado são um caso particular dentro de uma multiplicidade possível de identificações. Do mesmo modo, a psicanálise da pós-transexualidade deve perpetuar essa ruptura epistemológica em que a binariedade sexual é revelada como um caso particular dentro da multiplicidade das sexuações." (Idem, p. 31).
Tomemos agora o seguinte trecho de Vieira e Fraccaroli:
"Pensamos que o caráter concreto da experiência heterossexual se realiza, ou melhor, se explicita, na inumerável parafernália sexual de incitação à heterossexualidade, da representação pornográfica à telenovela, passando pela literatura, pela clínica psicanalítica, pelo romantismo, pelas representações da masculinidade (carros, barba, música, futebol) e da feminilidade (estética, esmalte, unhas pintadas e batom), ideais da heterossexualidade. Pensamos, portanto, que se não é possível apontar heterossexuais na rua é porque, como o azul do céu, eles constituem a paisagem e, desse modo, não é que lhes falte existência, é que eles simplesmente existem demais." (VIEIRA, H e FRACCAROLI, Y. Nem hétero, nem homo: cansamos. Cult, 2021. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/nem-hetero-nem-homo-cansamos/)
Sabemos o quanto, para nós psicanalistas cis em geral - ainda são poucos psicanalistas trans, o que revela algo do pacto cissexista da psicanálise -, a heterossexualidade faz parte da paisagem.
Não oferecemos mais curas gay, mas muitas vezes ouvimos explicações sobre o que teria levado alguém a "se tornar" homossexual. Jamais perguntamos o que teria levado alguém a se tornar heterossexual. Para muitos de nós isto passa como um óbvio dado de normalidade. Ainda temos indícios de que a homossexualidade, entre psicanalistas cis, segue sendo um "caso clínico", algo que a heterossexualidade jamais foi, muito embora, numa psicanálise verdadeiramente decolonial, a heterocisnormatividade é que precisa ser estudada como um caso clínico. Afinal, o que faz alguém se tornar heterocissexista? O medo do pai? A crença na eternidade do patriarcado? A identificação com o dominador? A formação reativa do fascínio pelo diferente? A sustentação performática de um falo como índice de poder? Ou simplesmente o narcisismo das pequenas diferenças somado ao poder real de destruição? O que leva os grupos heterocissexistas a fazerem pactos de objetificação das diferenças? Por que estes casos são tão misóginos, lgbtqia+fóbicos e racistas?
Quais são as teorias sexuais infantis que determinam subjetivamente sujeitos heterocissexistas? Precisaríamos saber melhor sobre isso para evitarmos transformá-las em verdade universal. A hipótese que se nos impõe é a de que a fantasia sexual infantil predominante nos heterocissexistas é a do menino de Viena do século XIX. Vejamos que interessante: quando interrogamos o caso do homem-heterocissexista, chegamos naquilo que a psicanálise transformou em universal, mais especificamente com o nome de complexo de Édipo. Como podemos tratar esse homem heterocissexista sem mostrar a ele a singularidade acachapante de sua fantasia sexual infantil e destroná-lo de sua fantasia supremacista de sujeito universal?
Butler aponta com clareza a heterocisnormatividade freudiana:
"A conceituação da bissexualidade em termos de predisposições, feminina e masculina, que têm objetivos heterossexuais como seus correlatos intencionais sugere que, para Freud, a bissexualidade é a coincidência de dois desejos heterossexuais no interior de um só psiquismo. Com efeito, a predisposição masculina nunca se orienta para o pai como objeto de amor sexual, e tampouco se orienta para a mãe a predisposição feminina (a menina pode assim se orientar, mas isso antes de ter renunciado ao lado 'masculino' da sua natureza disposicional). Ao repudiar a mãe como objeto de amor sexual, a menina repudia necessariamente sua masculinidade e 'fixa' paradoxalmente sua feminilidade, como uma consequência. Assim, não há homossexualidade na tese da bissexualidade primária de Freud, e só os opostos se atraem." (BUTLER, J. Idem, p. 112).
Quanto à "questão trans", pois bem, ainda segue sendo uma questão para à psicanálise: haja vista o quanto a apresentação de Paul B. Preciado na Escola da Causa Freudiana, em novembro de 2019, "sou o monstro que vos fala", mobilizou psicanalistas do mundo inteiro que correram diagnosticá-lo para não ter que ouvi-lo.
Há pouco começamos a ouvir os analistas reconhecerem o erro de Lacan ao considerar o "transexualismo" (sic) uma psicose. Ainda há, no entanto, quem diga que a transgeneridade não pode ser diagnosticada como psicose, mas não sem salvar Lacan e forçar uma leitura de que ele nunca deu tal diagnóstico.
De minha parte, concordo com Thamy Ayouch que diz:
"Isso implica para as posturas psicanalíticas se des-solidarizarem das avaliações
psiquiátricas, denunciarem o maltrato institucional, teórico e clínico das pessoas trans, pensarem além do binarismo e a partir da multiplicidade e abandonarem as etiologias, as nosografias e talvez toda a psicopatologia. O alvo seria elas abarcarem as variedades de sexuações e sexualidades não como exceções mas como a regra da subjetivação. Talvez o ponto de encontro de saberes psi e saberes trans resida na promoção da multiplicidade e da criatividade psíquica e social, dentro de uma 'política das alianças'. Trata-se de ver que a fluidez, a transição, a metamorfose vivenciadas por pessoas trans durante e depois da sua transição são processos de construção do gênero, que dizem respeito também a pessoas ditas cis. Trata-se de apreender os percursos plurais trans como diversas possibilidades de identificação de gênero, como uma entre outras possibilidades de subjetivação, não suscetíveis de serem classificadas hierarquicamente
em função de uma suposta superioridade das identificações cis-gênero. Trata-se de considerar que o gênero, ademais de não ser nem uma sentença biológica nem uma condenação simbólica,
nunca é monolítico e fixo." (AYOUCH, T. Quem tem medo dos saberes T.? Psicanálise, estudos transgêneros, saberes situados. Revista Periódicus, 2016, 1(5), 3-6. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/17171/11326)
MAIO 2022
CCCVI
A quem serve a diferença sexual propalada pela psicanálise? O que sustenta essa diferença que mostra do lado homem o lugar do falo e do lado mulher o lugar da falta dele?
Difícil pensar hoje que os mais variados e diferentes processos de sexuação tenham que passar pela lógica desta "diferença" universal. O que já foi, entre psicanalistas, a "questão trans", acende hoje luzes sobre a violência que está em jogo na "questão hétero-cis" que se impõe quando fazemos operar a lógica da diferença fálica universal.
Não encontrando razão de ser na clínica, onde as sexuações podem ser pensadas sem este universal, resta pressupor que a diferença sexual fálica serve como delimitador de relações de poder. E enquanto a psicanálise sustentar tal crivo universalizante estará contribuindo para a exclusão e colonização de sexuações dissidentes do universal. Uma psicanálise que se queira decolonial precisará abrir mão do falo como organizador universal da diferença de poder para que as diferenças de gênero e de sexualidade tenham lugar e voz.
A diferença fálica universal só pode ser pensada como efeito de ocultação dos interesses de uma particularidade: o poder do homem hétero cis branco machista burguês.
CCCV
Em um texto intitulado Efeitos da colonização na psicanálise: o lugar do Brasil e da língua portuguesa, Luciano Elia faz menção a uma passagem extremamente benjaminiana de Freud:
"As experiências do ego parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante frequência e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em experiências do id, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as. A maneira pela qual o superego surge explica como é que os primitivos conflitos do ego com as catexias objetais do id podem ser continuados em conflitos com o seu herdeiro, o superego. Se o ego não alcançou êxito em dominar adequadamente o complexo de Édipo, a catexia energética do último, originando-se do id, mais uma vez irá atuar na formação reativa do ideal do ego. A comunicação abundante entre o ideal e esses impulsos instintuais do Ics. soluciona o enigma de como é que o próprio ideal pode, em grande parte, permanecer inconsciente e inacessível ao ego. O combate que outrora lavrou nos estratos mais profundos da mente, e que não chegou ao fim devido à rápida sublimação e identificação, é agora continuado numa região mais alta, como a Batalha dos Hunos na pintura de Kaulbach." (FREUD, S. [1923]. O ego e o id. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 51)
Minha leitura, de orientação benjaminiana, entende que a voz silenciada dos vencidos segue viva e se transmitindo no isso, à espera de alguma espécie de redenção.
Elia, de modo um pouco diferente, propõe ouvir na herança do isso a fossilização dos eus colonizadores. Seu comentário é o seguinte:
"Se, do lugar de colonizados, pudermos travar uma tensão dialética com nossos colonizadores históricos, que, por isso mesmo, transformaram-se, como o Isso freudiano, em fósseis de incontáveis eus que operam em nossa herança ancestral - passagem belíssima do texto freudiano em que nos deparamos incontestavelmente com a transindividualidade do inconsciente que Lacan será compelido a formalizar - então estaremos em condições de analisar nossa condição de colonizados, dissolver os fósseis de 'nosso' Isso-colono, destituir o colonizador em 'nosso' supereu [...]" (ELIA, L. Efeitos da colonização na psicanálise: o lugar do Brasil e da língua portuguesa. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/efeitos-da-colonizacao-na-psicanalise?, s.d.)
Possivelmente, pensar se a herança do isso é composta de eus colonizados ou colonizadores, seja de menor importância se entendermos que as cenas que ali fossilizaram como experiência de eus são marcas de violência na qual não só os traumas do colonizado, mas também o gozo do colonizador se faz necessariamente presente. Mas talvez, com a concepção de que o eu, ao formar o seu supereu a partir do isso, está apenas revivendo formas de antigos eus e ressuscitando-as, possamos correlacionar a construção do supereu com as imposições históricas dos ideais dos vencedores que impregnam corpo e alma dos sujeitos por eles objetificados. E é nesse sentido que Elia menciona a transindividualidade do inconsciente, sua força ideológica como discurso concreto e que em Lacan aparece do seguinte modo:
"O inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente." (LACAN, J. [1953]. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 260).
Não é descabido, portanto, numa análise, interpretarmos o que do sujeito vem na forma transindividual da ideologia que, enquanto estrutural, isto é, componente político-econômico de uma sociedade capitalista, também compõe o inconsciente.
Afinal, como é possível analisar nossa condição de colonizados, dissolver os fósseis de nosso isso-colono e destituir o colonizador em nosso supereu sem uma concepção de história, de luta de classes e de dominação?
Embora Elia proponha um isso-colono, de minha parte tenho preferido pensar o isso como lócus de resistência, lugar da memória historicamente apagada. O que os sintomas revelam, muitas vezes, são eventos de gerações passadas nos quais o desejo foi interrompido e um sujeito foi silenciado. O isso grita nos sintomas contra o esquecimento. Desse modo é ideológico pensar o isso como um primitivo à espera da ação civilizatória do supereu. O que poderíamos escutar de decolonial se tomássemos o isso como correlato de civilizações tombadas pela força predatória do supereu?
Seguindo nessa perspectiva podemos pegar o seguinte trecho de Freud: "se o ego não alcançou êxito em dominar adequadamente o complexo de Édipo, a catexia energética do último, originando-se do id, mais uma vez irá atuar na formação reativa do ideal do ego" e substituir "o complexo de Édipo" por "encontro com o real do sexo e suas respostas do no campo do gênero e da sexualidade". Teríamos: "se o ego não alcançou êxito em dominar adequadamente o encontro com o real do sexo e suas respostas no campo do gênero e da sexualidade, a catexia energética do último, originando-se do id, mais uma vez irá atuar na formação reativa do ideal do ego". Tal substituição revela o que há de heteronormatividade neste "se o ego não alcançar êxito em dominar adequadamente", algo que o complexo de Édipo, por si só, sustenta como naturalizado. A catexia energética daquilo que tomba por meio dessa dominação da qual o eu faz parte em nossa sociedade é a mesma que, também no isso como lugar das ruínas do sujeito, alimentará reativamente fobias, sexismos, machismos etc, como ideais de eu construídos pelo crivo histórico patriarcal. Mas são também as catexias que nutrem os sintomas nos quais encontramos, na clínica cotidiana, a batalha secreta por sexualidades e identidades dissidentes.
Pois bem, temos um longo trabalho a fazer e ele não se resume a meras novas aplicações das ferramentas clínicas que herdamos ou ao acochambrar as novas epistemologias decoloniais nos interstícios da teoria já pronta. Se o contexto em que essas ferramentas e teoria foram produzidas está estruturalmente comprometido com as raízes burguesas, brancas, machistas e europeias, então será preciso começar por rever as próprias ferramentas e teoria.
Elia nos lembra que quando de sua única viagem à América do Sul, Lacan forjou o significante lacano-americanos para designar seus seguidores sul-americanos. Poderíamos interpretar tal ato jocoso de inserir seu sobrenome num gentílico que lhe é tão distante como um correlato de colonização? Nada mais representativo da colonização que temos que fortemente questionar do que este ato linguístico de fincar sua bandeira na América do Sul.
É interessante, por fim, notar que a alegoria usada por Freud na citação- a pintura de Kaulbach na qual a batalha dos Campos Catalaúnicos segue no plano elevado, mesmo após seu término - faz referência direta à luta pela derrubada do império romano. Sem que isso implique ingenuamente a ideia de um Freud decolonial, não é sem importância notarmos a correlação imediata do conflito psíquico como continuação, em outro plano, de revoltas anti-imperialistas. O que Freud propõe como ilustração da teoria talvez possa ser tomado como exemplo de um caso dela, quando nela forçamos uma decolonialidade que lá nunca esteve, originalmente.
CCCIV
"O olhar, que deveria estar apagado do mundo irrompe como gozo não regulado pelo invólucro imaginário e pelo ideal do eu. Trata-se de um gozo para além do princípio do prazer, para além do júbilo experimentado na identificação do infans à imagem ideal. Essa é a razão pela qual diante da irrupção do objeto olhar, o sujeito definido como falta-a-ser desaparece e é reduzido ao objeto. O preto então vive experiências de "não ter resistência ontológica" "de um peso inusitado opressor", "de ausência de certezas", "de não suportar o peso da maldição-corporal", "de ter seu esquema corporal atacado" e de ter seu corpo "desancado, desconjuntado e demolido"." (LIMA, M. Visão racializada do colonizado e o objeto olhar: Fanon com Merleau-Ponty e Lacan, s.d.)
Nos desdobramentos que Lima faz para abarcar a angústia presente nos exemplos de Fanon, não comparecem as razões históricas do engessamento da imagem do branco como ideal do eu. Ocupando-se das relações entre o visível e o invisível de Merleau-Ponty e o Lacan do Seminário 11, a autora deixa de fora a dominação presente nos parágrafos mencionados por Fanon. É o próprio olhar, e não a visão, que irrompe racializado, para além da dimensão "neutra" que lhe é atribuída nas relações entre sujeito e Outro do qual se extrai como objeto a. É a dominação, que deveria estar apagada do mundo, que irrompe como gozo não regulado, mas falas dramáticas do texto de Fanon. Mas talvez seja equivocado dizer que "para que a realidade se torne objetiva, é necessário que esta esteja desinvestida de libido, ou seja, é preciso que haja uma cisão entre a visão - realidade sem gozo - e o olhar - campo escópico que inclui o gozo." (Idem). Entendo que não: numa sociedade colonizada, racializada, a objetividade, a realidade, não excluem o gozo em sua forma dominação. Deixá-lo de fora, neste contexto, é contribuir ideologicamente com a suposta neutralidade e igualdade neoliberais da epistemologia hegemônica.
CCCIII
"É curioso então que seja sob um contexto de exposição colonial, em relação à língua e ao corpo, determinada por um outro - igreja, família ou estado -, que Lacan nos apresenta a dimensão herética e política do sinthome, através da lalíngua e do falasser. Articulada pela mão de Joyce, Lacan subverte a psicanálise. Neste sentido, a psicanálise, descentrada pela própria colonialidade de Joyce, pode servir às discussões decoloniais e pós-coloniais, apresentando as estratégias e táticas de resistência ao discurso do capitalista através da mobilização do resto, dos fantasmas, do inapropriável. Para se decolonizar é preciso a heresia de recusa à nomeação determinada pela lógica colonial e capitalista. E é exatamente isso que a psicanálise pode ofertar na tarefa em parceria com os movimentos sociais e políticos." (MATOZINHO, C. Lacan, pela mão de James Joyce: uma subversão que nos serve. In: https://www.n-1edicoes.org/lacan-pela-mao-de-james-joyce?, sd).
Em que pese a defesa equivocada de uma decolonialidade nos textos de Lacan dedicados a Joyce, a leitura que Matozinho faz do Joyce de Lacan é interessante ao propor o sinthome como resistência política, o falasser como dimensão corpórea do sujeito atravessado por um gozo que não se submete às significações hegemônicas e lalíngua como o "que conserva no avesso da língua aquilo que a História insiste em recalcar" (idem). Enxertando nesses conceitos uma dimensão política a autora lê em Joyce não a psicose, mas a insubordinação à lingua do colonizador. Quantas não são as manifestações sinthomáticas que a história dos vencedores insiste em apagar (não sem a contribuição da psicanálise, muitas vezes, algo que a autora não menciona)?
E se lalíngua está no avesso da língua, o sinthome, por sua vez, é, ele mesmo, o avesso do monumento erguido pelos vencedores, tal como as milhares de imagens de Marielles que surgiram e de tantas mais militantes que se fazem presentes depois de seu assassinato. Quantos não são os modos insubmissos de gozo do falasser patologizados e silenciados? Lembremos, por exemplo, da proposição de Lacan de que transexuais seriam psicóticxs. E de que variados modos podemos escutar lalínguas, não como manifestações primitivas da língua - o que pode até ser perigosamente entendido na confluência das leituras de Matozinho e Lacan, mas como manifestações artísticas e culturais não hegemônicas? Neste caso, às epistemologias divergentes às imposições colonizadoras caberia chamarmos de lalíngua, enquanto lócus da memória que se quer apagar. A lalíngua seria menos as lalações do bebê do que escombros que restam das experiências interditadas de falasseres politicamente marcados, em quaisquer idades. Lalíngua como língua morta e língua matável. Sob uma perspectiva histórica, lalíngua é menos um aluvião do que as ruínas que aterrorizam o Angelus Novus.
Quando, num falasser, tocamos algo da lalíngua ali guardada como gozo dissidente de seu corpo, algo de insubmisso pode advir como sinthome.
(Mas ponderemos o seguinte: talvez não haja mais do que 9 linhas do Lacan criticando a colonização francesa - lembro-me da menção a Togo, no seminário 17; da resposta à razão da escalada do racismo, em Televisão; e do fato de ter encontrado o nó borromeano no atendimento de um africano, no seminário 21. Difícil compactuar com o Lacan decolonial apresentado por Matozinho.)
CCCII
"Mas, quando a revolução argelina explode, Fanon se volta para a prática revolucionária, para a aposta na revolução social, e uma questão que salta aos olhos é que ele aposta na revolução como momento de elaboração coletiva dos traumas que tem origem política, e que tem efeitos subjetivos. Ele não faz uma relação mecânica entre sofrimento político e sintoma, mas está pensando o tempo inteiro como há uma dimensão do político que no próprio campo do político que deve ser endereçada." (FAUSTINO, D. Franz Fanon e o mal-estar colonial: algumas reflexões sobre uma clínica da encruzilhada". Sem data. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/frantz-fenon-e-o-mal-estar-colonial-algumas-reflexoes-sobre-uma-clinica-da-encruzilhada)
Na observação de Fanon, recortada por Faustino, temos uma correlação que precisa ser bem guardada: em que medida, por haver na origem de alguns sintomas uma dimensão de violência política, estes somente cedem mediante o endereçamento político do que neles se fez voz em silêncio?
O esvaziamento político da escuta nos impede de ouvir na forma sintoma a voz um dia silenciada por forças de dominação. E nada nos leva a pensar, de modo imediato, que o que foi politicamente silenciado possa ser reendereçado como dizer despolitizado. Tal procedimento seria ajustamento social, no pior de seus sentidos e, desta maneira, seria pactuar com o sintoma e com a força dominadora que lhe deu origem. Não há sublimação de uma violência política que já não seja, em si mesma, um ato político. Pois, de outro modo, perpetua-se a violência.
A uma psicanálise decolonial não cabe transformar uma relação de dominação em conflito psíquico, mas ler no conflito psíquico a relação de dominação e apontá-la, interpretá-la. Sem lastro social e histórico, o conflito psíquico pode se tornar efeito ideológico da sedimentação, isto é, a passagem do estado de adversidades do laço social para o estado de problemas psicológicos do particular, problemas nos quais as primeiras não são mais identificáveis.
Como memória de uma violência, o sintoma é uma cena de excesso. Forçar simbólico no real que insiste neste excesso implica reposicionar-se diante da cena à qual o sintoma se fez monumento de repetição. Este reposicionamento não se dá, portanto, sem um investimento pulsional que possa ser tomado de modo político e, muitas vezes, ético: que esta violência não se repita, eis o que se configura como voz decidida, como imperativo categórico que se formula como o avesso do silêncio do trauma.
ABRIL 2022
CCCI
Quando aos analisantes damos ouvidos sem escoras binárias heteronormativas, percebemos que os relatos memoriais da infância não tratam como óbvia a relação entre sexo biológico e gênero. O corpo e seus adereços - esse estranho com o qual nos deparamos em determinado momento - não é locus imediato de presença ou ausência; não é, na primeira impressão que deixa nas cenas recuperadas, masculino biológico ou feminino biológico. É um território vivo no qual algumas regiões se destacam pelo sem sentido. E é no processo de mapeamento desse corpo e dos contatos contingentes com o corpo do outro que algo do gênero e dos investimentos eróticos são, caso a caso, construídos.
Que um garoto biologicamente nascido homem formule sua identidade de gênero e sua sexualidade a partir do mito edípico e da "pequena diferença" sexual entre dois corpos é sim um caso: o de Freud, sobretudo. Mas há algo de muito autoritário - hoje, inegavelmente - na transformação desse modo sexuação em norma universal.
As sexuações não se dão sem a cultura, ou mesmo se dão apesar dela. Mas é revelador o quanto que parte destes processos seguem ali silenciados, sob os tabus e imposições de cada época, à espera de uma brecha para aparecerem como palavra e/ou como ato.
O complexo de Édipo, neste caso, contribui menos com organizar os desdobramentos do tabu do incesto do que com cristalizar, e essa é verdadeiramente sua grande contribuição, o tabu da heteronormatividade patriarcal binária.
Quantos dos sintomas corporais não vêm reclamar, em distintos momentos da vida, identidades e fixações de gozo interditadas pela imposição do corpo biológico com a "diferença" que só se justifica pelos interesses materiais da dominação sexista?
Nós analistas insistimos em ler os sintomas pelo crivo das fantasias geradas pelo complexo de Édipo. Talvez tenha chegado o momento de percebermos e interrogarmos o quanto os sintomas são mostrações que denunciam os tabus culturais sustentados pelo complexo de Édipo. Subjetividades impossibilitadas pela estrutura de dominação racista, sexista, heteropatriarcal.
Quantas não são as fixações corporais que gritam por detrás da norma edípica nos sujeitos que nos falam?
E mais: quantas não são as cenas de violência que deixamos de ouvir por tomarmos o tabu do incesto como uma lei sempre vigente?
Em que medida a fobia do pequeno Hans, por exemplo, não vem como resposta às imposições de um corpo masculino biológico? Um retorno ao caso seria interessante, neste sentido.
O complexo de Édipo como o próprio tabu binário e heteronormativo dessa sociedade capitalista, eis o que surge aos analistas quando atentos às possibilidades de sexuação que lhes são contadas.
MARÇO 2022
CCC
São diversas as formas pelas quais a heteronormatividade machista e misógina europeia conquistou e colonizou subjetividades:
"Como assinala Silverblatt, o conceito de bruxaria era alheio à sociedade andina. No Peru, assim como em todas as sociedades pré-industriais, muitas mulheres eram 'especialistas no conhecimento médico', estavam familiarizadas com as propriedades de ervas e plantas e também eram adivinhas. A noção cristã de demônio era desconhecida. Não obstante, por volta do século XVII, devido ao impacto da tortura, da intensa perseguição e da 'aculturação forçada', as mulheres andinas que acabavam presas - em sua maioria idosas e pobres - admitiam os mesmos crimes que eram imputados às mulheres nos julgamentos de bruxaria na Europa: pactos e fornicação com o diabo, prescrição de remédios a base de ervas, uso de unguento, voar pelos ares e fazer amuletos de cera." (FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017, p. 403-4).
Mas há outras formas, algumas mais mediadas e sofisticadas, mais ideológicas do que assumidamente violentas.
CCXCIX
"A mulher-enquanto-bruxa, sustenta Merchant, foi perseguida como a encarnação do 'lado selvagem' da natureza, de tudo aquilo que na natureza parecia desordenado, incontrolável e, portanto, antagônico ao projeto assumido pela nova ciência." (FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017, p. 366).
É difícil não interrogarmos o quanto o estereótipo psicanalítico da mulher como aquela que escapa da ordem fálica, com algo de inefável, não predicável e portadora de um indizível Outro gozo, tem seus parentescos com a construção histórica da imagem da bruxa pela civilização europeia, num de seus grandes genocídios em prol da acumulação capitalista.
Tomemos outro trecho:
"Certamente, podemos dizer que a linguagem da caça às bruxas 'produziu' a mulher como uma espécie diferente, um ser humano sui generis, mais carnal e pervertido por natureza. Também podemos dizer que a produção da 'mulher pervertida' foi o primeiro passo para a transformação da vis erotica feminina em vis lavorativa - isto é, um primeiro passo na transformação da sexualidade feminina em trabalho." (Idem, p. 345).
É certo, porém, que a denúncia estereotipada da vis erotica não tinha outra finalidade que não justificar a dominação masculina, sem a qual, sozinha, a vis lavorativa e domesticada não seria mantida, mediante as inclinações "loucas" ou histéricas das mulheres:
"Há também, no plano ideológico, uma estreita correspondência entre a imagem degradada da mulher, forjada pelos demonólogos, e a imagem da feminilidade construída pelos debates da época sobre a 'natureza dos sexos', que canonizava uma mulher estereotipada, fraca do corpo e da mente e biologicamente inclinada ao mal, o que efetivamente servia para justificar o controle masculino sobre as mulheres e a nova ordem patriarcal." (Idem, p. 335).
CCXCVIII
"Numa época em que se começava a adorar a razão e a dissociar o humano do corpóreo, os animais também foram submetidos a uma drástica desvalorização - reduzidos a simples bestas, ao 'Outro' definitivo -, símbolos perenes do pior dos instintos humanos. [...] No entanto, o excesso de presenças animais na vida das bruxas sugere também que as bruxas se encontravam numa encruzilhada (escorregadia) entre os homens e os animais, e que não somente a sexualidade feminina, mas também a sexualidade como tal, se assemelhava à animalidade." (FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017, p. 349).
$ de um lado, objeto a do Outro lado. As fórmulas da sexuação parecem reproduzir sutilmente esta divisão entre razão e corpo, entre um gozo capaz de lei e Outro gozo que não se submete.
"A caça às bruxas não resultou em novas capacidades sexuais nem em prazeres sublimados para as mulheres. Foi, pelo contrário, o primeiro passo de um longo caminho ao 'sexo limpo entre lençóis limpos' e a transformação da atividade sexual feminina em um trabalho à serviço dos homens e da procriação." (Idem, p. 346).
Se a psicanálise se dedicasse a pesquisar o que há de dominação e recalque no que diz respeito à chamada "sexualidade feminina" a partir do trauma histórico da caça às bruxas, teria muito mais a dizer sobre a sexualidade humana como prática e resistência à razão burguesa. Mas a psicanálise parece ocupar-se mais com a discreta manutenção dos referidos recalque e dominação.
JANEIRO 2022
CCXCVII
"O que morreu foi o conceito do corpo como receptáculo de poderes mágicos que havia predominado no mundo medieval. [...] Isso significa que o corpo mecânico, o corpo-máquina, nao poderia ter se convertido em modelo de comportamento social sem a destruição, por parte do Estado, de uma ampla gama de crenças pré-capitalistas, práticas e sujeitos sociais cuja existência contradizia a regulação do comportamento corporal prometido pela filosofia mecanicista. É por isso que, em plena Era da Razão - a idade do ceticismo e da dúvida metódica -, encontramos um ataque feroz ao corpo, firmemente apoiado por muitos dos que subscreviam a nova doutrina. Assim é como devemos ler o ataque contra a bruxaria e contra a visão mágica do mundo que, apesar dos esforços da Igreja, seguia predominante em escala popular durante a Idade Média. O substrato mágico formava parte de uma concepção animista da natureza que não admitia nenhuma separação entre a matéria e o espírito, e deste modo imaginava o cosmos como um organismo vivo, povoado de forças ocultas, onde cada elemento estava em relação 'favorável' com o resto. De acordo com esta perspectiva, na qual a natureza era vista como um universo de signos e sinais marcados por afinidades invisiveis que tinham que ser decifradas [...], cada elemento - as ervas, as plantas, os metais e a maior parte do corpo humano - escondia virtudes e poderes que lhe eram peculiares." (FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017, p. 257).
Difícil não vermos nessa concepção não dualista de natureza, sem separação entre matéria e espírito, traços do que veio hoje se converter na hipótese de Gaia.
É também importante relançarmos a questão, que Benjamin sustenta em sua doutrina da semelhança: aonde foi parar essa ampla gama de crenças pré-capitalistas? Será mesmo que o conceito predominante no mundo medieval do corpo como receptáculo de poderes mágicos realmente morreu? Será mesmo que nada restou do cosmos povoado de forças ocultas, desse universo povoado de signos e sinais marcados por afinidades invisíveis? Basta ouvirmos, na riqueza poética das construções significantes dos sintomas, sua dimensão mimética e constelar, para levantarmos a hipótese de que um tanto dessa experiência medieval ainda segue, mesmo que recalcada, como resistência à razão dominadora da era capitalista.
CCXCVI
"Nesse processo, o corpo não apenas perdeu todas as suas conotações naturalistas, como também começou a emergir uma função-corpo, no sentido de que o corpo se converteu em um termo puramente relacional, que já não significava nenhuma realidade específica: pelo contrário, o corpo passou a ser identificado com qualquer impedimento ao domínio da razão. Isso significa que, enquanto o proletariado se converteu em 'corpo', o corpo se converteu em 'proletariado' e, em particular, em sinônimo de fraqueza e irracionalidade (a 'mulher em nós', como dizia Hamlet), ou ainda em 'selvagem' africano, definido puramente por sua função limitadora, isto é, por sua 'alteridade' com respeito à razão, e tratado como um agente de subversão interna." (FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017, p. 278-9).
A objetificação do corpo na clínica é corolária da lógica dualista (mente versus corpo) de dominação. À psicanálise cabe ouvir o corpo como o sujeito colonizado pela "mente"/razão instrumental. Neste sentido, negar ao corpo que ele diga de suas marcas de misoginia, sexismo, racismo, lgbtiqa+fobia ou transformá-las em fantasias abstratas (isto é, em violências inexistentes) é retirá-lo da história de dominação na qual ele se constituiu. Quando se diz, por exemplo, que "o sujeito não tem cor", está se negando ao corpo sua condição de falasser, está se negando a voz ao sujeito que nele reside como história cristalizada. É preciso que se leia o corpo na história para que se possa ouvir a história que nele se escreveu: o sujeito só pode ser universal na medida em que, dialeticamente, se fizer história concentrada no particular e não como a entidade autônoma e imaterial do cógito dualista que Descartes, sedimentando filosoficamente o terreno da acumulação primitiva do capital, erigiu como lócus da colonialidade do poder.
Alegoricamente há mais carne no sujeito do tatu bola que, sob ameaça, faz uma esfera perfeita e impenetrável, do que naquele que ocupa o lugar da verdade abstrata que se oculta sob a barra de um significante mestre. Não é difícil dizer qual destes dois corresponde à agência do colonizador e qual teria a dizer sobre os traumas do colonizado. Se um, mesmo sem saber, domina em nome do pai, o outro, por vezes, mas não sempre, cede à objetificação para se autoconservar.
E o que podemos fazer como psicanalistas? Interrogar o gozo que se oculta em um e o sujeito que se esconde em outro. Mas a psicanálise se revela, ela própria, dominação, quando, inversamente, realiza o dualismo cartesiano e reserva, ao que age em nome do mestre, o sujeito, e ao que se fecha e se reduz em corpo, o gozo.
O analista que não interroga em si o gozo da dominação, corre o risco de dar a ela a forma de sujeito desejante, o que é fácil notar ao vermos, nas enunciações cotidianas, os lugares claramente encenados de poder e autoridade. Lugares que muitas vezes se ocupam, como os agentes civilizadores europeus do século XVI, "em nome" da Escola e da transmissão.
CCXCV
Há entre o saber e a sexuação uma relação que, como propõe Aníbal Quijano, pode ser ontologizada por mecanismos de colonialidade do poder.
"O patriarcado, para Aníbal, não é exclusivamente uma questão de gênero e da libertação das mulheres, mas é uma questão da totalidade do conhecimento e o controle das subjetividades inerentes ao padrão colonial de poder; totalidade sistêmica na qual se insere a dominação de gênero/sexualidade. Contudo, na medida em que racismo e sexismo são operações epistemológicas que criam ontologias, a destruição dessas regras e operações não somente pode levar-se adiante mediante condutas desobedientes - as quais hoje são óbvias, visíveis e abundantes -, senão que se necessitam reconstituições epistemológicas que desmontem a constituição epistemológica que ao mesmo tempo que se constitui, destitui tudo aquilo que não se sujeite às normas do padrão colonial do poder." (MIGNOLO, W.D. La descolonialidad del vivir y del pensar: desprendimiento, reconstitución epistemológica y horizonte histórico de sentido. In: MIGNOLO, W.D. (Org.) Aníbal Quijano: ensayos en torno a la colonialidad del poder. Buenos Aires: Del Signo, 2019, p. 26 [tradução minha]).
Temos que fazer o exercício de buscar em nossas teorias psicanalíticas as formas como, nelas, operações epistemológicas acabam criando ontologias racistas e sexistas.
Levanta, pelo menos, uma suspeita, que a divisão binária, sob os significantes homem e mulher, das possibilidades de sexuação das fórmulas lacanianas se dê com a condição de se chamar homem o lado em que encontramos o sujeito e de se chamar mulher o lado em que encontramos o objeto, lado este posto como Outro do primeiro.
Ainda que não importe a identidade sexual e as preferências de objeto sexual de quem venha a ocupar tais lados, segue-se vestindo um lado sujeito-homem e um lado Outro-mulher. Ranço epistemológico da relação de dominação sexista?
Alguma conduta desobediente aqui possa ter sua força decolonial como reconstituição epistemológica capaz de retirar da singularidade das sexuações a necessidade de que se ajustem aos lados homem-sujeito e mulher-Outro.
"[...] a constituição do padrão de poder e a invenção do racismo, resulta na destituição das pessoas racionalizadas. A mesma lógica se aplica ao sexismo. Do fato de que, cosmicamente, haja dois tipos de corpos em todos os seres viventes que se regeneram, e que os seres humanos não sejam exceção, não se deriva que, no caso da espécie humana, as funções que os corpos têm na regeneração da espécie estejas coladas uma a uma com as condutas sexuais desses corpos. O controle do conhecimento na constituição do padrão colonial do poder que estabelece, sem dúvida, que a um tipo de corpo lhe correspondem as funções de 'homem' e ao outro, de 'mulher', em todas as relações sociais. Isto é, como no racismo, a constituição do sexismo regula as condutas dos corpos e destitui condutas amparadas pelo desejo dos corpos destituídos que não correspondem com as regulações constituídas pelo padrão colonial do poder." (Idem, p. 25).
Será legítimo dizer que todos os corpos correspondem aos lados lacanianos da sexuação? Isto é: todos os corpos se dividem mesmo entre as duas condutas gozantes dadas como estrutura por Lacan?
(Basta lembrarmos a passagem do seminário 18 na qual Lacan associa a transexualidade à psicose para suspeitarmos que a regulação lacaniana dos gozos destitui condutas com ela não correspondentes.)
CCXCIV
"Sem o controle das subjetividades (do sentir, do emocionar e do pensar das pessoas) nem o estado nem a exploração do trabalho e a acumulação desigual do capital e, portanto, as desigualdades sociais, teriam lugar. E para controlar a subjetividade é necessário controlar não somente o conhecimento (o que se sabe, o conteúdo do investigado, sabido e transmitido, o arquivo, os 'dados', as estatísticas), mas também, ainda mais importante, controlar as regras, premissas e pressupostos sobre os quais se constrói o conhecimento. Somente se pode controlar o conhecido (o enunciado, o que se diz) se se controla a enunciação que constrói o conhecido: os pressupostos garantidos pelo 'sentido comum'. Mas resulta que o sentido comum não se dá 'naturalmente' senão que é fabricado por quem controla o conhecimento e o conhecer que hoje vemos fundamentalmente nos mass media. Nesse âmbito, é crucial o conflito pelo controle e pela gestão dos conteúdos (isto é, o que promovem os mass media de direita e de esquerda). Sem dúvida, ambas posições, em seu amplo espectro de matizes, disputam a interpretação dos conteúdos, mas não questionam os pressupostos da enunciação. Esta é a tarefa do pensar decolonial, que implica desprendemos das disputas na interpretação dos conteúdos. Ainda que nossas preferências sejam afins às interpretações da esquerda não podemos ignorar os argumentos equânimes da direita, nem tampouco os argumentos dogmáticos da esquerda. Isto é, dessujeitarmo-nos das dicotomias que nos impôs e impõe o imaginário moderno ocidental." (MIGNOLO, W.D. La descolonialidad del vivir y del pensar: desprendimiento, reconstitución epistemológica y horizonte histórico de sentido. In: MIGNOLO, W.D. (Org.) Aníbal Quijano: ensayos en torno a la colonialidad del poder. Buenos Aires: Del Signo, 2019, p. 17 [tradução minha]).
Desta rica citação podemos tirar algumas reflexões e questões.
Em que medida a posição muitas vezes objetificada de pessoas com histórias de submissão e minoritarização precisa ser entendida a partir do controle colonial da subjetividade? Talvez seja menos profícuo interrogar as posições dessas pessoas a partir do conteúdo conformista ou vitimizado de suas narrativas - mesmo que muitas vezes seja verdadeira sua condição de vítimas - do que apontar o processo dessubjetivante presente em suas enunciações e a condição impositiva que se revela somente em ato nas enunciações dos dominadores trazidos pelo seu discurso, posto que os enunciados destes, fabricados para serem tomados como "naturais", mascaram a violência de seus resultados.
A objetificação que se reproduz com a afirmação do lugar de vítima pode ser questionada ao se interrogar os mecanismos de assujeitamento que, quer os analistas queiram quer não, não se reduzem ao aparato fantasmático do sujeito singularizado. Aliás, também este aparato é convocado a participar da colonialidade do poder, algo que ainda nos resta avançar penteando a teoria à contrapelo.
Se a psicanálise nos ensina eticamente a procurar o sujeito que se recolhe no conforto, na dor ou mesmo no horror da objetificação, ainda nos falta ouvir esta objetificação com ouvidos decolonializados, isto é, sem retirar o sujeito de seu corpo, de sua história, da lógica de dominação presente dos laços em que se encontra. Não há sujeito "neutro" universal garantido por uma estrutura transhistórica. Este sujeito, paradigmático da modernidade psicanalítica, tem por modelo um modo branco e europeu de existir.
Se, por um lado, Freud, ao ser cobrado por Anna O a dar-lhe ouvidos, tirou a histeria do silêncio, por outro, ao reduzir a leitura dos sintomas de Dora às suas fantasias sexuais, não pode ouvir o que poderia haver de violência no assédio pedófilo ao qual foi submetida na trama entre sua família e a família K. De qualquer modo, nenhuma nota freudiana ao lugar de poder do Sr K diante da filha adolescente dos amigos e pouco esforço em ouvir nos sintomas desta a tentativa de resposta de um sujeito numa relação desigual.
Certa vez, ouvindo uma boa ideia de um ato transformador sendo dita por um analisante negro eu perguntei: "e por que não?". E ouvi: "eu gostaria de ter esta autoconfiança do homem branco." Neste fragmento o conteúdo pouco importa. E o que me ensinou esse analisante, ao interpretar a colonialidade da minha intervenção, é que devo considerar o quanto os lugares de enunciação estão marcados por uma estrutura de poder, capaz de marcar as respostas fantasmáticas e os medos traumáticos desse sujeito.
Lembremos do que Paul B. Preciado nos disse sobre seus analistas:
"O êxito ou fracasso de minhas análises dependeu em grande medida não da lealdade dos analistas a Freud, Klein ou Lacan, senão, pelo contrário, de sua 'infidelidade' ou, para dizê-lo de outro modo, de sua criatividade, de sua capacidade para sair da 'jaula'. Durante diferente sessões, pude observar como todos meus analistas tiveram que lutar com e contra o marco teórico no qual haviam sido educados para poder escutar uma pessoa trans sim antepor o diagnóstico, a crítica ou a reforma." (PRECIADO, P.B. Yo soy el monstruo que os habla: informe para una academia de psicoanalistas, Barcelona: Editorial Anagrama, 2020, p. 72, [tradução minha]).
Retomemos o texto de Mignolo:
"O pensar decolonial mediante o conceito ilumina fenômenos históricos, sociais, psicológicos, subjetivos, estéticos, econômicos e políticos, ocultos sob o manto das disciplinas, todas elas fundadoras da ideia de modernidade e sustentados pelo imaginário centrado nos conteúdos (o enunciado) e os dizeres (as enunciações) que fundam o conteúdo." (MIGNOLO, W.D. Idem, p. 15).
Nas próprias instituições de psicanalistas podemos ouvir enunciações de legitimidade na fabricação e manutenção da teoria nas mãos daqueles que bem sabem zelar por sua conservação e preservação diante de eventuais "ataques" epistemológicos. Sabemos que, nestas manobras que são de manutenção de poder, o conteúdo debatido é menos importante do que os efeitos desautorizantes - e dessubjetivantes, portanto - pretendidos.
Em nome da proteção da teoria mediante ataques epistemológicos alienígenas, as figuras de poder, guardiães da ordem psicanalítica tradicional, fazem uso de suas insígnias institucionais para objetificar os inimigos. A possibilidade de escutarem o que teriam a dizer e refletirem criticamente a própria teoria esta descartada, pois não se trata de uma relação entre saberes distintos, mas de ameaça de poder.
Além do já achincalhado "Freud explica", é possível fazermos uma lista de jargões utilizados com este propósito: "você ainda não entendeu a teoria"; "nossos percursos são diferentes"; "mas isto já estava em Freud ou em Lacan"; "isto não é clínico" etc.
Terminemos com outro trecho de Preciado:
"Frente a uma psicanálise despolitizada, proponho uma clínica radicalmente política que comece com um processo de despatriarcalisação e descolonização do corpo e do aparato psíquico." (PRECIADO, P.B. Idem, p. 72).
DEZEMBRO 2021
CCXCIII
"Não é exagero dizer que as mulheres eram tratadas com a mesma hostilidade e com o mesmo senso de distanciamento que se concedia aos 'índios selvagens' na literatura produzida depois da Conquista. O paralelisrno não é casual. Em ambos os casos, a depreciação literária e cultural estava a serviço de um projeto de expropriação. Como veremos, a demonização dos povos indígenas americanos serviu para justificar sua escravização e o saque de seus recursos. Na Europa, o ataque contra as mulheres justificou a apropriação de seu trabalho pelos homens e a criminalização de seu controle sobre a reprodução. O preço da resistência era, sempre, o extermínio. Nenhuma das táticas empregadas contra as mulheres europeias e contra os sujeitos coloniais poderia ter obtido êxito se não tivesse sido sustentada por uma campanha de terror. No caso das mulheres europeias, foi a caça às bruxas que exerceu o papel principal na construção de sua nova função social e na degradação de sua identidade social. A definição das mulheres como seres demoníacos e as práticas atrozes e humilhantes a que muitas delas foram submetidas deixaram marcas indeléveis em sua psique coletiva e em seu senso de possibilidades." (FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017, p. 203).
Na contundência desta passagem de Silvia Federici vemos ressaltar a força terrorista e devastadora do Estado capitalista. Um extermínio "domesticador" das mulheres ocorreu na Europa à mesma época do extermínio de populações indígenas nas colônias.
Como não pensar que, assim como encontramos o peso do extermínio na luta de populações massacradas, também deveríamos estar em condições de ouvi-lo na luta de mulheres sobreviventes? Afinal, o extermínio de indígenas e de mulheres nunca deixou de acontecer, desde aquela época.
Além disso, caberia também à psicanálise tomar para si a investigação de quais marcas indeléveis foram deixadas na psique coletiva feminina como herança daqueles séculos e o quanto tais marcas, ao afetarem o que Federici chamou de senso de possibilidades, não contribuem com a lógica objetificadora e dessubjetivante que a dominação, instalada a ferro e fogo àquelas eras, ainda faz existir, mas agora como lógica naturalizada.
Mas vale dizer que, ao contrário disso, é mais comum ainda hoje vermos a psicanálise e muitos psicanalistas unirem forças à reificação dessa lógica objetificadora e dessubjetivante, ao tornarem estrutural e transhistórico, simplesmente, que o sujeito seja uma condição associada ao modo masculino de sexuação e o objeto, respectivamente, ao lado feminino.
Em seguida, podemos ler na autora o seguinte:
"A partir desta derrota, surgiu um novo modelo de feminilidade: a mulher e esposa ideal - passiva, obediente, parcimoniosa, casta, de poucas palavras e sempre ocupada com suas tarefas. Esta mudança começou no final do século XVII, depois de as mulheres terem sido submetidas a mais de dois séculos de terrorismo de Estado. Uma vez que foram derrotadas, a imagem da feminilidade construída na 'transição' foi descartada como uma ferramenta desnecessária, e uma nova, domesticada, ocupou seu lugar. Embora na época da caça às bruxas as mulheres tenham sido retratadas como seres selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas, incapazes de autocontrole, no século XVIII o cânone foi revertido. Agora, as mulheres eram retratadas como seres passivos, assexuados, mais obedientes e morais que os homens, capazes de exercer uma influência positiva sobre eles." (Idem, p. 205).
Difícil não reconhecermos os ecos do modelo de feminilidade resultante da derrota das mulheres nas passagens freudianas da mulher como passiva, objeto e irracional. Por outro lado, difícil também não interrogarmos se, na aproximação entre mulher e loucura - seja via o empuxo à mulher na psicose ou via o empuxo à loucura das modalidades não-todo-fálicas de gozo - ainda há, mesmo que desbotadas, tinturas das mulheres retratadas como "seres selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas, incapazes de autocontrole".
(Basta que uma mulher saia do cânone revertido a partir do século XVIII para que o diagnóstico de "histérica" - que veio também para servir à diferenciação contemporânea entre bruxas e não-bruxas - seja sacado entre psicanalistas.)
Um lembrete de uma das afirmações de Lacan sobre isso:
"Assim, o universal do que elas desejam é a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz. É por isso mesmo que são não todas, isto é, não loucas-de-todo, mas antes, conciliadoras, a ponto de não haver limites para as concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens." (LACAN, J. [1974]. Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 358).
Como um todo universalizado A Mulher não existe, diz Lacan. Se existisse, se as mulheres fossem "loucas de/pelo todo" e fizessem conjunto, seriam loucas. Sendo não-todas, deixam de ser loucas para serem ilimitadamente conciliadoras, a ponto de se lançarem, por um homem, em devastação. Se a mulher existe, a loucura, se não existe, devastação.
As marcas indeléveis estão aí para serem escutadas pela psicanálise, na dialética que podemos traçar entre a loucura das bruxas ("imagem da feminilidade construída na 'transição'" - séculos XV a XVIII) e a concessão absoluta das santas (cânone revertido - século XVIII, se reconhecermos a interrogação mais consistente do "cânone" a partir dos movimentos feministas da primeira onda nos primeiros anos do século XIX).
Mas fechar os ouvidos à história destas marcas é um caminho que não cabe mais à psicanálise se ela não quer ser reconhecida como um capítulo importante do Malleus Maleficarum do século XX.
CCXCII
Num pequeno artigo intitulado "o rastro e a cicatriz: metáforas da memória", encontramos a seguinte passagem de Jeanne Marie Gagnebin sobre a condição contemporânea do rastro e, podemos dizer, a sua relação com o "ler o que não foi escrito", conforme proposto por Benjamin em seu fragmento sobre a faculdade mimética.
"Agora a escrita não é mais um rastro privilegiado, mais duradoura do que outras marcas da existência humana. Ela é rastro, sim, mas no sentido preciso de um signo ou, talvez melhor, de um sinal aleatório que foi deixado sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações, que não possui, portanto, referência linguística clara. Rastro que é fruto do acaso, da negligência, às vezes da violência; deixado por um animal que corre ou por um ladrão em fuga, ele denuncia uma presença ausente - sem, no entanto, prejulgar sua legibilidade. Como quem deixa rastros não o faz com intenção de transmissão ou de significação, o decifrar dos rastros também é marcado por essa não-intencionalidade. O detetive, o arqueólogo e o psicanalista, esses primos menos distantes do que podem parecer à primeira vista, devem decifrar não só o rastro na sua singularidade concreta, mas também tentar adivinhar o processo, muitas vezes violento, de sua produção involuntária. Rigorosamente falando, rastros não criados - como são outros signos culturais e linguísticos -, mas sim deixados ou esquecidos." (GAGNEBIN, J.M. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória. In: Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 113).
Gagnebin faz saltar do sentido contemporâneo do rastro - tal como ele pôde ser entendido a partir do século XVIII, com a ampliação da consciência da fragilidade e caducidade das criações humanas - sua dimensão real: "um sinal aleatório que foi deixado sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações, que não possui, portanto, referência linguística clara". Essa marca que insiste por não significar e que, não obstante, carrega a significância na contingência de sua mera existência, isto é, contém a significação como potencialidade e devir, é uma marca acidental prenhe da transmissão de um saber-testemunho não-consciente.
O acesso ao saber-testemunho nela possível pressupõe a recusa radical de sua incessante ilegibilidade. Para que algo ali se leia é necessário, portanto, considerar tais marcas um arquivo de relações de semelhanças, sensíveis ou não, por meio de uma inteligência mimética equivalente àquela que fez os antigos povos buscarem ler nas estrelas os acontecimentos futuros. A decifração dos rastros é uma operação lógica de negação da ilegibilidade do ilegível, ou seja, ler o que não foi escrito, portanto.
Difícil não pensarmos o parentesco desses rastros, "fruto do acaso, da negligência, às vezes da violência", com as marcas traumáticas de uma pessoa, um grupo, uma geração, de sobreviventes de toda uma era. O trabalho de investigação e decifração de marcas-rastros, ao qual se dedica um psicanalista, tem menos relação com os documentos oficiais e as escritas intencionais, daquelas que os sujeitos querem postar e deixar para a posteridade como legado pessoal, do que com as marcas que ele carrega quase sem saber/querer, marcas que nele aconteceram ou foram nele deixadas, esquecidas. Por serem marcas que não foram voluntariamente produzidas, como rastros de acontecimentos do/no sujeito, ou rastros de fuga desse sujeito para seus abrigos protetores, ainda que objetificantes, um psicanalista busca também neles uma leitura do que não foi escrito.
"Ao juntar os rastros/restos que sobram da vida e da história oficiais, poetas, artistas e mesmo historiadores [e, por que não, psicanalistas?], na visão de Benjamin, não efetuam somente um ritual de protesto. Também cumprem a tarefa silenciosa, anônima mas imprescindivel, do narrador autêntico e, mesmo hoje, ainda possível [...]" (Idem, p. 118).
Ao vasculhar es escombros da subjetividade em busca de índices dos acontecidos traumáticos, um psicanalista joga luz aos rejeitos de significações fracassadas, de sentidos fragmentados, de percepções impedidas, visando dar ao sujeito a chance de deixá-los constelar e retomar a experiência (Erfahrung), que entrou em declínio com o fim da narração, e o que, desta, Benjamin coloca como principais elementos: "a continuidade entre as gerações, a eficácia da palavra compartilhada numa tradição comum e a temática da viagem de provações, fonte da experiência autêntica" (Idem, p. 109).
Na narração, que o conjunto dos rastros permite compor por sua decifração/tradução, podemos ouvir os ecos de gerações derrotadas. Verter os rastros esquecidos em narrações de histórias recalcadas é o trabalho de forçar simbólico na dimensão mais opaca da memória: é a metaforização das cicatrizes. E a cicatriz metaforizada não é outra coisa senão a palavra capaz de atravessar gerações com a eficácia de tocar sujeitos e neles aquecer o mesmo desejo de transformação outrora calado sob o peso da violência da dominação silenciadora.
CCXCI
O que leva lacanianos a falarem de pai nas fórmulas da sexuação? As múltiplas possibilidades de sexuação - lésbicas, gays, bissexuais, transessuais, queers, intersexos, assexuais, mulheres, homens etc - não têm nada a ver com o pai e a filiação.
Por que colocar, diante do furo aberto pela ininscritibilidade da relação sexual, um pai não castrado - fantasia de Freud - como tampão?
Por que fazer da sexuação um processo que tem de passar pelo pai do Freud?
NOVEMBRO 2021
CCXC
Discorrendo sobre a intensidade da luta de classes na Baixa Idade Média, Silvia Federici nos mostra o quanto encontramos no século XV a "idade de ouro do proletariado europeu" como decorrência da crise demográfica gerada pela peste negra em meados do século anterior.
Para barrar e destruir o avanço das revoltas proletárias o poder feudal (nobreza, Igreja e burguesia) uniu forças em torno do que a autora localiza como o surgimento do Estado. Acompanhemos os seguintes trechos:
"Todavia, no final do século XV foi posta em marcha uma contrarrevolução que atuava em todos os níveis da vida social e política. Em primeiro lugar, as autoridades políticas empreenderam importantes esforços para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes por meio de uma maliciosa política sexual, que lhes deu acesso a sexo gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade contra as mulheres proletárias. Como demonstrou Jacques Rossiaud em Medieval Prostitution (1988) [A prostituição medieval], na França, as autoridades municipais praticamente descriminalizaram o estupro nos casos em que as vítimas eram mulheres de classe baixa."(FEDERICI, S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017, p. 103).
E mais adiante, o seguinte:
"A legalização do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres, qualquer que fosse sua classe. Também insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período. Os primeiros julgamentos por bruxaria ocorreram no final do século XIV; pela primeira vez, a Inquisição registrou a existência de uma heresia e de uma seita de adoradores do demônio completamente feminina. Outro aspecto da política sexual fragmentadora que príncipes e autoridades municipais levaram a cabo com a finalidade de dissolver o protesto dos trabalhadores foi a institucionalização da prostituição, implementada a partir do estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por toda a Europa." (Idem, p. 104-5).
Para acrescentar as consequências da contrarrevolução para os homossexuais, Federici coloca no texto a seguinte nota de rodapé:
"Assim, a proliferação de bordéis públicos foi acompanhada de uma campanha contra os homossexuais que se estendeu até mesmo a Florença, onde a homossexualidade era uma parte importante da tessitura social 'que atraía homens de todas as idades, estados civis e níveis sociais'. A homossexualidade era tão popular em Florença que as prostitutas costumavam usar roupas masculinas para atrair seus clientes. Os sinais de mudança vieram de duas iniciativas introduzidas pelas autoridades em 1403, quando a cidade proibiu os 'sodomitas' de assumirem cargos públicos e instituiu uma comissão de controle dedicada a extirpar a homossexualidade: o Escritório da Decência. Significativamente, o primeiro passo tomado pelo Escritório foi preparar a abertura de um novo bordel público, de tal forma que, em 1418, as autoridades ainda continuavam buscando meios para erradicar a sodomia 'da cidade e do campo' [...]. Sobre a promoção da prostituição financiada publicamente como remédio contra a diminuição da população e a 'sodomia' por parte do governo florentino, ver também Richard c. Trexler [...]." (Idem, p. 105).
E a autora conclui:
"É difícil discernir, de forma retrospectiva, até que ponto esse 'recurso sexual' ajudou o Estado a disciplinar e dividir o proletariado medieval. O que é certo é que esse new deal foi parte de um processo mais amplo que, em resposta à intensificação do conflito social, levou à centralização do Estado como único capaz de confrontar a generalização da luta e de preservar as relações de classe." (Idem, p. 106-7).
Este conjunto de citações de Federici, do capítulo final da primeira parte de seu livro, deixa muito evidente que a redução das mulheres a objetos sexuais fez parte de um programa de contrarrevolução coordenada da burguesia, nobreza e clero da Baixa Idade Média. Um modo de destruir a "idade de ouro do proletariado europeu".
A autora destaca com veemência que as políticas sexuais ali adotadas tiveram como objetivos "cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes", "dissolver o protesto dos trabalhadores", remediar "a diminuição da população" (do que fez parte a proibição de relações homossexuais), "disciplinar e dividir o proletariado medieval", além de preparar "o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período" - uma guerra contra as mulheres pelo controle estatal das funções reprodutivas da força de trabalho.
Não é pouco correlacionar a contrarrevolução para a manutenção da dominação da classe trabalhadora da Baixa Idade Média com a institucionalização da coisificação da mulher e com a centralização do poder estatal.
"Se eles [os trabalhadores] foram derrotados, foi porque todas as forças do poder feudal - a nobreza, a Igreja e a burguesia -, apesar de suas divisões tradicionais, os enfrentaram de forma unificada por medo de uma rebelião proletéria. Com efeito, a imagem que chegou a nós de uma burguesia em guerra permanente contra a nobreza, e que levava em suas bandeiras o clamor pela igualdade e pela democracia, é uma distorção." (Idem, p. 107).
Os argumentos e as análises de Federici nos põem a pensar em diversas distorções, mas a principal delas, tendo em vista as finalidades feministas da autora, diz respeito à ocultação secular do lugar da mulher no processo de constituição da classe trabalhadora que chegará, não sem muitas lutas, às formas com as quais a encontramos no capitalismo.
O Estado Moderno surge absolutamente fundado pela intensificação massiva da dominação sobre as mulheres. A misoginia e a homofobia chegaram à Idade Moderna como práticas de Estado. Sabemos como, muito rapidamente, o racismo veio se somar a estas também como prática estatal.
Não deve ser à toa que o conservadorismo quase medieval dos supremacistas brancos, quando alcança o poder, traz dos subterrâneos da história, entre outras, as mesmas práticas.
Se, como Freud deixou anotado, "com os neuróticos, é como se estivéssemos numa paisagem pré-histórica - no Jurássico, por exemplo. Os grandes sáurios ainda andam por ali [...]" (FREUD, S. (1938). Achados, ideias, problemas. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1988, vol. XXIII, p. 317), seguem também "os grandes sáurios" da Idade Média a passear por nossas neuroses.
Já não é tempo, por exemplo, de percebermos que, considerar o homem como quem tem o falo e a mulher como quem, não tendo, pode vir a sê-lo para um homem, é um grande sáurio medieval? As premissas, canonizadas nas fórmulas lacanianas da sexuação, de que o sujeito estaria do lado homem e o objeto do lado mulher, não são menos o suprassumo da extração simbólico-estrutural e do prudente esvaziamento imaginário do laço sexual do que a consolidação sofisticada da avançada secularização da dominação que tem raizes no século XV?
O que nós, psicanalistas, vamos poder ouvir quando pudermos sustentar uma escuta decolonial? Talvez possamos começar a tratar também - para além dos traumas e neuroses infantis - os traumas que, com os grandes sáurios, atravessam gerações. Algo que o próprio Freud parece ter intuído na seguinte anotação: "a hipótese de existirem vestígios herdados no id altera, por assim dizer, nossos pontos de vista sobre ele" (Idem).
CCLXXXIX
"[...] a transição para o capitalismo é uma questão primordial para a teoria feminista, já que a redefinição das tarefas produtivas e reprodutivas e as relações homem-mulher nesse período, ambas realizadas com máxima violência e intervenção estatal, não deixam dúvidas quanto ao caráter construído dos papéis sexuais na sociedade capitalista. A análise que aqui se propõe também nos permite transcender a dicotomia entre gênero e classe. Se é verdade que na sociedade capitalista a identidade sexual se transformou no suporte específico das funções de trabalho, o gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural, mas como uma especificação das relações de classe." (FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p. 30-1).
A proposta fortemente defendida por Federici de que o gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural, uma vez que as tarefas produtivas e reprodutivas da relação homem-mulher foram histórica e economicamente escritas "nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo" - para lembrarmos do capítulo XXIV de Marx -, deveria ecoar também nos ouvidos dos psicanalistas que defendem que a sexuação do sujeito falante seja dividida entre dois significantes, quais sejam, homem-mulher. O gênero não é uma realidade puramente cultural, assim como não é um ato puro de inscrição estrutural de gozo.
Assim como hoje já não se passa incólume à expressão racista da psicanálise de que o sujeito, como entidade estrutural, não tem cor, em breve vamos ver o "eu nunca disse isso" dos psicanalistas que hoje ainda se assentam sobre a dimensão trans-histórica da diferença sexual, que se expressaria entre dois tipos de gozo, um masculino e outro feminino. Sob o manto da abstração e do rigor lógico segue oculta a dominação de classe e a sustentação refinada da ideologia que naturaliza o que no capitalismo se iniciou como destruição patrocinada pelo Estado.
"O sujeito não tem cor e o feminino é um semblante...": a diferença racial serve à colonização assim como a diferença sexual serve à acumulação primitiva do capital onde quer que cheguem os colonizadores e os capitalistas. Na psicanálise, por sua vez, negar escuta aos efeitos do racismo e do sexismo no corpo e no inconsciente das pessoas, em nome da universalização do sujeito falante e da constituição estrutural de seu gozo, é manter escondido o verdadeiro rosto branco/europeu/macho do ideal sustentado pelos psicanalistas que não se deixam interrogar.
Não é mais possível, sem que se queira estar cego à história mutiladora do capital, defender o conceito de feminilidade como um "fazer semblante", um lugar no discurso ou um modo de organizar o gozo, sem que seja interrogado o osso materialista deste conceito:
"[...] se na sociedade capitalista a 'feminilidade' foi construída como uma função-trabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico, a história das mulheres é a história das classes, e a pergunta que devemos nos fazer é se foi transcendida a divisão sexual do trabalho que produziu esse conceito em particular." (Idem, p. 31).
Num outro trecho, numa nota de rodapé, encontramos o seguinte:
"Essa capacidade de subverter a imagem degradada da feminilidade, que foi construída por meio da identificação das mulheres com a natureza, a matéria, o corporal, é a potência do 'discurso feminista sobre o corpo' que trata de desenterrar o que o controle masculino de nossa realidade corporal sufocou. No entanto, é uma ilusão conceber a libertação feminina como um 'retorno ao corpo'. Se o corpo feminino - como discuto neste trabalho - é um significante para o campo de atividades reprodutivas que foi apropriado pelos homens e pelo Estado e convertido em um instrumento de produção de
força de trabalho (com tudo aquilo que isso pressupõe em termos de regras e regulações
sexuais, cânones estéticos e castigos), então o corpo é o lugar de uma alienação fundamental que só pode ser superada com o fim da disciplina-trabalho que o define." (Idem, p. 33, nota de rodapé).
O corpo da mulher, como apropriado pelo Estado machista e convertido em produção de força de trabalho, como lugar de uma alienação fundamental, é um corpo traumatizado por gerações. A erotização, também dominadora, imposta ao corpo da mulher pelo olhar masculino, revela-se como pesada camada ideológica que mascara seu lugar literalmente proletário, dando ao objeto que esse corpo constitui uma espécie de contrapeso libidinal: associada ao erótico a destruição passaria camuflada. A insistência em posicionar a mulher como outro de um homem, em função do desejo dele ou como aquela que se endereça ao falo no lado do outro/homem, segue sendo colocar a mulher determinada pelo homem/Estado, cuja finalidade última é a conservação das condições de reprodução da força de trabalho. Mas entre psicanalistas resta-lhe, ainda, a condição de indeterminação como significante da falta no Outro que, com glamour intelectual, convida aos lugares-resquícios da feiticeira do período sangrento da transição ao capitalismo: "louca", "inefável", "enigma", "o Outro gozo". Seria extremamente importante que os psicanalistas se dispusessem a buscar, no genocídio da caça às bruxas, outros destes significantes que passaram de vício a virtude depois da dominação e domesticação de toda uma população de mulheres.
Em mais um trecho, também da introdução desse livro magnífico de Federici, temos o seguinte:
"[...] o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua exploração e resistência, na mesma medida em que o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos homens, forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho." (Idem, p. 34).
Por ser lugar de exploração e resistência, é notória a ambiguidade de alguns fenômenos como o que encontramos quando uma mulher sustenta a posição de ser dona e ter as decisões sobre o próprio corpo e, ao mesmo tempo, usa destas prerrogativas legítimas para, no entanto, oferecê-lo de modo objetificado aos olhares predadores masculinos. Vale ainda dizer que jamais poderia ser sustentado por um psicanalista, como encontramos às vezes, que um olhar predador seja confundido com sustentação de desejo. A objetificação imposta pelo olhar predador é da ordem da dominação e não do erotismo.
O corpo-fábrica dominado da mulher aparece também na imposição da estetização uniformizada, como retrato do corpo submetido a uma linha de montagem, mais ostensiva em nossos dias com a democratização mercantil dos avanços farmacêuticos e tecnológicos.
Mas talvez seja mais importante refletir sobre o quanto o corpo-fábrica está sendo marcado há tanto tempo que, infelizmente, ainda não é incomum encontrarmos nas análises mulheres cuja condição de objetificação é de tal modo naturalizada que faz parecer, aos ouvidos moucos à dominação, que tal fenômeno se deve a uma espécie singular e fantasmática de gozo ou a um traço estrutural da sexualidade humana. Como psicanalistas precisamos aprender a ouvir o quanto um sujeito tantas vezes agredido e ameaçado acaba encontrando, na objetificação que lhe foi imposta, o único modo de investimento possível em sua autoconservação. Descolar o sujeito desta objetificação implica mais um trabalho, sob transferência, de tratamento de traumas e de investigação e invenção de condições de sobrevivência e resistência subjetivas - trabalho analítico que implica o real, sobretudo -, do que de esvaziamentos do imaginário e de fixações eróticas.
Lembremos, ainda, do Marx da assim chamada acumulação primitiva:
"Não basta que as condições de trabalho apareçam num pólo como capital e no outro pólo, pessoas que nada têm para vender a não ser sua força de trabalho. Não basta também forçarem-nas a se venderem
voluntariamente. Na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes." (MARX, K. [1867]. A assim chamada acumulação primitiva. In: O Capital. Livro Primeiro, Volume II, Capítulo XXIV. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p.275).
O lugar dado às mulheres no contexto capitalista precisa deixar de ser visto a partir de leis naturais evidentes. A classe reprodutora da força de trabalho foi constituída ao longo de violentos séculos de educação, tradição, costume e, não menos, por condições fantasmáticas, subjetivo-estruturais, discursivas e modos de inscrição de gozo. A luta contra a objetificação histórica das mulheres pelo Estado machista e a revolução capaz de derrubá-lo não prescinde da interrogação crítica de todos estes aparelhos ideológicos e outros mais aqui não listados.
CCLXXXVIII
Em um curto relato de pesquisa sobre entrevistas com torturadores do Iraque de Saddam Hussein, o sociólogo Christopher Justin Einolf escreve o seguinte:
"A maioria dos homens entrevistados manifestava arrependimento quanto ao que tinha feito. Alguns deles atribuíram sua escolha de carreira à infância traumática em que enfrentaram a violência de pais abusivos, alcoólatras.
Um deles explicou que odiava muitíssimo o pai e 'tinha um forte desejo de se vingar dele'. Na busca de alguma coisa que lhe 'desse valor e posição', pediu emprego nas forças de segurança. Quando seu pedido foi aceito, festejou a 'feliz notícia', visto que 'iria ter poder sobre as pessoas', assim como seu pai dominador." (EINOLF, C.J. Como nasce um torturador. Disponível em: https://www.socialistamorena.com.br/como-nasce-um-torturador/ acesso em 1/10/21).
Mais adiante, o seguinte trecho:
"Os recrutas eram pressionados a se livrarem de seus sentimentos naturais de empatia e compaixão. Um recruta lembrava-se de ter ouvido que tinha de ser 'um monstro destruidor', 'de coração duro' e 'que não tivesse misericórdia pelos outros', e que tinha de deixar de ser 'um ser humano com um coração benevolente ou misericordioso'. A um outro lhe foi dito que 'nunca mostrasse qualquer clemência àqueles que quisessem prejudicar o país ou o presidente Saddam Hussein, que era como o pai da nossa casa'." (Idem).
É notório que entres os afetos e traumas que movem os torturadores estão o ódio, o medo e o amor ao pai.
Difícil não pensar na relação intrínseca entre o patriarcado e a dominação excessiva presente na constituição de um torturador.
É contra os poderes do pai e em nome deles, ao mesmo tempo - mas de modo cindido: o pai odiado na vítima, o pai amado no chefe -, que age um torturador.
Quando, na cena do golpe, o capitão bradou seu voto como homenagem ao "major Tibiriçá", convocou a horda de recrutas verdugos à pavorosa filiação hoje conhecida como bolsominion.
As milhares de mortes por descaso - pandemia de covid-19 e de violência -, dão provas terríveis da potência destruidora desta horda que, como sabemos, segue se armando.
Nos pais, nos pais dos pais, nos pais dos pais dos pais destes recrutas... aonde estão e quem são de fato os pais violentos e abusivos a serem vingados?
OUTUBRO 2021
CCLXXXVII
Sob uma perspectiva política, a ética psicanalítica do desejo é uma ética da não-objetificação. Uma ética do desejo não é uma ética narcísica, mas uma ética contra a dominação. Sem atentar-se a este segundo aspecto, ela pode cair facilmente no primeiro.
CCLXXXVI
"Imediaticidade [para Walter Benjamin] denomina uma forma de construção do sentido outra, que não a 'sígnica', na qual não existe um sentido independente do material, dos significantes e do seu movimento". (MENKE, B. citada por SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. São Paulo: Iluminuras, 2020, p. 220).
A constelação, como imagem que é dialética paralisada, é a dimensão mais instantânea e material possível do sentido. O retrato tenso da condensação, no agorajá, de seu encontro contingencial com o sopro do passado.
Não sendo sentido sígnico, a constelação não pode reclamar para si a estabilidade das significações. Sua vivacidade relampeja mais a mostração da autenticidade temporal da transmissão de afetos do que a reconstituição de uma ideia ou a representação de uma essência. Sua materialidade é prova da presença da história cristalizada no objeto atual. E o constelar, a imediaticidade pela qual a história nele se deixa ver não como registro monumental e perene da vitória, mas como ruína soterrada de um choque, cuja marca nela se fossilizou. No sentido suspenso da constelação podemos ler, por sob as falsas harmonias do todo e a acachapante afirmação do existente, a escrita da história como trauma e do trauma como história. São nos objetos esquecidos, nas mínimas cenas, nos debaixos, invisíveis e foraluzes, que a história mais costuma se refugiar, quando acossada pelos holofotes do panóptico da dominação. E a arte muitas vezes alcança o saber interrogar tais objetos ínfimos e os retirar dos silêncios. (Aos psicanalistas caberia também saber buscar, nos cantos das falas, na minúcia dos gestos, no estranho dos afetos os objetos ínfimos que guardam, amedrontados, suas histórias.)
CCLXXXV
"Assim, uma pessoa não nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento em que seu corpo e sua mente são conectados a toda uma rede de sentidos compartilhados coletivamente, cuja existência antecede a formação de sua consciência e de seus afetos." (ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 67).
A rede de sentidos cuja existência antecede a constituição do sujeito não seria o discurso traumatizante do Outro? Uma pessoa não nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento em que seu corpo é tomado pela violência de um discurso forjado em relações históricas de dominação. A concepção difundida entre psicanalistas de que, diante da sua universalidade estrutural, o sujeito não tem cor, recusa o racismo estrutural sob o manto ideológico de um estruturalismo que não vê o trauma como fruto das condições históricas e sociais. Uma rede de sentidos prévios e compartilhados também é capaz de espancar um sujeito e sair ilesa quando um conjunto enorme de práticas sociais - a psicanálise inclusa, muitas vezes - contribui para recalcar sua violência.
SETEMBRO 2021
CCLXXXIV
Na XVIIa de suas teses sobre o conceito de História, Benjamin escreve:
"O pensar envolve não apenas o movimento dos pensamentos, mas também a sua suspensão. Onde quer que o pensar se detenha subitamente numa constelação saturada de tensões, ele transmite a esta um choque, graças ao qual ele se cristaliza em mônada. O materialismo histórico só e tão somente aborda um objeto histórico quando ele se apresenta enquanto mônada. Nessa estrutura ele reconhece o signo de uma suspensão messiânica do acontecido; dito de outro modo, uma oportunidade revolucionária na luta em favor do passado reprimido." (BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História: edição crítica. São Paulo: Alameda, 2020, p. 127-8).
Quando um pensar se suspende e se detém numa constelação saturada de tensões, uma sobrecarga pulsional, um choque, leva à cristalização monadológica dos elementos deste pensamento. A suspensão do pensamento é o encontro com um real, o choque em questão é um trauma e a mônada o sintoma que este processo constitui como memória sem lastro do acontecimento. Assim como o psicanalista, o materialismo histórico aborda o que se oferece enquanto mônada como objeto histórico, signo de um acontecimento repleto de tensões e investimentos afetivos e pulsionais. A oportunidade revolucionária na luta em favor do passado reprimido é o meio pelo qual o historiador - e não menos o psicanalista em seu contexto aqui equivalente - pode fazer o trauma passar à condição de causa; isto é, as tensões que viraram choque podem ser estrategicamente articuladas ao desejo de transformação, sendo-lhe uma espécie de canalização de afetos em direção à luta política contra as forças repressoras.
A imagem de um deputado ultraconservador votando pelo impedimento da primeira presidenta de um país, enquanto rende homenagens ao torturador da mesma, tem algo daquele choque, capaz de cristalizar o que ali se constelou em uma espécie de mônada que não parou mais de se repetir de diferentes maneiras. Mas esta mesma imagem, retomada como objeto histórico que é, e interrogada nas mais variadas tensões e dobras temporais que ali se condensaram, pode acordar afetos e recolocar em movimento o pensar que ali se suspendeu. A mesma cena pode servir de signo de uma luta contra tudo o que aquele gesto veio reprimir. A força da manifestação "ele não", como movimento político de mulheres, foi prova disso.
Como propõe Seligmann-Silva, em Benjamin encontramos a suposição de uma "história das paixões e de emoções represadas e que rompem diques" (SELIGMANN-SILVA, M. In: BENJAMIN, W. Idem, p. 59). A concepção benjaminiana de história, atravessada pela noção freudiana de trauma, pode muito nos mostrar, de modo inverso, o quanto uma clínica do trauma se ilumina com uma concepção de história.
Os estilhaços do já ocorrido no tempo-agora é o recalcado que insiste por meio de marcas de afeto gravadas no corpo. São nos instantes de perigo que as imagens do passado se configuram ao sujeito histórico (tese VI de Benjamin), assim como medos e pânicos supostamente descabidos têm algo a dizer sobre imagens longínquas buscando passagem para a voz do tempo-agora. O trabalho do psicanalista, orientado pelo historiador de Benjamin, deve considerar que "apenas tem o dom de atiçar no passado aquelas centelhas de esperança o historiógrafo atravessado por esta certeza: nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer". (BENJAMIN, W. Idem, p. 115-6).
Interrogar o trauma politicamente é ler nos eventos de cristalização sintomática das tensões um desejo de transformação que foi interrompido. Por isso, denunciar a dominação muitas vezes presente no evento traumático é fundamental para acordar nele, na forma do sujeito desejante, a centelha de esperança que ali se congelou.
Enquanto os psicanalistas mantiverem o pudor de trabalhar com a categoria da dominação, não poderão escutar os fantasmas do passado histórico nas fantasias singulares de cada um. Os corpos são historicamente marcados e objetificados numa sociedade mutiladora. Reduzir isso à qualquer espécie de crítica à "primazia do princípio de realidade" ou em nome do preceito de que "a revolução não passa pelo divã" é, ao menos, uma simplificação perigosa, quando não uma cegueira ideológica necessária à perpetuação da dominação dos sujeitos que buscam análises.
CCLXXXIII
"[...] não é possível encontrar um fundamento do sujeito universal abstrato - e incorpóreo, como acrescentará Butler - sem perceber o seu mecanismo de exclusão. No deslocamento do sujeito abstrato para sujeitos e sujeitas marcados/as não apenas por gênero, mas também raça, classe, lugar de moradia, religião, local de nascimento etc - sobretudo etc -, seria possível pensar uma psicanálise interseccional porvir? Importante lembrar que a interseccionalidade é o modo com o qual Butler vai tentar uma saída para nem fazer apenas política identitária, nem concordar com o diagnóstico de um mero retorno à luta de classes como estratégia política. Com a interseccionalidade, trata-se de pensar a política a partir da reivindicação do reconhecimento a todo sujeito cujo corpo estiver marcado por vulnerabilidade, precariedade e subalternidade." RODRIGUES, C. Identificação, identidade, identitário e alguns mal-entendidos. In: COSSI, R.K. Faces do sexual. São Paulo: Aller, 2019, p. 75-6).
O que seria uma clínica psicanalítica que levasse em conta a interseccionalidade? Pode a psicanálise abrir mão de seu sujeito pretensamente universal e abstrato? "Pretensamente" porque, como demonstrou Ana Gianesi:
"[...] a afirmação da primazia da diferença sexual e a negação da identidade do dominador parecem convergir harmonicamente.
A interseccionalidade, entretanto, não prevê que classe, raça e gênero possam ser pensadas de modo estanque ou de forma que não estejam profundamente inter-relacionadas.
A luta pela superação das normatividades de gênero, dentro inclusive do campo psicanalítico, traz consigo as lutas de classe e antirracista, inevitavelmente.
Quiçá seja possível 'entender' a obra lacaniana e, consubstancialmente, criticá-la, transformá-la.
Como demover o ranço do falocentrismo, do Homem-cis-hetero e branco (no lugar de sujeito absoluto, supostamente - ou cinicamente - sem 'identidade') de nossa práxis?" (GIANESI, A.P.L. A crítica da crítica à crítica (XXVIII). Disponível em: https://www.minima-scene.com.br/feminis-quaestiones/).
Como pensar uma clínica dos marcadores de discriminação sem uma retomada política do trauma? No outros termos: pensar o trauma não somente por sua relação com a sexualidade (com o erótico), mas também por sua relação com a autoconservação (o que implica, do lado do Outro, o gozo destrutivo do dominador).
Dificilmente uma psicanálise interseccional poderá advir sem que se critique o porquê, desde o interior de seu campo, segue-se transformando em abstração linguística, lógica ou discursiva o que tem também, e fundamentalmente, dimensão histórica, visceral e mutiladora.
Trata-se de descolonizar a psicanálise.
CCLXXXII
"Minha tentativa de expressar a minha concepção de história na qual o conceito de desenvolvimento é totalmente recalcado [verdrängt] a favor do de origem. O histórico, assim compreendido, não pode mais ser buscado no leito de um curso do desenvolvimento. Como já escrevi em outro lugar [...] no lugar da imagem do leito aparece a de redemoinho. Em tal redemoinho cruzam os primórdios e o tardio, a pré e a pós-história de um fato ou, melhor ainda, um status de ambas." (BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História: edição crítica. São Paulo: Alameda, 2020, p. 167).
O histórico como redemoinho, e não como leito, permite amplas associações com o eterno retorno, de Blanqui à Nietzsche.
A tese XIV das teses sobre o conceito de História, da versão consagrada, é a apresentação do método sustentado por Benjamin para essa concepção de História:
"A história é objeto de uma construção cujo lugar é constituído não pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele que vem preenchido pelo 'tempo-agora'. Assim, para Robespierre, a Roma antiga era um passado carregado de tempo-agora, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa compreendia-se como uma Roma ressurgida. Ela citava a Roma antiga exatamente como a moda cita um traje do passado. A moda tem o faro para o atual, onde quer que ele se mova no matagal do outrora. Ela é o salto de tigre em direção ao passado. Só que esse salto se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sobre o céu livre da história, é o salto dialético, como Marx concebeu a Revolução." (Idem, p. 124-5).
Compreender a história desse modo é fundamental para entendermos o lugar dado por Benjamin à imagem.
Vejamos sobre isso um trecho da tese XII e depois um comentário de Márcio Seligmann-Silva.
O trecho da tese é o seguinte:
"A classe [trabalhadora] desaprendeu nessa escola [a socialdemocracia] tanto o ódio quanto à capacidade de sacrifício. Pois ambos se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não do ideal dos descendentes libertos." (Idem, p. 123).
E agora o comentário:
"Se o combatente luta tendo em vista a libertação do passado reprimido e não combate tendo em vista um futuro radioso, da mesma forma o historiógrafo deve alimentar a luta presente a partir das imagens dos 'antepassados escravizados'. Trata-se de uma estratégia de biopolítica das emoções, de canalização dos sentimentos de vingança, ódio e da capacidade de sacrifício a favor da revolução. Isso ocorre através de uma verdadeira guerra de imagens." (SELIGMANN-SILVA, M. In: BENJAMIN, W. Idem, p. 47).
Retomemos o que o próprio Benjamin escreveu sobre a imagem em 1929:
"[...] também na pilhéria, no insulto, no mal-entendido, em toda parte em que uma ação produz a imagem a partir de si mesma e é essa imagem, extrai para si essa imagem e a devora, em que a própria proximidade deixa de ser vista, aí se abre esse espaço de imagens que procuramos, o mundo em sua atualidade completa e multidimensional, no qual não há lugar para qualquer 'sala confortável', o espaço, em uma palavra, no qual o materialismo político e a criatura física partilham entre si o homem interior, a psique, o indivíduo, ou o que quer que seja que desejemos entregar-lhes, segundo uma justiça dialética, de modo que nenhum dos seus membros deixe de ser despedaçado. No entanto, e justamente em consequência dessa destruição dialética, esse espaço continuará sendo espaço de imagens, e algo de mais concreto ainda: espaço do corpo." (BENJAMIN, W. O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 34-5).
A imagem dos antepassados derrotados tem a força de fazer saltar o tigre no céu livre da história e alimentar o ódio e o sacrifício necessários para levar à ação os agentes até então adormecidos no continuum do tempo linear. E esta imagem só tem esse poder por fazer da dobra temporal do redemoinho da história o espaço no qual o agora e o ocorrido se encontram.
Porém, mais relevante ao psicanalista é a proposta de que a dialética em questão faz convergir o espaço de imagens e algo mais concreto: o espaço de corpo:
"Também o coletivo é corpóreo. E a physis, que para ele se organiza na técnica, só pode ser engendrada em toda a sua eficácia política e objetiva naquele espaço de imagens que a iluminação profana nos tornou familiar. Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem, dentro dela, tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias: somente então terá a realidade conseguido superar-se, segundo a exigência do Manifesto comunista." (BENJAMIN, W. O surrealismo. Idem, p. 35).
A interpenetração entre corpo e espaço de imagens, de modo a pensar na escrita neural das tensões revolucionárias, é absolutamente compatível com a tese da inscrição significante dos afetos no corpo, presente no Projeto para uma psicologia científica, que Freud escrevera em 1895 mas só viria à público em 1950, após a morte do autor e também de Benjamin.
O espaço de imagens de antepassados derrotados só poderia encontrar inervação no espaço do corpo e ali ser reconhecido como capaz de alimentar ódios e sacrifícios revolucionários se nesse corpo encontrasse ecos da escrita dos sofrimentos desses antepassados, isto é, o trauma.
A "estratégia de biopolítica das emoções, de canalização dos sentimentos de vingança, ódio e da capacidade de sacrifício a favor da revolução", equivalente ao "mobilizar para a revolução as energias da embriaguez" (Idem, p. 32), é uma política benjaminiana de forçar no trauma e na melancolia um sujeito histórico adormecido sob o peso objetificante da mutilação cotidiana. Sua aposta parece ser a de fazer a voz dos sintomas social e historicamente produzidos assumir sua condição desejante com a força do desejo impedido, derrotado, silenciado dos combatentes do outros tempos. O espaço de imagens em sua inervação corporal é o lugar no qual afetos do agora encontram-se com o retorno da indignação daqueles. No salto tigrino no céu da história ou no redemoinho da mesma há algo do retorno do recalcado a fazer da resposta à ocorrência traumática uma causa para o desejo.
CCLXXXI
"Existe uma semelhança evidente entre o esquema freudiano do só-depois (posterioridade) e o mecanismo psicótico da foraclusão destacado por Lacan: o que não foi admitido no simbólico (o que foi foracluído) reaparece no real (sob a forma de alucinação). Ora, essa não-simbolização é justamente o primeiro tempo descrito por Freud. [...] Seria esse o caso tipicamente neurótico: num 'primeiro tempo' [...] isolar-se-ia um 'simbólico pré-simbólico' (parafraseando Freud) do sujeito; no segundo tempo, seria retomado só depois, 'simbolizado' por ele. Na psicose, no primeiro tempo, seria um real bruto que se imporia, evidentemente não simbolizado pelo sujeito, mas oferecendo também para toda a tentativa ulterior de simbolização um núcleo irredutível." (LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. (1964). Fantasia originária, fantasias das origens, origens da fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 48).
A inaugural teoria freudiana do trauma pressupõe uma relação bastante singular entre duas cenas. Na primeira cena um determinado evento não encontra amparo simbólico. Na segunda cena, à qual a primeira se associa por semelhanças formais, realiza-se, pela formação do sintoma, o trabalho até então não feito de simbolização.
A presença aleatória de elementos significantes coincidentes entre as duas cenas permite que aconteça entre elas o reconhecimento mimético necessário para a operação de uma substituição metafórica de uma pela outra. Os afetos e pulsões não ligados em uma aparecem agora ligados na outra, fazendo desta segunda cena uma fantasia capaz de "responder" pulsional e simbolicamente ao que, na primeira cena, não encontrou lugar no aparelho psíquico.
Podemos pensar, então, a simbolização como um dos papéis da fantasia, no segundo tempo do trauma, do que não pode ser simbolizado no primeiro; algo que não acontece, entretanto, na psicose. Faltaria à psicose, talvez, o trabalho de ligação pulsional permitido pela fantasia na neurose.
Neste sentido, a fantasia teria como uma de suas funções forçar simbólico, coalescer, ligar eroticamente as pulsões que, num primeiro evento, não teriam encontrado meios de se ligar no aparelho psíquico. A dimensão masoquista de diversas fantasias talvez se deva à coalescência erótica de pulsões originalmente apoiadas em alguma forma de violência, presente em todo trauma. Mas o mecanismo mesmo de coalescência e a necessidade em si de ligação das pulsões destrutivas, deveriam ser pensados como tributários da autoconservação, ainda que a erotização venha, pulsionalmente, participar do processo.
Se, de um lado, temos a fantasia como possibilidade de simbolização e representação erótica do desejo, de outro, temos a fantasia também a serviço da simbolização e representação defensiva, no caso do trauma, em relação a um gozo alheio.
Mas o ensaio de Laplanche e Pontalis para a revista Les Temps Modernes, em 1964, nos abre ainda a discussão da possibilidade de uma outra função para as fantasias:
"Sobre a máscara pseudocientífica da filogênese, no recurso aos traços mnêmicos herdados, seria necessário, portanto, saber reconhecer a necessidade em que Freud se encontra de postular a anterioridade de uma organização significante, em relação à eficácia do evento e do conjunto do significado. Nessa pré-história mítica da espécie, afirma-se a exigência de uma pré-estrutura inacessível ao sujeito, escapando às suas possibilidades de apreensão e às suas iniciativas, à sua 'cozinha' interior (tão rica em ingredientes que as nossas novas feiticeiras querem imaginar-lhes a composição). Mas Freud seria literalmente maniatado por sua própria conceptualização; ele reencontraria, nessa falsa síntese que é o passado da espécie humana conservado em esquemas hereditariamente transmitidos, a oposição que procurava em vão ultrapassar entre o evento e a constituição. Que assim seja. Não nos apressemos, entretanto, em substituir a 'explicação filogenética' por uma interpretação de tipo estruturalista. Aquém da história do sujeito mas, não obstante, na história, discurso e cadeia simbólica, embora impregnada de imaginário, estrutura, embora arrumada a partir de elementos contingentes, a fantasia originária é, em primeiro lugar, fantasia e como tal marcada por certos traços que a tornam dificilmente assimilável a um puro esquema transcendente, mesmo que venha a fornecer à experiência suas condições de possibilidade." (Idem, p. 55-6).
Em aparente desacordo à concepção de uma estrutura transcende da fantasia, mas admitindo a possibilidade de um esquema que ultrapasse os eventos da vida de um sujeito, sendo transmitido, sobretudo, pelo discurso entre gerações, mas não sem carregar consigo a história das mesmas, a noção de uma fantasia originária (ou primitiva), uma proto-fantasia, longe de ser filogenética, é o que da história se marca inconscientemente nos corpos viventes.
Vejamos como o próprio Freud descreve sua hipótese de uma fantasia primitiva:
"Acredito que essas fantasias primitivas, como prefiro denominá-las, e, sem dúvida, também algumas outras, constituem um acervo filogenético. Nelas, o indivíduo se contacta, além de sua própria experiência, com a experiência primeva naqueles pontos nos quais sua própria experiência foi demasiado rudimentar. Parece-me bem possível que todas as coisas que nos são relatadas hoje em dia, na análise, como fantasia - sedução de crianças, surgimento da excitação sexual por observar o coito dos pais, ameaça de castração (ou, então, a própria castração) - foram, em determinada época, ocorrências reais dos tempos primitivos da família humana, e que as crianças, em suas fantasias, simplesmente preenchem os claros da verdade individual com a verdade pré-histórica. Repetidamente tenho sido levado a suspeitar que a psicologia das neuroses tem acumuladas em si mais antiguidades da evolução humana do que qualquer outra fonte." FREUD, S. (1917). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago. 1996, p. 373).
E dois anos antes, publicou o seguinte:
"Entre o acervo de fantasias inconscientes de todos os neuróticos, e provavelmente de todos os seres humanos, existe uma que raramente se acha ausente e que pode ser revelada pela análise: é a fantasia de observar as relações sexuais dos pais. Chamo tais fantasias - da observação do ato sexual dos pais, da sedução, da castração e outras - de 'fantasias primevas' [...]. O ruído acidental, assim, desempenhou meramente o papel de um fator provocador que ativou a fantasia típica de estar sendo ouvida sem saber, o que consistiu um componente do complexo parental." FREUD, S. (1915). Um caso de paranoia que contraria a teoria psicanalítica da doença. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 276).
Não é preciso que pensemos que a possibilidade do evento traumático se limite a cenas presentes na vida de um sujeito. Traumas ocorridos em gerações anteriores e até mesmo a violência cotidiana de populações inteiras submetidas à dominação possuem a força de irromper no aparelho psíquico de modo real, sem encontrar simbolização imediata. O trabalho de ligação do real da violência sofrida pode precisar de gerações para ser concluído ou mesmo atravessar gerações ligando-se por fantasias que se assemelham e que não encontram na ontogênese o equivalente à primeira cena da teoria freudiana ou algo que possa responder pelo evento traumático longínquo.
Laplanche e Pontalis parecem acenar a esta possível função da fantasia quando associam o privilégio dado por Freud ao escutado não somente à primazia formal do significante, mas também à história, como o ruído que interpela o sujeito de modo inevitável:
"Sem querer dar excessiva ênfase a esses textos fragmentários, em que Freud parece ter sobretudo em vista as fantasias paranoicas, não se pode deixar de indagar de onde vem esse privilégio concedido ao escutado. Em nossa opinião, pode-se apontar dois motivos. Um relaciona-se com o sensorium em causa: o escutado, quando irrompe, quebra a continuidade de um campo perceptivo indiferenciado e ao mesmo tempo é sinal (o ruído espiado e percebido na noite), colocando o sujeito em posição de interpelado; nessa medida, o protótipo do significante pertence ao escutado, ao ouvido, mesmo que encontre equivalentes nos outros registros sensoriais. Mas o escutado também é - segundo motivo a que Freud faz explicitamente alusão na passagem em questão - a história, ou a lenda, dos pais, dos avós, do ancestral: o dito ou o ruído familiar, esse discurso falado ou secreto, preliminar ao sujeito, no qual ele deve advir e localiza-se." (LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. Idem, p. 59-60).
Quanto das ideologias que dessubjetivam grupos minoritarizados - vítimas históricas de violências - não encontram, em fantasias historicamente (e não filogeneticamente) constituídas na forma de proto-fantasias, que podem se sedimentar como segunda natureza, o suporte masoquista necessário para a aceitação passiva e silenciosa do poder?
A fantasia, nesse sentido, precisa ser interrogada também politicamente como instrumento de dominação. E xs psicanalistas não podem se furtar a ouvir a voz dxs dominadxs que se esconde em tais esquemas fantasmáticos. Mas vale, nesses casos, ao ouvir a fantasia, questionar qual violência ela pretende ligar pulsionalmente, e não qual satisfação inconsciente o sujeito nela esconde.
Assim como a ideologia mascara a luta de classes, a fantasia pode servir para mascarar a violência traumática sob a responsabilização distorcida de um sujeito muitas vezes ouvido fora da história.
CCLXXX
"Salúba Nanã Buruquê!
Fui chamado de cordeiro mas não sou cordeiro não
Preferi ficar calado que falar e levar não"
(versos de Cordeiro de Nanã, de Mateus Aleluia e Dadinho)
"Em relação à situação traumática, na qual o paciente está desamparado, convergem perigos externos e internos, perigos reais e exigências instintuais. Quer o ego esteja sofrendo de uma dor que não para ou experimentando um acúmulo de necessidades instintuais que não podem obter satisfação, a situação econômica é a mesma, e o desamparo motor do ego encontra expressão no desamparo psíquico." (FREUD, S. (1926). Inibições, sintomas ansiedade. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XX, p. 163).
O corpo-pulsional-falante ou a somateca, como propõe Preciado (PRECIADO, P. B. Yo soy el monstruo que os abla. Editorial Anagrama: Barcelona, 2020, p. 44), é um museu vivo de cruzamentos de processos somáticos, pulsionais e motores. O desamparo motor e psíquico ao qual é submetida a vítima do trauma precisa ser entendido a partir da circunstância da dor que não para e do acúmulo de necessidades que não podem obter satisfação.
Como uma história de dominação, que impõe ao outro dores e insatisfações, marca o corpo-pulsional-falante?
"Esta situação, a da dor, é situação diversa para Freud da de projeção, em que o desprazer é expulsado. Quando se exerce um contra-investimento, mais do que uma expulsão o que ocorre é um esforço de neutralização do estímulo doloroso, mas à custa de incorporar a dor no próprio corpo. [...] Consideramos ademais que o conta-investimento energético, que circunda a zona dolorida, transforma a região circundante em mucosa erógena, e daí que, no esforço de coalescência do trauma, da pulsão de morte, a dor possa converter-se em excitação sexual. Com isso queremos dizer que o contra-investimento converte a zona sobre a qual recai num lugar em que se registram magnitudes (grandezas) de prazer ou de desprazer, como habitualmente se observa nas zonas erógenas. [...] Entronizou-se no corpo um processo em que o estímulo álgico é incorporado à corrente libidinal, com subtração da energia que era investida noutros lugares. Nisso encontramos, precisamente, o caráter auto-erótico da coalescência (ligação) do trauma, ao fracassar o mecanismo projetivo que teria lançado para fora do corpo o objeto desprazeroso e teria permitido a fuga ou a defesa perante ele. Esse prazer orgânico, auto-erótico, sadomasoquista, é consequência do esforço por neutralizar a dor somática mediante o contra-investimento." (MALDAVSKY, D. Estruturas narcísicas. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 47-8).
Nos trechos acima David Maldavsky desdobra com transparência a metapsicologia do trabalho do aparelho psíquico de neutralização do trauma, que o faz passar de excesso pulsional não ligado para manifestação erótica sadomasoquista. É importante destacar que o mecanismo descrito se caracteriza pelo encontro de processos somáticos e pulsionais capazes de gerar traços mnêmicos, isto é, de escrever afetos no corpo.
Em Freud isto aparece do seguinte modo:
"O desprazer específico do sofrimento físico provavelmente resulta de que o escudo protetor tenha sido atravessado numa área limitada. Dá-se então um fluxo contínuo de excitações desde a parte da periferia relacionada até o aparelho central da mente, tal como normalmente surgiria apenas desde o interior do aparelho. E como esperamos que a mente reaja a essa invasão? A energia catéxica é convocada de todos os lados para fornecer catexias suficientemente altas de energia nos arredores da ruptura. Uma 'anticatexia' em grande escala é estabelecida, em cujo benefício todos os outros sistemas psíquicos são empobrecidos, de maneira que as funções psíquicas remanescentes são grandemente paralisadas ou reduzidas. Devemos empenhar-nos em extrair uma lição de exemplos como esse e utilizá-los como base para nossas especulações metapsicológicas." FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, vol. XVIII,1996, p. 40-1).
Mas cumpre-nos notar o quanto que, com o desenvolvimento e a sofisticação do aparelho psíquico, tal como o concebe Freud, condições posteriores à constituição de um eu permitem combinar a incorporação da dor por contra-investimento energético com o mecanismo projetivo:
"[...] desenvolve-se no ego um afeto desprazeroso ao mesmo tempo em que se produz outro lugar, uma posição sujeito, exterior ao próprio ego, em que a pulsão sexual se consuma, em que se desenvolve o gozo. A pulsão sexual, pois, não deixa de ser satisfeita e nessas circunstâncias o ego logra consumar a finalidade pulsional embora pague o preço do masoquismo. Essa criação de outro espaço, em que um sujeito exterior [...] chega ao gozo graças ao masoquismo do ego, deriva de uma série de processos projetivos e identificatórios ao que podemos incluir - entre esses atos psíquicos - esses atos puramente internos que constituem o componente dinâmico essencial do inconsciente, e que Freud denominava de pensamentos inconscientes." (MALDAVISKY, D. Idem, p. 50-1).
A construção de um sujeito exterior como lócus de gozo para a consumação da finalidade pulsional do aparelho psíquico é justamente a função da fantasia, pensada aqui como incremento dinâmico em que o pensamento inconsciente vem se sobrepor ao contra-investimento energético. O objetivo do aparelho segue sendo o mesmo: a ligação, a coalescência do trauma por meio da neutralização da pulsão de morte pelas pulsões sexuais e de autoconservação.
Resta à construção metapsicológica freudiana, apesar de tudo, a afirmação de que o sujeito externo em questão seja, via de regra, uma criação inconsciente, fruto de um mecanismo de defesa, diante da pulsão de morte; criação baseada gramaticalmente na possibilidade de reversão contra a própria pessoa.
Como seria se e quando, efetivamente, tomássemos este sujeito externo como o lócus de onde, de fato, provem a pulsão de morte? Um sujeito externo como agente do trauma e não como criação defensiva do aparelho psíquico para o tratamento do trauma?
Por que não pensarmos as experiências de dominação como excessos traumáticos frente aos quais cumpriria ao aparelho psíquico neutralizar a pulsão de morte? Teríamos, por vezes, como consequência, uma posição masoquista inconsciente como objetificação defensiva mediante o risco concreto de destruição. Mas não se trataria, de modo algum, de uma livre erotização da condição de vítima, e sim de um esforço literalmente doloroso de neutralizar a pulsão de morte, presente no gozo do sujeito exterior, por uma construção fantasmática capaz de dar algum sentido e alguma ligação pulsional possível à violência sofrida. De modo correspondente, a dor que escapa aos recursos defensivos do eu seria neutralizada pelo processo de amalgamação da pulsão de morte pela pulsão de vida, por um contra-investimento que retiraria investimento narcísico do eu ao mesmo tempo em que colocaria o eu como objeto erotizado pelo gozo do sujeito exterior. Seria equivocado pensar tal mecanismo masoquista como concessão ou satisfação narcísica, uma vez que a violência teria sido real e a finalidade pulsional seria o princípio de constância do aparelho psíquico e não a descarga sexual, ou seja, operada pela pulsão mais em seu avatar de autoconservação do que pela pulsão sexual.
Como seria a fantasia assim compreendida?
Diante de uma experiência traumática, o masoquismo presente na fantasia se apoia nas pulsões de autoconservação, mais do que nas pulsões sexuais. Não levar em conta esta diferença corre o risco de julgar a vítima do trauma responsável por sua condição e relevar que o gozo do sujeito externo pode não ser uma produção metapsicológica.
AGOSTO 2021
CCLXXIX
"Enfim, podemos acompanhar a leitura da tradução de Gilgámesh e dela extrair inúmeros exemplos de homofonia, equívocos significantes, nomeação desde o Outro e da forma como ícone e como implicação do corpo. O gesto e o corpo se inserem no poético. A forma poética transmite em consonância com as palavras escritas (e ouvidas). Tal como o que chamamos hoje (desde Mallarmé) poema concreto, o uso da estrutura quiástica fez da forma elemento fundamental da ressonância poética. Há uma hipótese, a ser sustentada, segundo a qual o inconsciente possa operar sobremaneira com esses mesmos termos. Contingencialmente, das coisas vistas e ouvidas (e do oco não-todo), os sujeitos fazem sintomas singulares e constroem, cada qual, fantasias próprias. Do não-todo como abismo/fonte, como furo traumático, o inconsciente pulsa corpo e ressoa poeticamente a matéria significante, matéria que, por um giro vertiginoso, serviu-lhe como causa: por contradições, colisões, por homofonias e equívocos, os corpos se deixam marcar e escrever." (GIANESI, A.P.L. Gilgámesh: poética e gênero. Disponível em: minima-scene.com.br/arquivo/ , p. 6).
Se o mito de origem mais antigo que temos documentado é o do ser humano feito do barro - e do mesmo modo as Tabuinhas sobre as quais a escrita deste mito se realizou e se presentificou como origem cuneiforme possível da própria escrita -, talvez seja legítimo pensar que o que o personagem deste mito, Gilgámesh, vê e ouve, sobre ele age como cunhagem no corpo. Dizer e dito se encontram: o dito - o poema SOBRE Gilgámesh - mimetizando os gestos do dizer - o ato de escrevê-lo nas tábuas de argila. A materialidade da Tabuinha e o ato de criação do escriba convergem na humanidade como existência pulsional-corpórea que se faz marcada pelos significantes do Outro.
A análise que Ana Gianesi propõe do poema e dos comentários de Gilgámesh, a partir da teoria psicanalítica, faz surgir diante dos olhos o corpo-pulsional-falante do sujeito do inconsciente em sua mais nítida dimensão de poema concreto.
Não obstante, Ana Gianesi não se rende às leituras avessas à história da dominação que marca secularmente e, talvez, milenarmente nossos corpos-pulsionais-falantes. Atenta aos lugares dados às mulheres no poema e acompanhada de estudos queer, Ana Gianesi não opta pela solução ideológica mais comum à psicanálise, qual seja, a de tomar as cunhagens dos lugares masculinos e femininos nos sujeitos como eternidades estanques ungidas como "lados" homem e mulher. Ao contrário disso, ela nos alerta que o escriba em questão é, historicamente, homem e patriarcal:
"A elite de escritores era masculina. Seus valores e pontos de vista transpareciam nos versos. Reproduziam e reeditavam o patriarcado. E a visão masculina que já dominava a cultura." (Idem, p. 7).
A abstração do Outro simbólico, embora necessária ao esvaziamento dos excessos imaginários da tomada de um inconsciente estruturado como uma linguagem, arrisca-se, muitas vezes, a esconder ou não enxergar relações de dominação que podem ser lidas quando buscamos a dimensão real que a história nos impõe tão logo pensemos que a mão que cunha as Tabuinhas não é somente um conceito ou uma pessoa da realidade, mas uma construção de longa duração encarnada, ela também, e historicamente, como fonte reprodutora e absolutamente não neutra de tudo aquilo que se transmite de violência e gozo junto com a linguagem.
Sob a capa lógica e asséptica do Outro da linguagem podemos achar, algumas vezes, como segunda natureza, o que só pôde se consolidar ao longo do tempo e sob sangue derramado. É imprescindível que possamos ler no corpo-pulsional-falante o que do Outro assim considerado, isto é, para além do simbólico, também se transmitiu.
Uma vez que os desdobramentos estruturalistas da teoria psicanalítica têm já há tempo, e desde o próprio Lacan, revelado seus limites, precisamos nos arriscar a caminhos teóricos capazes de nos trazer à tona perspectivas do inconsciente que ainda não exploramos. Talvez possamos pensar aqui num esforço de distinção entre o que se configura como resistência à dominação histórica - o que temos chamado de mimese -, e o que se apresenta como história naturalizada - segunda natureza. Esta distinção se faz sentir, ao menos neste momento - e isso fica patente no texto de Ana Gianesi -, como potencialidades impedidas pela leitura estrutural da psicanálise. Daí nossa insatisfação política com as reificações estruturalistas do inconsciente.
Até mesmo as concepções lógico-matemáticas das fórmulas da sexuação podem ser interrogadas e subvertidas politicamente quando lidas a partir da escuta da dominação histórica que se escreve sobre os corpos-pulsionais-falantes. É o que podemos extrair, como exemplo, no último parágrafo do texto de Ana Gianesi:
"Enfim, as duas personagens femininas, Shámhat e Ishtar, trazem consigo aberturas para discussões de gênero bastante interessantes. Ainda que o gesto e a escrita dos poetas, pautados pelo patriarcado e pelo falocentrismo que os habitava, fossem negacionistas em relação a quaisquer possibilidades não cis e/ou heteronormativas para as mulheres, a presença da mulher desejante, para além da reificação corporal e do muro do mutismo, da ausência de voz, é correlata ao apontamento do que pode estar além da política do absoluto, da dominação, da sujeição do Outro. O desejo (e a voz) daqueles que são historicamente colocados como Outros, como 'subalternos' sem fala, pode, subversivamente, furar a ordem vigente e abrir o conjunto fechado que o androcentrismo procura impor." (Idem, p. 10).
A reificação corporal e o muro do mutismo impostos à mulher não são traços universais ou fenomênicos-estruturais do feminino, mas sintomas históricos do patriarcalismo; por outro lado, a presença da mulher desejante no poema configura o que escapa à dominação, "fura a ordem vigente e abre o conjunto fechado que o androcentrismo procura impor". É o próprio corpo-pulsional-falante que resiste e fala nos interstícios das Tabuinhas e apesar do escriba masculino e patriarcal.
Ana Gianesi nos mostra que, em última instância, o corpo-pulsional-falante do poema não está no Gilgámesh, ele que o abismo viu, mas dividido, em especial, nas figuras de Shámhat e Ishtar.
É do lugar delas que o sujeito nos fala, desde a Mesopotâmia, há cerca de 41 séculos.
CCLXXVIII
O gosto estranho de um presidente - que tem por ídolo um torturador -, em publicar a fotografia de seu bucho cheio de fezes, num hospital, revela a intimidade que um algoz deve ter com a concretude das vísceras.
Talvez quisesse nos sensibilizar, pegando uma carona desumana nas terríveis imagens de internações por COVID-19 que seguem estampadas em todas as formas de noticiários e ficarão em nossas memórias como gravuras de um genocídio sanitário.
Já temos suficientes provas de que os investimentos pulsionais do presidente não passam pela vida, mas pela morte.
Por isso, a fotografia em questão não apela a identificações com vítimas, mas sim com agressores: mostra, ao invés disso, que o macho que, com sua peixeira, rasga o bucho do inimigo, sabe gozar também quando as tripas abertas são as suas. Bolsonaro entrega sua foto aos olhares enojados de parte do seu público como quem repete a entrega da barriga à facada sedenta de Adélio (o primeiro da série que continuou com os bisturis de seus médicos).
A coleção de cortes e cicatrizes que Bolsonaro tem numa mesma região, que costumamos chamar de pança, gostaria de ser a memória corporal de um grande guerreiro, mas algo de falso na cena fotografada - o tom debochado de seu sorriso, talvez, no meio à bagunça dos fios dos eletrodos -, alerta-nos, porém, sobre a verdade como aquilo que se encontra no âmago de um momento histórico, cujos intestinos seguem ali, muito próximos, sob a fina camada de tegumento do cinismo.
E não seria muito arriscar que esta sintomática oferenda sacrificial da barriga como objeto privilegiado ao olhar do Outro teria algo a dizer, como confissão que se deixa escapar, sobre a facada do período eleitoral: não se pode selar um pacto de sangue sem fazer um furo (pacto que não precisa ser com o demo; pode ser com o bispo).
(Num sonho recente eu acidentalmente pressionava a barriga do Bolsonaro num ônibus em alta velocidade. Do latim, omnibus, uma barriga para todos.)
Uma nota que não se pode deixar passar é que a origem do sobrenome do presidente, vindo da região do Vêneto, provavelmente vem do termo veneziano "bolzon", um dos nomes para o dardo de balestras ou, mais popularmente, flechas de bestas.
CCLXXVII
"Mostrei minha obra-prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes fazia medo.
Responderam-me: 'Por que é que um chapéu faria medo?'
Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jiboia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jiboia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações."
(Antoine de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe)
O que seria o desejo senão a transformação do que histórica e contingencialmente marcou e assujeitou um corpo-pulsional-falante em causa de/para um sujeito?
Em sua relação abstrata e universal com a falta-a-ser o desejo perde materialidade e singularidade e fica vulnerável às ideologias e tecnologias egóicas de uma sociedade consumista e individualista.
Há, para o desejo, tal como o escutamos como psicanalistas, mais camadas do que aquelas que já pudemos formalizar. Camadas menos estruturadas e mais concretas e arraigadas ao corpo e à história. Um desejo mais próximo do real que do simbólico, talvez.
Se não tentarmos desenhar o elefante que há dentro da jiboia, o desejo continuará sendo somente um chapéu.
O desejo talvez seja, na psicanálise, herdeiro direto de um messianismo secularizado: é o desejo que reconhecemos estar presente nos afetos de resistência (no sentido político, não psicanalítico) e de transformação e nos atos que as realizam; no entusiasmo (em deus, in + theos) - que sempre deveria ser tomado politicamente -, enfim.
"Enquanto que nos decênios da restauração contrarreformista o catolicismo tinha impregnado a vida profana com toda a força de sua disciplina, o luteranismo desde sempre se situara numa posição antinômica em relação à vida quotidiana. À moralidade religiosa da conduta dos cidadãos, por ele ensinada, contrapunha-se o seu afastamento das 'boas obras'. Recusando-se a aceitar os efeitos milagrosos espirituais e especiais dessas obras, entregando a alma à graça da fé e fazendo da esfera mundana e política o banco de ensaios de uma vida apenas indiretamente religiosa, destinada à demonstração de virtudes burguesas, o luteranismo conseguiu efetivamente enraizar no povo um forte sentimento de obediência ao dever, mas nos grandes provocou a hipocondria. [...] Naquela reação excessiva que, em última análise, eliminou as boas obras enquanto tais, e não apenas por aquilo que nelas servia para atribuir mérito ou permitir a expiação, manifestava-se certa forma de paganismo germânico e de crença sombria na sujeição ao destino. Retirou-se todo o valor às ações humanas, e algo de novo nasceu: um mundo vazio." (BENJAMIN, W. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 143-4).
Afastado das garantias da fé o sujeito se voltou para a contemplação saturnina do mundo desde um lugar diante do qual pode cair num abismo melancólico. Tal ideia nos remete às aproximações hipocrático-aristotélicas entre os excessos humorais da bílis negra e a genialidade melancólica.
Este é um caminho no qual cumpre pensar que o desejo, despregado do entusiasmo, pode perder sua relação vital com o mundo, isto é, perder algo de sua força mimética criativa.
"A desvitalização dos afetos que provoca a maré baixa das ondas que os faziam erguer-se no corpo pode levar a que a distância em relação ao mundo exterior se transforme em alienação em relação ao próprio corpo. A partir do momento em que se interpretou este sintoma de despersonalização como um grau avançado de tristeza, a ideia que se fazia desse estado patológico em que as coisas mais insignificantes aparecem como chaves de uma sabedoria enigmática, porque nos falta a relação natural e criativa com elas, entrou num contexto incomparavelmente fecundo." (Idem, p. 146).
O sujeito que se retira do mundo aliena-se do próprio corpo. O corpo-pulsional-falante que não se deixa ou não pode se deixar impressionar pelo mundo, cai, com este, no desencanto. A insignificância se torna enigmática para o contemplador que perdeu a relação natural e criativa com as coisas, mas a desvitalização das coisas sob o pensamento delas distanciado põe o contemplador em estado melancólico. Neste processo, algo se perde.
"Essa aliança entre geometria e melancolia tem uma longa tradição: aqueles dotados para a geometria são predispostos à melancolia, porque a consciência de uma esfera situada fora de seu alcance faz sofrer àqueles que têm o sentimento da limitação e insuficiência no plano do espírito. [...] Tal como o objeto inexistente na melancolia, os entes geométricos têm natureza melancólica." (MATOS, O.C.F. O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 168-9).
A razão abstrata conquistou muitas coisas, mas não resolveu o desamparo do sujeito sem deuses. Fica a questão: aonde foi parar a vitalidade do trabalho de reconciliação entre o sujeito e o Outro, seja ele a natureza, os deuses, o mundo ou o universo composto de energia e massa?
A razão burguesa parece ter substituído o desejo de reconciliação pela vontade de dominação.
Diante do desamparo, o caminho da razão esclarecida foi o da substituição da moral cristã pré-burguesa pelo pensamento instrumental, calculista e empreendedor do capitalista. Sem o esvaziamento abstrato do mundo a razão dominadora jamais conseguiria levar a cabo a submissão utilitarista da vida e da natureza ao ponto de chegar tão perto do colapso do ecossistema planetário. Sem que a árvore se transforme em madeira e a floresta em obstáculo geográfico a lucros potenciais, um desmatamento volta a ser experimentado em toda a sua absurda crueldade. Não se pode fazer o luto de uma árvore sem que a existência dela tenha valor de vida, assim como, para muitos, não se pode fazer o luto de um índio morto, de um negro morto, de uma mulher morta, de um adolescente de periferia morto, de um transexual morto. O valor de vida das coisas implica poder concebê-las a partir da experiência de um corpo-pulsional-falante, capaz de se deixar encantar pelas coisas ao invés de se defender delas reduzindo-as a abstrações de um mundo vazio - abstrações que aproximam as coisas, vivas ou não, de cifras calculáveis e administráveis. Dar a este corpo-pulsional-falante o estatuto de sujeito, isto é, libertando-o o máximo possível das condições de objetificação, é o que mais nos aproximaria de um conceito materialista de desejo.
Nesse sentido, não podemos considerar o espírito dominador uma manifestação legítima do desejo sem justificarmos ideologicamente a dominação. Politicamente é importante considerar o desejo resistência à dominação e, correlativamente, o desejo como movimento de saída das posições subjetivas engessadas e objetificadoras.
Sem entusiasmo, sem theos, o sujeito é melancólico e seu mundo, vazio. O universo da ciência, a natureza desencantada, é feito de massa, energia e repetição, nada mais. Ele só adquire alguma poesia quando vemos, no movimento que estes dois - massa e energia - provocam, o enigma das coisas e da vida.
A significância, o querer dizer próprio dos enigmas, é prenhe de desejo e de poesia, mas só resiste ao desencantamento melancólico da razão instrumental quando se entrega e reconhece em si o apelo mimético que já havia na arte rupestre e na dança ritual e que se transmutou nos espíritos da magia e da religião e hoje encontramos, sobretudo e ainda, na arte. Não é à toa que a violência fascista se volta sempre, em primeiro lugar, para xs artistxs.
Talvez possamos extrair da nostalgia do Werner Sombart, em seu esforço de compreensão do espírito capitalista, em 1913, a pergunta sobre que fim levou o espírito do sujeito não-burguês, sobre o qual há séculos recai o peso do recalque - quando não da morte. Quiçá possamos nomear de desejo os despojos do não-burguês que grita no silêncio do sintoma em cada um de nós.
"Estes dotes 'intelectuais' hão de vir acompanhados de uma grande 'força vital', 'energia vital', ou como queira chamar-se esta predisposição, da qual não sabemos senão que é a condição indispensável de todo espírito 'empreendedor'; condição que cria o ânimo para empreender, o impulso a agir, e que põe à disposição do empresário a energia necessária para levar a cabo o projeto. Na essência destes homens tem que haver algum recurso em tensão, algo que lhes moleste, que transforme em verdadeiro suplício a indolente calma no calor do fogo. E têm que ser sujeitos de muita fibra, de madeira muito dura, esculpida a machados. Eis aqui a imagem do homem que chamamos 'empreendedor'. Todas aquelas características do empresário que citávamos como condições necessárias do êxito: a resolução, a tenacidade, a perseverança, a atividade incansável, as contínuas aspirações, a ousadia, o valor: todas têm suas raízes em uma poderosa força vital, em uma vitalidade extraordinária.
O hiperdesenvolvimento das qualidades sentimentais, que geralmente produzem uma acentuação demasiado forte dos valores afetivos, constituiria, em contrapartida, um obstáculo para sua atividade. Assim, pois, podemos dizer de maneira geral que o empresário é uma pessoa dotada de uma notável capacidade intelectual e de uma força de vontade fora do normal, mas com uma vida emocional e afetiva muito pobre." (SOMBART, W. El burgués. Madri: Alianza Editorial, 1977, p. 208 [tradução minha]).
E na página seguinte o autor faz uma comparação muito interessante:
"O empresário capitalista, em seu papel de organizador genial, foi comparado às vezes com o artista. Isto me parece totalmente errado. Eu prefiro dizer que ambas naturezas são por completo antagônicas. Sempre que se tentou estabelecer um paralelo entre as duas, recorreu-se ao alto grau de 'fantasia' que devem ter uma e outra para poder conceber algo grande; mas tampouco aqui se trata da mesma capacidade. Como já assinalamos, os tipos de 'fantasia' de que se trata em um e outro caso constituem manifestações do espírito completamente díspares.
No que diz respeito a todos os demais pontos, opino que o empresário e o artista se nutrem de fontes bem distintas. Aquele persegue a utilidade e a conveniência, este é totalmente alheio e inclusive hostil a elas; aquele é intelectual e tenaz, este, sentimental; aquele, duro, este, terno e brando; aquele conhece o mundo, este se afasta dele; aquele é extrovertido, este é introvertido; por isso aquele conhece os homens, este, o homem.
Tampouco relacionados como com o artista estão nossos empresários com o artesão, o rentista, o esteta, o erudito, o bon vivant, o moralista e similares.
Pelo contrário, o empresário se parece em muitos aspectos ao estrategista e ao estadista, pois ambos - e sobretudo este último - são, definitivamente, conquistadores, organizadores e negociadores." (Idem, p. 209).
E Sombart não se detém aqui, preocupado que está em demostrar o antagonismo entre o empresário e o artista:
"Mas as diferenças vão ainda mais longe. Enquanto que os não-burgueses caminham pelo mundo vivendo, contemplando, refletindo, os burgueses têm que ordenar, educar, instruir. Aqueles sonham, estes calculam. O pequeno Rockefeller era considerado já em sua infância como um especialista em cálculo. Com seu pai - um médico de Cleveland - fez completos negócios. 'Desde minha mais tenra infância' - narra o mesmo em suas Memórias - levava um livrinho (eu o chamava 'livro de contabilidade' e o conservo ainda), no qual anotava com regularidade meus gastos e ganhos.' Ter-se-ia que levar isso no sangue. Nenhum poder da terra teria podido obrigar o jovem Byron ou o jovem Anselmo Feuerbach a carregar um livro semelhante e a conservá-lo.
Uns tocam a cantam, outros são apagados, mas não só em sua íntima essência, senão também em sua aparência externa; aqueles são mesclados, estes, carentes de toda cor. Artistas (por atitude, não de ofício), uns; funcionários, outros. De fios de seda, aqueles, de lã, estes.
Wilhelm Meister e seu amigo Werner: aquele fala como quem 'distribui impérios', este 'como quem guarda um alfinete'.
Olhando mais de perto, temos a impressão de que a diferença entre estes dois tipos fundamentais reside, em último termo, em um claro contraste de sua vida erótica, pois é evidente que esta determina a conduta total do homem como um poder supremo e invisível. Os dois polos do mundo vêm representados pela natureza burguesa e pela erótica." (Idem, p. 210-1).
Não é aqui que podemos levantar a hipótese de que no sujeito contemporâneo a natureza erótica (não-burguesa) foi recalcada pela natureza burguesa?
Desejo sem significância, sem transformação, sem entusiasmo, sem erotismo, é desencantamento e melancolia de um lado ou força vital abstraída, "empreendedora", emocional e afetivamente muito pobre, deserotizada, de outro.
Para além ou aquém do desejo como falta-a-ser decorrente de um sujeito concebido a partir da estrutura da linguagem, talvez possamos e devamos pensar num desejo adormecido num atavismo sintomático capaz de atravessar gerações e carregar décadas de alguma forma de objetificação violenta, à espera de se tornar voz de resistência e de alguma transformação.
Numa roda geracional a brincar de telefone sem fio - nome estranho herdado de uma época em que telefones eram aparelhos modernos ligados por fios, uma "rede social" no sentido mais verdadeiro -, o que um descendente sussurra no ouvido do outro é o sintoma. São bisnetos e netos os que nos chegam aos consultórios, angustiados por não saberem o que fazer com o peso do enigma que, sussurrado, até eles chegou. A ciência pode hoje fazer da caca de nariz um compêndio sobre as características biológicas, as condições de saúde e os hábitos de vida de uma pessoa, mas não sabe mais brincar de telefone sem fio. Às bruxas e aos poetas, aos xamãs e à clarividência, aos loucos e aos psicanalistas, cada um a seu modo, coube fazer algo com a brincadeira do telefone sem fio. [Em 1876, Dom Pedro II estava no Exposição Internacional da Filadélfia, e ao chegar no estande de Alexander Graham Bell fez com este o teste num inusitado aparelho e exclamou: "Meu deus, isto fala!".
Não fosse a surpresa e o encanto do brasileiro imperador com a capacidade mimética daquela caixinha mágica, o telefone teria perdido lugar para os primórdios da produção industrial do ketchup de Henry J. Heinz, também presente na mesma exposição.
Vale lembrar que, por sua vez, o bisneto do imperador, Príncipe João Maria, foi amigo do aviador francês Antoine de Saint-Exupéry - o Zé Perri de quando viveu no Brasil - e inspirou o personagem de seu pequeno príncipe, publicado no exílio nos EUA, durante a segunda guerra (1943):
"As pessoas grandes adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam nunca: 'Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que ele coleciona borboletas?' Mas perguntam:
'Qual é sua idade? Quantos irmãos tem ele? Quanto pesa?
Quanto ganha seu pai?' Somente então é que elas julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: 'Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado. . .' elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma idéia da casa. É preciso dizer-lhes: 'Vi uma casa de seiscentos contos'. Então elas exclamam: 'Que beleza!'
Assim, se a gente lhes disser: 'A prova de que o principezinho existia é que ele era encantador, que ele ria, e que ele queria um carneiro. Quando alguém quer um carneiro, é porque existe' elas darão de ombros e nos chamarão de criança! Mas se dissermos: 'O planeta de onde ele vinha é o asteróide B 612' ficarão inteiramente convencidas, e não amolarão com perguntas. Elas são assim mesmo.
É preciso não lhes querer mal por isso. As crianças devem ser muito indulgentes com as pessoas grandes.
Mas nós, nós que compreendemos a vida, nós não ligamos aos números! Gostaria de ter começado esta história à moda dos contos de fada. Teria gostado de dizer:
'Era uma vez um pequeno príncipe que habitava um planeta pouco maior que ele, e que tinha necessidade de um amigo...' Para aqueles que compreendem a vida, isto pareceria sem dúvida muito mais verdadeiro." (SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. Disponível em: https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery_0.pdf, p. 13)
Evoquemos, ainda, uma pequena passagem de Benjamin:
"Não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as contempla - a própria criança penetra-as no momento da contemplação, como nuvem que se sacia com o esplendor colorido desse mundo pictórico. Frente ao seu livro ilustrado a criança coloca em prática a arte dos taoístas consumados: vence a parede ilusória da superfície e, esgueirando-se entre tapetes e bastidores coloridos, penetra em um palco onde o conto de fadas vive." (BENJAMIN, W. Visão do livro infantil. In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984, p. 55)]
O corpo-pulsional-falante, como o corpo sem órgãos da psicanálise, transporta geno e fenoformicamente fragmentos da história feitos de coisas vistas e ouvidas.
Nesse corpo aferentemente penetram e habitam estilhaços afetivos do tempo, que lá ficam, se endurecem, cristalizam, repetem feito um memento hipostático, um cálculo (aritmético e litiásico), mas que também - sob contingências que devemos buscar melhor conhecer e formalizar -, se decompõem, se recombinam, se consubstanciam, sofrem mutações mitóticas nas quais podem se glorificar, investirem-se pulsionalmente, à espera de uma eferência volitiva atravessada de uma perspectiva, muitas vezes - depois de séculos de dominação europeia monoteísta - imaginariamente redentora, porque portadora milenar e filogenética do impulso mimético de reconciliação com o Outro-natureza.
Por se tratar da anatomia e do funcionamento do corpo-pulsional-falante - de natureza bio-histórico-imaginário - lá onde vai e trabalha alquimicamente o psicanalista com suas ferramentas de linguagem, transferência e ato -, é difícil falar dele sem metáforas pseudo-científicas, místico-religiosas, histórico-sociais. É preciso deixar fluir um ensaio-delírio esquizofrênico, atordoado e Artaudito, como suspensão de superfície corporal e de sentido capaz de deixar constelar o transmissível da imanência física das fusões e confusões entre corpo e linguagem.
Sob nossa inoxidável dureza burguesa de cada dia ainda queimam as bruxas do malleus maleficarum. Basta lembrarmos de que populações indígenas inteiras ainda seguem sendo queimadas, assim como a população negra das periferias, os refugiados no Mar Mediterrânico etc. Do Martelo das Bruxas à imunidade de rebanho do governo Bolsonaro, a necropolítica nunca deixou de calar os sujeitos em nome da conservação do poder.
Nos interstícios das fórmulas e dos cálculos com os quais anulamos quaisquer riscos de subjetividade ainda podemos localizar o pavor secreto de encontrar uma palavra carregada de maldição, a esperança de cura em garrafadas indígenas e trabalhos da mãe de santo ou a mera orientação extraída dos hexagramas do I Ching e do uso oracular dos sonhos - sem falar do poder mágico das orações. Há nestas procuras da magia e do sagrado, parentescos inegáveis com o dar voz ao sintoma; e o sintoma o que seria senão o sedimentado de séculos de sujeitos silenciados?
Seria mais promissor aos sujeitos buscar no grito de dor e revolta das bruxas medievais o dito "significante paterno" extraído do abstrato Outro para orientar o desejo, do que fundar nas heranças teórico-filosóficas da erudição patriarcal de Heinrich Kraemer e Jakob Sprenger a pedante sabedoria de distinguir o que é bruxaria do que não é. Resta saber se a psicanálise segue mais próxima da dimensão profana da feitiçaria do que da bula Summis desiderantes do papa Inocêncio VIII.
Tomemos emprestadas as conclusões de Benjamin sobre o surrealismo - lembrando, de passagem, que este tem relações não acidentais com a psicanálise:
"Em todos os seus livros e iniciativas, a proposta surrealista tende ao mesmo fim: mobilizar para a revolução as energias da embriaguez. Podemos dizer que é essa sua tarefa mais autêntica. Sabemos que um elemento de embriaguez está vivo em cada ato revolucionário, mas isso não basta. Esse elemento é de caráter anárquico. Privilegiá-lo exclusivamente seria sacrificar a preparação metódica e disciplinada da revolução a uma práxis que oscila entre o exercício e a véspera da festa. A isso se acrescenta uma concepção estreita e não-dialética da essência da embriaguez. A estética do pintor, do poeta en état de surprise, da arte como a reação do indivíduo 'surpreendido', são noções excessivamente próximas de certos fatais preconceitos românticos. Toda investigação séria dos dons e fenômenos ocultos, surrealistas e fantasmagóricos, precisa ter um pressuposto dialético que o espírito romântico não pode aceitar. De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano. Por exemplo, a investigação mais apaixonada dos fenômenos telepáticos nos ensina menos sobre a leitura (processo eminentemente telepático) que a iluminação profana da leitura pode ensinar-nos sobre os fenômenos telepáticos. Da mesma forma, a investigação mais apaixonada da embriaguez produzida pelo haxixe nos ensina menos sobre o pensamento (que é um narcótico eminente) que a iluminação profana do pensamento pode ensinar-nos sobre a embriaguez do haxixe. O homem que lê, que pensa, que espera, que se dedica à flânerie, pertence, do mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à galeria dos iluminados. E são iluminados mais profanos. Para não falar da mais terrível de todas as drogas - nós mesmos - que tomamos quando estamos sós." (BENJAMIN, W. O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 32-3).
Até que ponto "mobilizar para a revolução as energias da embriaguez" não equivale a fazer do sintoma um desejo? "'Mobilizar para a revolução as energias da embriaguez' - em outras palavras: uma política poética?" (Idem, p. 33). Benjamin faz saltar o mundo enigmático da contemplação melancólica de sua imobilidade romântica ao pressupor nele uma dialética: "toda investigação séria dos dons e fenômenos ocultos, surrealistas e fantasmagóricos, precisa ter um pressuposto dialético que o espírito romântico não pode aceitar". Poderíamos tomar esse pressuposto dialético na via imanente do desejo? E desejo como política poética? A psicanálise nos propõe como caminho a iluminação profana dos enigmas do sintoma, na medida mesma em que, no sintoma, converge a dialética proposta por Benjamin entre o cotidiano e o impenetrável. Todos os esforços místicos, religiosos, oraculares, de investigar seriamente dons e fenômenos ocultos, dão provas disso: seguem sendo tentativas mais ou menos alienadas de fazer falar o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano. Assim como ainda há telepatia na leitura, narcose no pensamento e mimese na linguagem, a investigação mais apaixonada da magia pode nos ensinar mais sobre a psicanálise do que a iluminação profana da psicanálise pode ensinar-nos sobre a magia: "[...] os jogos de transformação fonética e gráfica, que já há quinze anos apaixonam toda a literatura de vanguarda, do futurismo ao dadaísmo e ao surrealismo, nada mais são que experiências mágicas com palavras, e não exercícios artísticos" (p. 28).
E o que poderia haver nesta noção de iluminação profana, a qual cabe entender como uma imagem, enquanto instantâneo que escapa ao sentido, não metaforizável, senão o campo mesmo em que algo do desejo encontra o dar voz ao silêncio do sintoma? É importante entendermos, aqui, o modo como Benjamin faz passar a eficácia da magia e a redenção messiânica secularizadas para a ideia de uma iluminação profana como instantâneo de materialização do desejo recalcado:
"[...] também na pilhéria, no insulto, no mal-entendido, em toda parte em que uma ação produz a imagem a partir de si mesma e é essa imagem, extrai para si essa imagem e a devora, em que a própria proximidade deixa de ser vista, aí se abre esse espaço de imagens que procuramos, o mundo em sua atualidade completa e multidimensional, no qual não há lugar para qualquer 'sala confortável', o espaço, em uma palavra, no qual o materialismo político e a criatura física partilham entre si o homem interior, a psique, o indivíduo, ou o que quer que seja que desejemos entregar-lhes, segundo uma justiça dialética, de modo que nenhum dos seus membros deixe de ser despedaçado. No entanto, e justamente em consequência dessa destruição dialética, esse espaço continuará sendo espaço de imagens, e algo de mais concreto ainda: espaço do corpo." (p. 34-5).
Ao retirar do pessimismo melancólico sua força revolucionária de interrupção da história como progresso, ou seja, o cortar o pavio da dinamite do progresso capitalista, o sagrado conforto do homem burguês, sua razão instrumental e seu otimismo, que obstaculizam a revolução, são suspensos e destruídos por uma justiça dialética. E o despedaçamento desse patriarca que, do paraíso, sopra sua tempestade contra as asas do Angelus Novus, fará ressurgir como corpo vivo a natureza vingada - Gaia ou physis:
"Também o coletivo é corpóreo. E a physis, que para ele se organiza na técnica, só pode ser engendrada em toda a sua eficácia política e objetiva naquele espaço de imagens que a iluminação profana nos tornou familiar. Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem, dentro dela, tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias: somente então terá a realidade conseguido superar-se, segundo a exigência do Manifesto comunista." (p. 35).
Mas essa interpenetração entre corpo e espaço de imagens só pode ser realmente entendida se colocarmos aqui a importância do conceito de mimese para Benjamin, enquanto ligação imediata entre pensamento e coisa. Sem a força do conceito de mimese perdemos a correlação materialista que podemos fazer entre a indestrutibilidade do desejo freudiano e o que não se pode inteiramente recalcar, do pensamento benjaminiano.
Talvez possamos dizer que o sintoma seja a relação imediata entre linguagem e corpo dos sujeitos silenciados, enquanto que o desejo, como ato de saída do silêncio, se articule como mediação subjetiva recuperada.
Leandro Konder nos permite vislumbrar a implicação que pode haver entre a objetificação como relação imediata e o desejo como mediação indignada:
"A desconfiança que Benjamin sentia em relação às 'mediações' da dialética hegeliana, sua necessidade de por o pensamento em ligação 'imediata' com as coisas (como se o pensamento tocasse, cheirasse ou mordesse a coisa, segundo a observação de Adorno), tudo isso contribuía para que ele se sentisse diretamente vinculado às dores e frustrações acumuladas pela humanidade e contribuía para que ele - isolado, fraco, derrotado - se sentisse co-responsável (culpado) pelos fracassos daqueles de que se sentia legítimo herdeiro.
Mas a defesa da coesão afetiva do eu, em Benjamin, não podia ser assegurada apenas pela tristeza. A melancolia, no espírito de nosso autor, precisava ser de um tipo especial, para excluir o risco do efeito paralisador da acedia e para se combinar com o impulso ativo, transformador, do rebelde radical, do lutador. Precisava ser uma melancolia na qual reaparecia o elemento desaparecido da acepção original do termo: a cólera, a indignação dos justos (sem a dimensão patológica que esse sentimento tinha nos 'atrabiliários')." (KONDER, L. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1999, p. 119).
Assim compreendido não há qualquer espaço para a tomada do desejo, direta ou disfarçadamente, como a sustentação de imagens narcísicas, conquistas pessoais ou disputas fálicas. Antes, encontramo-lo em passagens como a de Kopenawa:
"Eu não sei falar como os brancos! Quando tento imitá-los, minhas palavras fogem ou se emaranham na minha boca, mesmo que meu pensamento permaneça reto! Minha língua não seria tão enrolada se eu estivesse falando aos meus, na minha língua! Mas pouco importa: já que vocês me dão ouvidos, vou tentar! Desse modo minhas palavras se fortalecerão e talvez um dia sejam capazes de deixar preocupados os grandes homens dos brancos! [...] São outra gente [os garimpeiros], comedores de terra, seres maléficos! Seu pensamento é vazio e estão impregnados de epidemia! Precisamos impedi-los de sujar nossos rios e expulsá-los da floresta. Por que eles não trabalham em sua própria terra? Quando eu era criança, quase todos os meus parentes faleceram devido às doenças dos brancos. Não quero que isso continue!" (KOPENAWA, D. e ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das letras, 2015, p. 386).
"Vocês não entendem por que queremos proteger nossa floresta? Pergunte-me, eu responderei! Nossos antepassados foram criados com ela no primeiro tempo. Desde então, os nossos se alimentam de sua caça e de seus frutos. Queremos que nossos filhos lá crescam rindo. Queremos voltar a ser muitos e continuar a viver como nossos antigos. Não queremos virar brancos! Olhem para mim! Imito a sua fala como um fantasma e me embrulho em roupas para vir lhes falar. Porém, em minha casa, falo em minha língua, caço na floresta e trabalho em minha roça. Bebo yãkoana e faço dançar meus espíritos. Falo a nossos convidados em diálogos wayamuu e yãimuu! Sou habitante da floresta e não deixarei de sê-lo! Assim é!" (p. 389)
Encontramo-lo, também, no discurso da ex-escrava Sojourner Truth, em 1851:
"Muito bem crianças, onde há muita algazarra alguma coisa está fora da ordem. Eu acho que com essa mistura de negros (negroes) do Sul e mulheres do Norte, todo mundo falando sobre direitos, o homem branco vai entrar na linha rapidinho.
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem - desde que eu tivesse oportunidade para isso - e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?
Daí eles falam dessa coisa na cabeça; como eles chamam isso... [alguém da audiência sussurra, "intelecto"]. É isso querido. O que é que isso tem a ver com os direitos das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que um quarto, e o seu está cheio, porque você me impediria de completar a minha medida?
Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso.
Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de consertá-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que elas querem.
Agradecida a vocês por me escutarem, e agora a velha Sojourner não tem mais nada a dizer." (TRUTH, S. Não sou uma mulher? Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/).
O que podemos ver em comum nos discursos de Davi e de Sojourner é que ambos, tomados da posição de sujeitos, dizem ao outro que não são e não querem ser objeto. E fazem isso como porta-voz de traumas seus e de antepassados. Eles perguntam aos outros e a si mesmo por que é que o desenho que mostram não lhes faz medo. O que os dois insistem, sobretudo, é que não tiram chapéus para jiboias. E é preciso não querer ouvi-los para os tomar a partir do conceito de fantasia. Um chapéu é um chapéu, uma cobra é uma cobra.
Talvez seja prudente pensar que, do lado de fora da estrutura, o que chamamos de "Outro barrado" só exista efetivamente para homens brancos cis. Para estes o desejo talvez seja um chapéu. Também o é para quem não pode ver o quanto que isso muda tudo.
Para os demais, há um elefante a resgatar.
CCLXXVI
É interessante notar como Deleuze busca a profundidade da relação entre linguagem e corpo na esquizofrenia, mais especificamente na ideia de corpo sem órgãos de Antonin Artaud.
"'Nada de boca, de língua, de dentes, de laringe, de esôfago, de estômago, de ventre, de ânus. Eu reconstruirei o homem que sou.' (O corpo sem órgãos é feito só de osso e de sangue.)" (ARTAUD, A. citado em DELEUZE, G. [1969]. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 91).
Consideremos os seguintes trechos de Deleuze.
"A primeira evidência esquizofrênica é que a superfície se arrebentou. Não há mais fronteira entre as coisas e as proposições, precisamente porque não há mais superfície dos corpos. O primeiro aspecto do corpo esquizofrênico é uma espécie de corpo-coador: Freud sublinhava essa aptidão do esquizofrênico para captar a superfície e a pele como perfuradas por uma infinidade de pequenos buracos. A consequência é que o corpo no seu todo não é mais que profundidade e leva, engole todas as coisas nesta profundidade escancarada que representa uma involução fundamental. Tudo é corpo e corporal. Tudo é mistura de corpo e no corpo, encaixe, penetração." (Idem, p. 89-90)
Na esquizofrenia não há perda de corpo, mas suspensão de superfície. O corpo se alarga, se expande e engole as coisas. Mistura-se com elas. O que era incorpóreo, abstrato cai num corpo e numa profundidade na qual se misturam.
"Como não há superfície, o interior e o exterior, o continente e o conteúdo não têm mais limite preciso e se afundam em uma universal profundidade ou giram no círculo de um presente cada vez mais estreito, na medida mesma em que ele é cada vez mais repleto. De onde a maneira esquizofrênica de viver a contradição: seja na fenda profunda que atravessa o corpo, seja nas partes que se encaixam e giram." (Idem, p. 90)
Num corpo sem superfície o espaço e o tempo entram também em colapso e suspensão. Num presente cada vez mais estreito, diferentes temporalidades se atualizam, fazem dobra e se recobrem como num presente só que se apresenta como único, último e definitivo. A oposição lógica entre totalidade e particular se desfaz e, na fenda profunda que atravessa o corpo os órgãos se encontram em liberdade e perdição de ser outra coisa.
"Nesta falência da superfície, a palavra no seu todo perde o sentido. [...] Mas ela perde, em todos os casos, seu sentido, isto é, sua capacidade de recolher ou de exprimir um efeito incorporal distinto das ações e das paixões do corpo, um acontecimento ideal distinto de sua própria efetuação presente. [...] toda palavra é física, afeta imediatamente o corpo. [...] A palavra deixou de exprimir um atributo de estado de coisas, seus pedaços se confundem com qualidades sonoras insuportáveis, fazem efração no corpo em que formam uma mistura, um novo estado de coisas, como se eles próprios fossem alimentos venenosos, ruidosos e excrementos encaixados. As partes do corpo, órgãos, determinam-se em função dos elementos decompostos que os afetam e os agridem. Ao efeito de linguagem se substitui uma pura linguagem-afeto, neste procedimento da paixão: 'Toda escrita é PORCARIA' (isto é, toda palavra detida, traçada se decompõe em pedaços ruidosos, alimentares e excremenciais)." (Idem, p. 90-1)
Na esquizofrenia o encontro entre corpo e palavra é físico e imediato. A palavra arromba o corpo e se caldeia com órgãos e excrementos. Estranha reconciliação entre sentido e afeto no nonsense d'A CACA barulhenta que se apossa do corpo sem superfície.
Mas Deleuze parece ver uma dimensão crítica e política como possibilidade transformadora e sublevante para este corpo:
"Trata-se menos, portanto, para o esquizofrênico, de recuperar o sentido que de destruir a palavra, de conjurar o afeto ou de transformar a paixão dolorosa do corpo em ação triunfante, com a obediência em comando, sempre nesta profundidade abaixo da superfície cavada. [...] o triunfo não pode ser obtido agora a não ser pela instauração de palavras-sopros, de palavras-gritos em que todos os valores literais, silábicos e fonéticos são substituídos por valores exclusivamente tônicos e não-escritos, aos quais corresponde um corpo glorioso como nova dimensão do corpo esquizofrênico, um organismo sem partes que faz tudo por insuflação, inspiração, evaporação, transmissão fluídica (o corpo superior ou corpo sem órgãos de Antonin Artaud)." (Idem, p. 91).
E um pouco mais adiante:
"... trata-se de ativar, de insuflar, de molhar ou de fazer flamejar a palavra para que ela se torne ação de um corpo sem partes, em lugar da paixão de um organismo feito em pedaços. Trata-se de fazer da palavra um consolidado de consoantes, um indecomponível de consoantes, com signos moles." (Idem, p. 92).
É notório o uso político da plasticidade pulsional proposta na passagem sugerida da palavra-excremento para as palavras-sopros e palavras-gritos; da fecalidade em decomposição do sentido fonético ao ato de invocação renovadora. Transubstanciação psicótico-messiânica do status quo incorpóreo para a materialidade vibrante e sonora de uma glória que não seja transcende, mas imanente e incorporada. Da bosta do corpo organizado e estancado na funcionalidade passiva à voz ativa e criadora do corpo sem órgãos do sujeito reconstruído - "Eu reconstruirei o homem que sou". E por que não também da voz à dança, se a considerarmos a origem mimética de toda linguagem e onde resta um saber se por além e aquém dos sentidos incorpóreos?
A Divina Comédia de Artaud não termina no ascético e insípido décimo céu, mas vai do inferno ao que ele propõe como "outros planos" no teatro da crueldade:
"Abandonando as utilizações ocidentais da palavra, ela [a linguagem objetiva do teatro] faz das palavras encantações. Ela impele a voz. Utiliza vibrações e qualidades de voz. Faz ritmos baterem loucamente.
Martela sons. Visa exaltar, exacerbar, encantar, deter a sensibilidade. Destaca o sentido de um novo lirismo do gesto, que, por sua precipitação ou sua amplitude no ar, acaba por superar o lirismo das palavras. Rompe enfim a sujeição intelectual à linguagem, dando o sentido de uma intelectualidade nova e mais profunda, que se oculta sob os gestos e sob os signos elevados à dignidade de exorcismos particulares.
Todo esse magnetismo e toda essa poesia e esses meios de encantamentos diretos nada seriam se não colocassem o espírito fisicamente no caminho de alguma coisa, se o verdadeiro teatro não pudesse nos dar o sentido de uma criação da qual possuímos apenas uma face e cuja realização completa está em outros planos.
E pouco importa que esses outros planos sejam realmente conquistados pelo espírito, isto é, pela inteligência; isso é diminuí-los e não interessa, não tem sentido.
Importa é que, através de meios seguros, a sensibilidade seja colocada num estado de percepção mais aprofundada e mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo. (ARTAUD, A. O teatro da crueldade (primeiro manifesto). In: O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes. s.d, p. 77).
Na descolonização ocidental da palavra e do intelecto reencontramos a voz e o gesto encantados. Reencantamento que se afirma como meio seguro de colocar a sensibilidade num estado de percepção mais aprofundada e apurada, como herança da magia e dos ritos. Não poderíamos pensar este encantamento descolonizante como uma libertação da vitalidade mimética que atravessa os corpos submetidos há séculos a uma razão dominadora? O teatro do terror que a Europa levou aos quatro cantos do mundo é destrutivo e desencantador com os corpos na mesma proporção em que crê sustentar a pureza e a exatidão na condição incorpórea da linguagem. (Benjamin também viu a relação estreita que há entre a nostalgia do ser humano e o mundo vazio dos geômetras.)
Com medo de serem vistos como xamãs, muitos analistas filiaram-se às análises sem corpo das coqueterias significantes, ocupadas em descolar as palavras do corpo - a começar pelo falo -, sem perceberem que a administração estético-ideológica do incorpóreo resulta numa estória de papai-tem/mamãe-não-tem/filhinho-quer-ter. Essa estória, entretanto, e junto com ela a história ali condensada, pode operar cirurgicamente nos corpos entregues à psicanálise como sobre índios a catequese europeizante da Companhia de Jesus.
[Lembremos que, como primeiro espetáculo do Teatro da Crueldade, Artaud propõe "A conquista do México":
"Porá em cena acontecimentos e não seres humanos. Os seres humanos terão seu lugar com sua psicologia e suas paixões, mas considerados como a emanação de certas forças e sob o ângulo dos acontecimentos e da fatalidade histórica em que representaram seus papéis.
Este tema foi escolhido:
1) Por causa de sua atualidade e pelas alusões que permite a problemas de interesse vital para a Europa e para o mundo.
Do ponto de vista histórico, A conquista do México coloca a questão da colonização. Faz reviver, de modo brutal, implacável, sangrento, a fatuidade persistente da Europa. Permite esvaziar a ideia que a Europa tem de sua própria superioridade." (ARTAUD, A. O teatro da crueldade (segundo manifesto). In: idem, p. 110-1).]
O que seria um tratamento psicanalítico que considerasse o não-senso próprio das palavras que habitam as paixões e as ações dos corpos que se misturam com a paisagem histórica em que estão? Corpos sobre os quais pesa a ambivalência da paixão desta história e de ser agente de suas rupturas? Os atos do corpo são o dizer possível deste corpo invadido por palavras colonizadoras que se despedaçam em terrível experiência muda. Na profundeza do corpo sem superfície do esquizofrênico berra escancarada, sem metáfora e ideologia, a dominação que se esconde no inconsciente dos corpos com superfície. E não há ouvidos colonizados que possam escutar as paixões e os atos do corpo.
Quanto aos dominadores, estes não precisam ter corpo: bastam-lhes a gestão do incorpóreo: imagens e discurso.
O que ouviria um analista capaz de compreender o xamã yanomami que faz de seu corpo o lugar do sonho no qual podem dançar e cantar os xapiri, como alegorias de cada ser da floresta, para processar a cura e o apaziguamento da natureza?
"Os brancos nos chamam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. Ficam tomados de vertigem, pois não param de devorar a carne desses animais domésticos, que são os genros de Hayakoari, o ser anta que faz a gente virar outro. Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito. É por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas. Não queremos mais ouvi-las. Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas ou jabutis. Por isso não conseguem entender nossas palavras." (KOPENAWA, D. e ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 390).
O corpo expandido em estado de sonho do xamã não romperia as superfícies em seu encontro festivo com os seres/cifras/signos feitos outros da floresta? O sonhar mais longe precisa de algo do corpo que se mistura e se deixa reencantar pelo que escapa aos sentidos e carece da decifração em ato, longe do incorpóreo desafetado.
(Teríamos na hipótese de Gaia, como corpo sem superfície da natureza, um modo de aprender a sonhar mais longe do que com a lógica fálica e seu darwinismo patriarcal e heteronormativo.)
Retomemos o Deleuze:
"Não se marcou bastante a dualidade da palavra esquizofrênica: a palavra-paixão que explode nos seus valores fonéticos contundentes, a palavra-ação que solda valores tônicos inarticulados. Estas duas palavras se desenvolvem em relação com a dualidade do corpo, corpo feito em pedaços e corpo sem órgãos. Elas remetem a dois teatros, teatro do terror ou da paixão, teatro da crueldade essencialmente ativo. Elas remetem a dois não-sensos, passivo e ativo: o da palavra privada de sentido que se decompõe em elementos fonéticos, o dos elementos tônicos que formam uma palavra indecomponível não menos privada de sentido. Tudo se passa aqui, age e padece abaixo do sentido, longe da superfície. Subsentido, infra-sentido, Untersinn, que deve ser distinguido do não-senso de superfície. Segundo a palavra de Hölderlin, 'um signo vazio de sentido', tal é a linguagem sobre seus dois aspectos, um signo, de qualquer forma, mas que se confunde com uma ação ou uma paixão do corpo. Eis por que parece muito insuficiente dizer que a linguagem esquizofrênica se define por um deslizamento, incessante e enlouquecido, da série significante sobre a série significado. Na realidade, não há mais séries absolutamente, as duas séries desapareceram. O não-senso deixou de dar um sentido à superfície; ele absorve, engole todo sentido, tanto ao lado do significante quanto do significado. Artaud diz que o Ser, que é não-senso, tem dentes. Na organização de superfície que chamávamos de secundário, os corpos físicos e as palavras sonoras são separados e articulados ao mesmo tempo por uma fronteira incorporal, a do sentido que representa de um lado o expresso puro das palavras, de outro o atributo lógico dos corpos. Tanto que o sentido pode muito bem resultar das ações e das paixões do corpo: é um resultado que difere em natureza, nem ação nem paixão por si mesmo e que garante a linguagem sonora de toda confusão com o corpo físico. Ao contrário, nesta ordem primária da esquizofrenia, não há mais dualidade a não ser entre as ações e as paixões do corpo; e a linguagem é os dois ao mesmo tempo, inteiramente absorvida na profundidade escancarada. Nada mais impede as proposições de se abaterem sobre os corpos e de confundir seus elementos sonoros com as afecções do corpo, olfativas, gustativas, digestivas. Não somente não há mais sentido, mas não há mais gramática ou sintaxe e, em última instância, nem mesmo elementos silábicos, literais ou fonéticos articulados." (DELEUZE, G. Idem, p. 93-4).
O corpo fragmentado pela palavra que açoita difere do corpo sem órgãos da palavra que grita. Mas ambos só podem ser encontrados longe da organização secundária, na qual uma superfície faz fronteira entre o expresso incorpóreo da palavra e os atributos lógicos do corpo coisificado. O corpo vivo e vibrante da ordem primária lida com signos vazios de sentido, distantes da superfície, na qual o sem-sentido é falha de comunicação e não marca de afecção corpórea.
Deleuze, por meio de Artaud, nos faz pensar que não há sintoma que não passe pela "palavra-paixão que explode nos seus valores fonéticos contundentes" e não há força inventiva - sintoma, do mesmo modo, mas assimilado como corpo-ato, quando o Ser mostra os dentes - que não seja a "palavra-ação que solda valores tônicos inarticulados" e se faça não-senso ativo. A arte, a transformação e a cura são, em suas expressões primárias, não-sensos ativos: respostas da transição de um corpo fragmentado a um corpo sem órgãos e sem superfície, que ainda não cedeu à coisificação dessubjetivante da organificação secundária. (E Arthur Bispo do Rosário seria a expressão maior dessa verdade.)
Não é o inconsciente, seja na psicose, na neurose ou na perversão, modelo para o corpo esquizofrênico cuja verdade Antonin Artaud trouxe a céu aberto?
Deleuze parece propor algo assim:
"Podemos encontrar na criança uma 'posição' esquizoide antes de ela ter se elevado ou conquistado a superfície. Na superfície mesmo podemos sempre encontrar pedaços esquizoides, uma vez que ela tem precisamente por sentido organizar e estender elementos vindos das profundidades." (Idem, p. 95).
Nisso que Deleuze chamou de "posição esquizoide" - e que não é o caso de confundirmos com e reduzirmos à estrutura psicótica -, busquemos aí aquilo que se passa com um ser-falante quando destituído ao ser tomado pela situação traumática. A palavra perde o sentido e o estado incorpóreo para se misturar regressivamente com estados corporais sem superfície. No trauma uma violência rompe a superfície do corpo e as significações que lhe acompanham misturam-se: erótico, destrutivo, fascinante, repulsivo etc. As proposições degradam-se e se confundem com afecções do corpo. O que era substantivo vira osso; o que era predicado vira sangue; o que era verbo vira paixão.
Mas busquemos aí também a fonte das invenções e sublevações sintomáticas que rompem, interrompem e questionam a ordem posta das superfícies. Haveria qualquer forma de superação em uma análise que não passasse pela imanência ativa do infra-sentido das palavras-grito? Aliás, aí reside sua poética e riqueza de significância: não no incorpóreo do ato que podemos encontrar em uma análise, mas justamente no fazer corpo de todo revirão analítico.
Talvez caiba-nos escutar as pulsões como quem escuta as palavras-sopro, as palavras-grito como respostas de corpos sem órgãos.
JULHO 2021
CCLXXV
"Meu corpo vivo, não direi meu inconsciente nem minha consciência, senão meu corpo vivo que engloba tudo, absolutamente tudo, em sua mutação constante e em seus múltiplos devires, é como uma cidade grega, na qual os edifícios contemporâneos trans convivem com pós-modernas arquiteturas lésbicas e com belas mansões femininas art déco, sob cujas fundações subsistem ruínas clássicas, restos animais ou vegetais, fundamentos minerais e químicos às vezes invisíveis. As pegadas que a vida passada deixou em minha memória se fizeram cada vez mais complexas e singulares, de modo que é impossível dizer que até há seis anos fui simplesmente uma mulher e que depois me converti simplesmente em um homem. Prefiro minha nova condição de monstro às de mulher ou homem, por que essa condição é como um pé que avança no vazio e aponta o caminho para outro mundo." (P. B. PRECIADO. Yo soy el monstruo que os abla. Editorial Anagrama: Barcelona, 2020, p. 44)
A sexuação não é uma automação anatômica e definitiva; é construída, inventada, biograficamente engendrada na particularidade do corpo, com suas potencialidades e limitações geno e fenotípicas, por seus encontros com o erótico - de modo violento, não poucas vezes -, a partir dos restos históricos, de fragmentos discursivos, de respostas a epistemologias sexuais hegemônicas, tocada pela presença negada de corpos e sexuações silenciados e com o auxílio dos recursos científicos, tecnológicos, estéticos de sua época. Como condensado de tantas variáveis, a sexuação, seja ela como e qual for, é um sintoma singular e em movimento.
O pênis e a vagina são elementos que podem ou não ser considerados nessa constelação.
A consideração da presença ou ausência do pênis pode ser uma das formas da sexuação fazer sintoma - a de Sigmund Freud, provavelmente -, mas podemos ouvir outras tantas ainda e ainda supor tantas outras. A teoria das pulsões, ao reconhecer o encontro entre o psíquico e o somático, a pulsão mesma como eco de um dizer no corpo, pode suportar incalculáveis formas da sexuação fazer sintomas.
"Não falo aqui do corpo vivo como de um objeto anatômico, senão como o que denomino 'somateca', um arquivo político e vivente. Do mesmo modo que Freud considerou que o aparato psíquico excedia a consciência, hoje é necessário articular uma nova noção de aparato somático para dar lugar às modalidades tanto históricas como externalizadas do corpo, aquelas que existem mediadas pelas tecnologias digitais ou farmacológicas, bioquímicas ou protéticas. A somateca está mudando." (Idem, p. 44-5)
A somateca está mudando, seja de modos descolonizados como o dos corpos não-binários, seja na forma colonizada, burguesa e consumista do kardashianismo e do bombadismo.
Há a somateca dos vencidos e há a somateca dos vencedores. A sexuação faz sintomas e imagens que não são jamais sem conteúdo político. Preciado não deixa de enfatizar as milhares de vozes que carrega consigo, como corpes que suplicam continuamente num tempo que se desdobra para trás ao longe e que também entoam sua luta no ato político do instante da enunciação:
"Com respeito a nós, os monstros da modernidade patriarco-colonial, a cura através da palavra e as terapias comportamentais ou farmacológicas não se opõem, senão que trabalham de maneira complementar como dispositivos de controle. Muitos de meus ancestrais morreram e morrem todavia hoje assassinadas, assassinados e assassinades, violades, espancades, trancades, medicalisades... ou viveram ou vivem sua diferença em segredo. Essa é minha genealogia, e é com a força que obtenho de todas suas vozes silenciadas, ainda que só em meu nome, que me dirijo a vocês hoje." (Idem, p. 80)
Pode o psicanalista ouvir estas vozes enquanto não substituir o sujeito a se encaixar no lado homem ou mulher, segundo sua relação com o falo, pela somateca pós-fálica?
Até que encontremos prova contrária, não há somateca falante pós-fálica que não invente um corpo e aquilo com o que ele gosta de gozar. Chamemos isso de sintomas da sexuação de cada um.
¬∃(x)¬∑(x)
Não podemos, portanto, afirmar que para toda somateca falante valha a sexuação: ∀(x)∑(x).
A somateca falante que cair na sexuação vai fazer corpo sexuado: homem, mulher, gay, trans, bi, queer, intersexo, agênero, +. Mas é preciso que verifiquemos caso a caso, se quisermos manter a singularidade desta invenção. Na era da somateca falante pós-fálica não haverá letras o bastante para nomear as modalidades singulares da sexuação. Precisamos de uma lógica de negação do todo.
Como traço distintivo que é, o corpo sexuado de cada um não pode ser traço unificante. Uma sexuação pós-fálica só é verificável a posteriori; não há sexuação a priori que não imponha uma norma, uma subsunção normativa. No campo extensivo da função fálica universalizante perdem-se as referências existenciais que caem sob o conceito de sexuação.
Fazer a coleção dos homens, das mulheres, dos trans, dos queers, já seria não tomar uma a uma as sexuações das somatecas falantes. (Ainda que, estrategicamente, as coleções, ao fazerem política identitária, contem para a luta por lugar e voz de sujeitos desejantes.)
Na lógica da sexuação pós-fálica os sentidos sexuais, suas representações prévias unificantes, cedem às referências sexuadas, ou seja, às distintas apresentações possíveis da sexuação como aquilo que só se presentifica no próprio laço. Oa sintomas da sexuação são prenhes de significância, mas não toleram significados prévios e fechados. Seu sentido se constela em ato. É contingente, sem precisar se tornar necessário. Diante da ausência de um todo sexual as sexuações particulares não podem mais ser subordinadas. E ao particular não subordinado podemos dar o estatuto de singularidade, posto que se assemelha somente a si mesma. Na lógica da somateca falante pós-fálica teremos não mais a identidade sexual ou de gênero, mas a singularidade sexual ou de gênero.
Será que não podemos desde já dar ouvidos à esta somateca falante?
CCLXXIV
O que é o desejo em psicanálise senão a ânsia de, diante do mal-estar, virar outra coisa?
As abstrações às quais a teoria psicanalítica chega a levar o conceito de desejo parecem deixar escapar o mal-estar em que os sujeitos desejantes vivem. Não considerados os traumas e mal-estares de um sujeito, o desejo abstraído confunde-se com algo que vai do gozo narcísico ao sucesso do eu-empresa. Não abrir mão de seu desejo não tem nada a ver com tornar-se um sujeito melhor.
Não há análise se um sujeito não disser de seus mal-estares e sua aposta de virar outra coisa. Neste virar outra coisa, ou revirão, como propõe MD Magno, reside a revolução de que é capaz a psicanálise. Uma micro-revolução.
O que quer um bolsonarista senão um pai-garantia capaz de eliminar seus medos? Também o comunista quer um mundo igualitário que possa colocar fim ou reduzir o sofrimento. Ainda que de modos diametralmente opostos, ambos querem aplacar o mal-estar.
É na dialética com o mal-estar que encontramos a materialidade do desejo. Fora dela, é desejo sem corpo.
CCLXXIII
Precisamos investigar as práticas aceleradas de artificialização do corpo - siliconagens, botoxismos, harmonizações faciais, implantes etc - como um fenômeno de produção de uma "nova raça superior". Trata-se de algo que parece reverberar uma espécie de reconfiguração corpórea da supremacia branca, a remoção cirúrgica e milimétrica de tudo o que possa ser considerado a pequena diferença que o racismo utiliza para sustentar sua necropolítica.
Afinal, quais são os traços considerados harmônicos pelos imperativos estéticos atuais de rostos finos?
JUNHO 2021
CCLXXII
Para lacanianos em geral a questão 'o que é/quer um homem?' não se coloca, pois a resposta seria um dado de estrutura. O mesmo não se pode dizer acerca da questão 'o que é/quer uma mulher?', deixada por Freud na forma de um enigma decorrente da suposta complexidade da sexualidade feminina que, segundo Lacan, advém da dimensão real de sua condição não-toda fálica.
Consideremos, porém, que uma teoria da constituição do sujeito sexuado pautada na reificação das normas edípicas não tem nada a dizer sobre o sexo que não passe pela resposta ao que é/quer um homem numa sociedade patrilinear.
Como esperar dessa teoria que venha a dizer o que é sexualmente um não-homem sem cair nas formas-objeto que derivam da dominação falocêntrica?
A situação que temos nos coloca mais diante dos limites político-epistemológicos da psicanálise assim constituída do que da opacidade das sexuações não masculinas.
Não é que se saiba o que é/quer um homem, e a mulher (ou qualquer posição sexuada não-homem) seja um enigma. Na verdade, a psicanálise só sabe o que é um homem explicado por um homem. Nem binária a psicanálise é: do ponto de vista de gênero ela é monista. E, se binária, sob tais fundamentos teóricos já estaria mediada pela dominação que o patriarcado reproduz.
Mistério, enigma, objeto, Outro é tudo aquilo que escape ao sexualmente homem.
MAIO 2021
CCLXXI
Para Benjamin, sem o materialismo histórico o historicismo não vê o relampejo da imagem do ocorrido no agora. "Pois se trata de uma imagem irrecuperável do passado, que ameaça desaparecer com cada presente, que não se reconheceu visado por ela." (BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. [Tese IV, M HA]. São Paulo: Alameda, 2020, p. 35).
O presente que não se reconhece visado pela imagem do passado, desaparece junto com ela. Como pode sustentar o hoje quem não se deixou tocar pelo ocorrido?
O negacionismo do passado, o forjar um passado fake, é impossibilitar o futuro. O país que não acerta as contas com seu passado segue soterrando mortos como se mortos não houvesse.
O supremacismo branco descendente da elite europeia colonizadora, genocida e escravocrata quer substituir o passado por um no qual seus crimes não contam ou não existiram. Mas o hoje está carregado de imagens que comprovam o que diz Benjamin, em frase atribuída a Gottfried Keller, "a verdade não escapará de nós".
No que chama de imagens dialéticas, Benjamin aponta o retorno do real recalcado pela violência dominadora.
O negacionismo é fantasmagórico, uma resposta delirante, mas não menos criminosa por isso, de silenciamento dos traumas.
O peso das imagens de hospitais lotados, cemitérios, índios doentes, matas devastadas, animais em sofrimento, carrega algo deste passado a visar o presente. Perderemos também o presente se não pudermos reconhecer isso.
Aquilo que as imagens de nossos dias constelam é portadora de algo que não podemos deixar que fale no vazio.
"[A boa nova, que o historiador do passado porta com pulsações velozes, vem de uma boca que, talvez no instante mesmo em que se abre, fala no vazio.]" (Idem, p. 35-6).
CCLXX
"Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade [im Stillstand, que Márcio Seligmann-Silva propõe traduzir por 'na suspensão']. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética - não de natureza temporal, mas imagética." (BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018, p. 768, [N3,1].)
Rompendo com a concepção de progresso, Benjamin propõe entre o ocorrido e o agora um encontro contingencial numa imagem constelar. As marcas do ocorrido encontram o agora suspensas num instantâneo que se furta à temporalidade linear. Não é, portanto, a regressão a algo do passado, lá guardado como cidadela conquistada, mas o encontro surpresa com algo do ocorrido, ruínas soterradas, história não contada que lampeja, pulsa e escapa. O saber histórico numa imagem que não se fixa e não renuncia. Em sua suspensão dialética, essa imagem é prenhe de significância, mas não do sentido ou de sua mera ausência.
À fantasia cumpriria a cristalização do "um sentido sem sentido", paraconsistência que podemos encontrar nas repetições do trauma?
Elaborar o trauma é devolvê-lo à sua potência significante, capaz de fazer surgir ali um ato fundador de um sujeito? (Sujeito capaz de sustentar como voz o que foi calado, derrotado, arruinado no ocorrido.)
ABRIL 2021
CCLXIX
"A imagem do corpo é a síntese viva de nossas experiências emocionais: inter-humanas, repetitivamente vividas através das sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais. Ela pode ser considerada como a encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejante e, isto, antes mesmo que o indivíduo em questão seja capaz de designar-se a si mesmo pelo pronome pessoal Eu e saiba dizer Eu. Quero dar a entender que o sujeito inconsciente desejante em relação ao corpo existe desde a concepção. A imagem do corpo é, a cada momento, memória inconsciente de todo o vivido relacional e, ao mesmo tempo, ela é atual, viva, em situação dinâmica, simultaneamente narcísica e inter-relacional: camuflável ou atualizável na relação aqui e agora, por qualquer expressão 'linguageira', desenho, modelagem, invenção musical, plástica, assim como mímica e gestos. [...] é na imagem do corpo, suporte do narcisismo, que o tempo se cruza com o espaço, e que o passado inconsciente ressoa na relação presente. No tempo atual sempre se repete em filigrana algo de uma relação de um tempo passado. A libido é mobilizada na relação atual, mas pode encontrar-se ali, desperta, re-suscitada, uma imagem relacional arcaica, que permanecerá reprimida e que retorna, então." (DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 14-5)
O que Dolto chama "imagem do corpo" pode ser entendido, para além do imaginário escópico, como um substrato mnêmico, um memento vivo de dores e prazeres do sujeito, a síntese alegórica de acontecimentos satisfatórios e traumáticos da vida do sujeito e de seus mais próximos.
Importante notar a dimensão de dobra temporal que a imagem do corpo permite às pulsões: a ligação mimética entre a relação atual e a imagem relacional arcaica. Pela ponte da pulsão o sujeito experimenta instantaneamente estados afetivo-corporais presentes em diferentes tempos de sua história.
"É por meio da palavra que desejos findos puderam organizar-se em imagem do corpo, que lembranças passadas puderam afetar zonas do esquema corporal, tornadas, consequentemente, zonas erógenas, ainda que o objeto do desejo não esteja mais ali. Faço questão de insistir no fato de que, se não houve palavras, a imagem do corpo não estrutura o simbolismo do sujeito, mas faz deste um débil ideativo relacional. Neste caso, existe, de qualquer forma, 'algo' da imagem do corpo, porém tão arcaica, imagem sensorial fugaz, imprecisa e sem palavras para representar, que não há possibilidade de se comunicar com uma pessoa. Um tal sujeito está à espera de simbolização. Ele nada pode exprimir de sua imagem do corpo, ele não pode 'mimificar' nada. Ele só pode expressar uma estupefação simplória ou alarmada, à espera do sentido." (Idem, p. 30-1)
Sem a participação da linguagem a imagem do corpo segue sendo continuidade entre imaginário e real à espera do simbólico. Podemos pensar se não há na história dos sujeitos momentos nos quais, pela intensidade e/ou violência da situação, a linguagem não participou do acontecimento afetivo-corporal. Há acontecimentos que tomam o corpo de modo desmedido e não cabem no entendimento. Excedem. Nestes casos também há algo do corpo à espera da possibilidade simbólica de mimificação de uma experiência absurda.
Notemos com a autora correlaciona a noção de fantasma com os acontecimentos linguageiros-corporais:
"Fantasma significa aqui memorização auditiva, olfativa, gustativa, visual, tátil, barestésica, e cinestésica de percepções sutis, fracas ou intensas, sentidas como linguagem do desejo do sujeito em relação a um outro, percepções que acompanharam as variações de tensões substanciais sentidas no corpo e, principalmente, dentre estas últimas as sensações de apaziguamento e tensão devidas às necessidades vitais." (Idem, p. 37).
Mas Dolto diferencia marcadamente o corpo marcado pelo desejo daquele marcado pela pulsão de morte:
"As pulsões de morte se caracterizam por serem despidas de representação residual de relações eróticas com o outro. Elas são a evidência de um corpo não-alertável pelo desejo. As pulsões de morte incitam regularmente o sujeito a retirar-se de qualquer imagem erógena, como no sono profundo, como no desmaio que se segue a uma emoção muito forte, como também na enurese ou na encoprese secundária, que aparece em uma criança já continente, cujo esquema corporal haja adquirido a continência natural de qualquer mamífero, e que, confrontado com um estado emocional inassimilável para sua imagem do corpo e a ética a isto relacionada, um estado em que seu narcisismo não pode representar-se e chega à introdução no sono ou de uma imagem de funcionamento, ou de uma imagem de zona erógena, no caso a zona erógena uretral ou anal." (Idem, p. 25).
O que Dolto não acrescenta aqui é a diferenciação das relações erógenas de tudo aquilo que se caracteriza como violências e excessos atravessados pelos contextos do incesto, do abuso, do estupro, da pedofilia. Nestes casos podemos encontrar a objetificação do sujeito como sua retirada de qualquer imagem erotizada, retirada esta que alcança muitas vezes o seu não querer saber, muito embora o horror que disso estigmatiza o corpo retorne como forma de buscar inscrição simbólica. Quando um sujeito se vê tomado na repetição da cena traumática é como apagamento que ele a presentifica, não como corpo erotizado. Na atualização da relação traumática é como corpo não-alertável pelo desejo que o sujeito comparece. Quando um analista lê aí a certeza de uma erotização secreta do sujeito, é pelo outro corpo presente nesta cena que ele procura e ao qual pode, lamentavelmente, em sua insistência, se aliar.
Aprisionado em seu sono temporal, o sujeito objetificado ali se cristaliza, congela-se, ressurgindo em outros momentos de sua história como se o tempo não tivesse passado. Destituído da subjetividade, o corpo confrontado com um estado emocional inassimilável vira pedra, monumento de um acontecimento pesado, e atravessa a história como as pedras, modificando-se num ritmo absolutamente inaudível. É preciso um rio de palavras para fazer poros no lugar-pedra, arrancar-lhe sedimentos, desenhar-lhe caminhos. Um analista é quem sustenta que lá dentro tem um sujeito. E é preciso acordá-lo para que da rocha surja um corpo banhado pelo desejo.
É equivocado dizer que um sujeito traumatizado não quer abrir mão de um gozo. Antes, é o gozo que não quer abrir mão do sujeito que aprisiona. O trauma mimetiza uma cena de dominação.
CCLXVIII
Ouvimos por aí que o problema todo é a Butler não ter entendido o Lacan. Sinceramente, como psicanalista, diria que o problema segue sendo os psicanalistas não entenderem a Butler.
CCLXVII
"Vivemos uma fase grotesca do capitalismo, mas não acho que estamos em uma crise que vai diminuir a potência dele. O capitalismo tem produzido uma mudança em si mesmo porque não fomos capazes de produzir uma mudança fora. Ele vai destruir o mundo do trabalho como conhecemos, e vai dispensar a ideia de população. Essa, para mim, é a próxima missão do capitalismo: se livrar de ao menos metade da população do planeta. O que a pandemia tem feito é um ensaio sobre a morte. É um programa do necrocapitalismo. A desigualdade deixa fora da proteção social 70% da população do planeta. E, no futuro, não precisará dela sequer como força de trabalho. Quem promete um mundo de pleno emprego é cínico ou doido. Não existe nenhuma possibilidade material de as coisas voltarem a funcionar assim." (Ailton Krenak em entrevista à Carta Capital de 31/12/20. Disponível em:https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ailton-krenak-proxima-missao-do-capitalismo-e-se-livrar-de-metade-da-populacao-do-planeta/?utm_campaign=novo_layout_newsletter_-_01012021&utm_medium=email&utm_source=RD+Station).
O necrocapitalismo fará a obsolescência programada atingir o ser humano. Quando não mais útil ao mercado, poderá ser descartado. Assim já vemos muitos jovens agirem durante a pandemia, em total desconsideração à possibilidade de ser parte da cadeia de transmissão viral que faz chegar a COVID-19 aos grupos de risco. A ausência de qualquer temor em um jovem de que sua presença na festa tenha relação com a contaminação do avô é absolutamente adequada ao necrocapitalismo que vemos se instalar objetiva e subjetivamente.
O hiper-investimento totalizante da imagem e a fragmentação consumista do corpo contribuem com a interdição da unificação de um eu não-todo necessária para a empatia com o outro. A feliz apatia do necrocapitalismo precisa de mecanismos culturais de produção da subjetividade que necessita.
CCLXVI
A leitura do gozo masoquista sempre como prazer secreto do sujeito é a moralização psicanalítica do conceito de pulsão de morte. Muitas vezes leva à culpabilização da vítima de um trauma.
CCLXV
Recolhi e organizei em ordem cronológica os trechos do diário de guerra de João Guimarães Rosa citados por Jaime Guinzburg em seu belíssimo ensaio "Notas sobre o Diário de Guerra de João Guimarães Rosa", publicado em Aletria: Revista de Estudos de Literatura, n.2, vol. 20, de maio-agosto de 2010 e disponível em: https://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/download/1533/1629.
(Os números entre parênteses após cada trecho referem-se à página do texto de Guinzburg onde se encontra.)
"18.12.1939
À noite, saí do Consulado: a mesma escuridão de sempre - Verdunkelung [queda de energia, blecaute, mas também toque do alarme]. Céu azulado, com estrelas. Cá em baixo, a treva, e uma névoa fantasmagórica dissolvida na treva. Luzes há, pequeninas errantes, rápidas, irreais, como vaga-lumes." (p.101)
"25.2.1940
Crepúsculo de cores estranhas, tintas espessas; acima das casas, o céu tinha uma barra mais escura, parecendo que as casas mandavam sombra para cima. Depois a massa negra- violeta-rosa, no céu. No Alster, alguns marrecos sobre o espelho, como nas lagoas falsas de certos presépios. Depois, acima, o céu azul, onde duas estrelas brilhavam, sozinhas. Havia exercícios de aviões, com holofotes." (p.101)
"2.III.1940 (sábado) - Hoje, ao sair da casa do C. Geral, às 10 e meia, vi os holofotes. Céu estrelado. Noite escura na terra e clara no céu. Dois holofotes imóveis - cones cruzados. E um terceiro, pendulando num ângulo invariável, corria, para lá e para cá, batendo meio céu e desrespeitando uma porção de constelações. Os aviões ingleses têm vindo a Berlim todos estes 4 dias.
(Um avião foi alvejado - ou colhido pelo refletor (holofote) justamente a dois milímetros da á do Centauro, entre a Ursa-Menor e o galho mais alto (a copa) do olmo de defronte minha casa - M%)" (p.101)
"17.V.1940 Fui, com Ara, a Harburg e à Repperbahn, para ver os estragos das bombas e da Flak [artilharia antiaérea].
As cerejeiras floridas - flores alvas, em toalhas e véus. E as velas brancas das castanheiras.
Vimos a caserna; o buraco da bomba, na praça. A árvore parcialmente descascada; etc., etc. Mas não vimos a (fábrica) de óleo. As casas destruídas. Os caminhões, com soldados, evacuando os moradores vizinhos." (p.99)
"30 de Maio de 1940. 12 horas e 20. Estou trabalhando, corrigindo o último trecho do "O burrinho pedrês". Mugiram as sirenes. Alarme!
10 minutos para 1 hora - (Três) Quatro estampidos surdos, subterrâneos. Bombas? Mais bombas, perto, sempre mais perto." (p.102)
"Noite de 17 para 18 de Junho [1940] - A 1 hora da madrugada - Alarma, ataque aéreo, bombas. Flak - às vezes como se o ar e o céu fossem lago imenso, onde um peixe grande desse pulos. Pulos de um peixe enorme, n'água mansa. Outras vezes, o espouco de uma garrafa a desarrolhar-se. Outras, como drapejos de pano pando, de bandeira ao vento." (p.102)
"(19.VI.1940) - Estou escrevendo na cama, ao som dos estampidos da Flak. Alguns são tétricos: como socos retumbantes, dados por punhos enormes no bojo elástico do ar alto. Outros ribombam festivos. Uns tocam bombo ou tambor. Antes-de-ontem estão dizendo que caiu uma bomba no Alster (...) Houve peixes mortos, galhos de árvores arrancados, vidraças partidas. Eu penso que foi da Flak."(p.102)
"5.VIII.1940 - Alarme a 0,10'! 8.VIII.1940 - Alarme às 11,45'! 10.VIII.1940 - Alarme às 12,55'!" (p99)
"12.IX.40 -
Ontem houve Grossangriff [grande ataque], às 11 da noite. Chuva de bombas. Fui, com Ara, ver as casas destruídas, na Sierichstrasse e Mühlenkampf. Em Harburg, foi feio, tendo sido atingido um Bunker." (p.99)
"7.X.1940- Dois alarmes; às 9,50 da noite e cerca de 12 e tanto (meia noite); houve tiros até cerca de 4 e 30 da madrugada. Parece que os ingleses só passaram para Berlim, onde a coisa esteve braba!" (p.99)
"10.X.1940 - Alarme = 9,40.
Outra vez alarme: 12,05 depois da 2o Entwarnung [fim de alerta], ainda houve tiroteio brabo, que durou até quase a madrugada.
(ataque duro!)
_______________
13.X.1940 - Alarme, às 12,30.
Ontem chegou ao Consulado a comunicação de que não receberemos mais gasolina.
_______________
14.X.1940 - Alarme, às 9,40.
Noite clara. Clarões. Nenhum holofote. Tiroteio brabo.
Entwarnung.
Alarme, outra vez = à 1,30.
_______________
15.X.1940 - Alarme, às 9,40.
2o Alarme, às 12,30. _______________
16.X.1940 - Alarme, às 9,55." (p.100)
"16.X.1940. Colunas curvas, de leite = holofotes: E piscam, instantâneas, efêmeras estrelinhas alaranjadas, no alto do céu. Há também, impassíveis, as estrelas de verdade..." (p.103)
"25.X.1940 - O ataque de ontem à noite foi o mais sério e terrível de quantos houve até hoje. Das 9 e 30 às 3,30, e depois das 4 e tanto até às 6 da manhã. Sempre com tiros e bombas tremendas. Parece que se inaugurou para nós uma nova fase da guerra aérea. Será que começou mesmo o fim do mundo?! O trovão das bombas se repetia, infernal." (p.103)
"16.XI.1940. O tiroteio está brabíssimo hoje também. Já explodiram bombas!
As portas e janelas da minha casa batem, golpeiam." (p.98)
"15.III.1941 - De ontem para hoje não houve alarme. Pude dormir e recuperar os nervos. Até às 12,30, dormi, vestido, no sofá, esperando as sirenes." (p.99)
"3.V.1941.
Para amanhecer hoje, houve um grande alarme e tiroteios. Fiquei na cama, entre o sono e a vigília." (p.98)
"11.V.1941 (Domingo) - Hoje, às 7 da manhã, acordou-me o telefone. Era o Cônsul Geral - o Consulado havia sido atingido por uma bomba. Eu levantei, estremunhado e com dor de cabeça, porque só tinha dormido 3 horas e pouco.
O Cônsul Geral veio apanhar-me, com a Buik. Fomos. Terrível, o estado de nosso pobre Consulado!..." (p.98)
"18. Maio [1941] (Domingo) = Na noite de 18 → 19 = alarme, ataque aéreo.
Bombas. Uma "lanterna" (corpo iluminante) caiu, ao lado da minha casa. Assustei-me, esperando bombas!" (p.97)
Não me cabe aqui uma análise histórica ou estética dos trechos do diário que Guimarães Rosa escreveu enquanto foi cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo. Para tanto o ensaio de Guinzburg é bastante valioso. Recorro aos trechos acima porque me pareceram valiosos como ilustração do esforço de um sujeito de condensar excessos de sentidos intraduzíveis que vieram do Outro em forma de violência.
Não tenho recursos para afirmar que Rosa teria sido traumatizado pelos eventos de guerra que viveu. Mas o esforço de tradução desses eventos num diário pode ser pensado como uma tentativa de não-calar, um trabalho de forçar palavras num real, de dar tratamento figurativo-causal-significativo para o que extrapola a representação, se furta à razão e excede a palavra: os horrores da guerra.
O caráter fragmentário das anotações - embora factível para um diário - sugere um observador tomado pelo susto dos tiros/bombas e alarmes e, ao mesmo tempo, atento à colisão entre natureza/vida e destruição. Talvez não seja demais tomar o diário de guerra de Rosa como um memorial da angústia.
Os registros de alarmes como acontecimentos/marcas únicas de alguns dias, a preocupação com o registro exato da hora do alarme - que passa a ser esperado para qualquer momento -, como um grito de fogo, e os tiros/bombas, como um grito de ódio, escarificam o corpo com excessos violentos que o autor busca transpor/traduzir no diário, objetificar com palavras e imagens que, neste caso, são bem servidas pelo talento roseano. Os registros "alarme", "alarme às", "alarme, outra vez", "bombas", "tiroteio brabo", "o tiroteio está brabíssimo", "o trovão das bombas", "estampidos surdos", "mugiram as sirenes", "espoucos", "socos retumbantes", "bombo", "tambor", "as portas e janelas da minha casa batem, golpeiam" refletem o trabalho mimético do dizer ativo do que se recebe no corpo passivamente. Mas o corpo não é marcado somente de coisas ouvidas; as coisas vistas também se fazem presentes: "holofotes", "holofotes imóveis", "cones cruzados", "colunas curvas, de leite = holofotes", "uma lanterna caiu ao lado da minha casa".
Vejamos a leitura de Guinzburg sobre a presença marcante dos registros de alarme:
"Há aqui algo que corresponde, sem dúvida, a um fenômeno próximo do unheimlich freudiano. O alarme se torna uma espécie de elemento rotineiro das vivências do escritor, mas ao mesmo tempo é um sinal que precisa ser destacado pelo registro, com um espaço mínimo dedicado a outros assuntos (o Consulado, a gasolina, a noite). O alarme ganha uma função conotativa fundamental.
Ele é um elemento antagônico. O alarme é algo cujo sentido de uso prático em princípio é óbvio, como mecanismo de controle social. Ao mesmo tempo, com sua repetição vertiginosa, em horários variados, provocando no escritor um efeito de absorção, e por fim, de regressão de linguagem à reiteração, o alarme se torna uma espécie de instrumento agressivo, atuando como um mecanismo de tortura, um buraco negro do pensamento, que se obriga a recuar diante da escuta, por insegurança e vulnerabilidade. [...] Não temos dúvida de que alarmes eram reais e atormentavam Rosa. Examinando a construção textual, quando os alarmes se convertem em uma construção reiterativa do campo verbal, eles se caracterizam como uma metonímia de um amplo campo de acontecimentos - um contexto histórico pautado pela destruição, condicionado pela violência constante." (p. 100-1)
O alarme se torna no diário de Rosa a alegoria da morte a chegar mais perto a cada dia: dos aviões de passagem a Berlim em 2/3/40 à "lanterna" que caiu ao lado de sua casa em 18/5/41. Os obsessivos registros de dias, vezes, horas e minutos dos alarmes sugere um exercício lógico quase desesperado de mapeamento dos movimentos aleatórios dessa morte. Saber que a qualquer momento um ataque aéreo pode acontecer, esperar por ele sem saber para quando e estar ciente de que num deles uma bomba poderá atingir minha casa: o que leva alguém a registrar cuidadosamente num diário - que poderá restar entre os escombros - o que marcava o relógio no momento em que soou o alarme?
Além de sinais de localização da morte os alarmes parecem guardar, pela força da repetição, a presença absurda do mesmo instante. Algo do mesmo se repete fazendo dobras no tempo: a contingência do primeiro alarme constelou o que Rosa pode ter visitado do segundo alarme em diante (um trauma?). A urgência de distribuir obstinadamente, pelos dias e horas, a recorrência arbitrária dos alarmes, advém, entendo eu, da necessidade de separar um alarme do outro, de não vivê-lo como dobra temporal pela qual se volta a visitar sempre o primeiro. Nesse sentido, a anotação de cada um dos alarmes não é somente sustentar um não calar-se diante de sua violência, mas também dar voz e trato ao horror que com eles e neles se apresenta: Rosa e o alarme ou o alarme de Rosa - algo de uma intimidade impossível e absurda que a dial inscrição buscou tornar um cotidiano suportável.
Quer como acorde estridente a acompanhar a dança macabra e aproximativa da morte na forma de holofotes a cruzar os céus e parábolas de bombas a chover mais perto, quer como portal do tempo a romper continuidades e costurar a permanência de um instante em repetições sanfonadas, o(s) alarme(s) faz(em) o diário de Rosa regredir ao memento - mas também grita para fazer do horror, história.
"Da calmaria de meu quarto / vislumbro um baile macabro / que equipei de certo ritmo / para entenderem o que digo; / Espero tornar evidente / que nossa carne é decadente; / Esteja sempre bem vestido, / aprume-se para o infinito." (BARTH, Ferdnand. [1865]. O labor da morte: uma dança macabra. São Paulo: Editora Sebo Clepsidra, 2020, p. 32).
(Até certo ponto é enigmático o porque de Rosa usar o idioma alemão para os termos de guerra: Verdunkelung [queda de energia, blecaute, mas também toque do alarme], Flak [artilharia antiaérea, mais precisamente: Flugabweherkanone = canhão de defesa contra aviões], Entwarnung [fim de alerta]. Podemos supor que fossem termos ditos e gritados em seu entorno naqueles momentos de urgência e registrados como traços mnêmicos.)
Passemos agora para o seguinte longo trecho de Guinzburg, no qual analisa o modo como o olhar contemplativo de Guimarães Rosa faz, das mudanças na relação que vê entre natureza e destruição, a transmissão mimética do avanço da guerra.
"Em 18.12.1939, havia "a mesma escuridão de sempre", uma natureza habitual para os costumes da percepção, ordenada em sua distribuição de escuridão e luz, mas já com sua proporção de fantasmagoria. Em 25.2.1940, um crepúsculo estranho trazia a exposição inesperada de sombras avessas, e apareciam os holofotes. / Ali ficava ostensivo o problema de que o olho que contemplava satisfeito o céu também perceberia os movimentos táticos de combate. Era o mesmo olho, e isso poderia ocorrer, frequentemente, em um mesmo movimento ocular. A partir de então, no "Diário", isso se constitui como um problema de âmbito verbal. O que o olho não consegue separar, a manifestação verbal também não dissocia. O avião vai estragar a constelação. / O problema perceptivo ganha maior atenção em 2.3.1940, com a delimitação do ângulo do alvo, entre a Ursa-Menor e o galho do olmo em frente à casa, determinando que o mesmo olho é obrigado a encarar em um único gesto perceptivo a guerra, o universo e o espaço do próprio sujeito. / Com isso, não surpreende que as imagens da natureza passem a metaforizar, em 4.6.1940, efeitos de impacto de bombas, no caso de pulos de um peixe na água. A natureza foi tomada pela guerra: a paisagem foi tomada pela guerra; o olho de quem escreve foi tomado pela guerra. O olho acompanha a cadaverização, a aniquilação generalizada, com o deslocamento em 19.6.1940 de imagens anteriormente mencionadas, como o peixe e a árvore - "Houve peixes mortos, galhos de árvores arrancados, vidraças partidas." / O texto de Rosa apresenta, ao longo de sua elaboração, processos destrutivos, entre eles: a destruição da cidade de Hamburgo, suas casas transformadas em ruínas; a aniquilação de elementos da natureza, árvores, os peixes mortos; a explosão do Consulado do Brasil; a morte de muitas pessoas, incluindo crianças." (GUINZBURG, J. Idem, p. 103-4).
Mbembe é incisivo quando diz que a necropolítica exige visibilidade (MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018). Os buracos de bomba na praça, as ruínas, árvores mutiladas, estilhaços espalhados... a destruição se visualiza pelo despedaçamento dos elementos que antes formavam uma paisagem cotidiana. Há de se suspeitar do quanto tal descrição busca traduzir também a subjetividade de quem experiencia a guerra. Só podemos mergulhar na dimensão mimética das anotações de Rosa, isto é, o quanto elas dizem do que se repete há séculos nas guerras e trazemos escrito no corpo transmitido por gerações, se pudermos lê-las sem retirar-lhes o que têm de vísceras da história.
Rosa parece dar-se conta da dialética que há entre o inefável da imensidão da natureza e o horrível do espetáculo da guerra. Para dar conta da passagem de um indizível ao outro, ele tenta revelar o outro pelo um: elementos da natureza para metaforizar eventos de guerra e a mesma natureza destruída para tentar dizer do contranatural daquela. Nas anotações do autor a natureza se oferece poeticamente ao zelo de dizer a guerra e esta devolve a primeira em seu estado cru e violentado.
No Diário de Guerra de Rosa as palavras serviram aos afetos, ou seja, permitiram enxertar corpo ao seu dizer, numa época em que os afetos foram utilizados em larga escala para o estrangulamento da razão.
Enfim, creio que eu possa resumir a partir da anotação de 30/5/40, dizendo que Guimarães Rosa agarra-se ao seu diário tal como Francolim à cauda do Sete-de-Ouros e ouve mugirem as sirenes em meio à chuva de bombas que se aproxima e poderá afogar todos.
FEVEREIRO 2021
CCLXIV
O lacanismo midiático e personalista, comum de uns anos para cá, se sustenta hoje menos no debate sincero das dificuldades clínicas de nosso tempo do que no glamour narcísico da pseudo-intelectualidade.
CCLXIII
No museu do corpo os traumas fazem dobra temporal. Em cada um deles visitamos um instante constelar no qual passado e presente se unem.
Os traumas são encontrados como num sítio arqueológico: diferentes camadas de escarificações feitas de coisas vistas e/ou ouvidas que registram de pequenas frustrações recentes a ruínas de ancestrais derrotados.
Quando elementos contingentes da atualidade constelam a abertura do portal da dobra temporal, a arte do trauma se expõe como mimese
de um fracasso: em seu poema, escultura, cena ou tela o trauma condensa excessos de sentidos que vieram do Outro em forma de violência e não puderam ser traduzidos. Em si mesmo o trauma é esforço falido de tradução: tradução da tradução não conquistada do ato violento.
Por uma construção estético-ético-linguística o trauma tenta dar tratamento figurativo-causal-significativo para o que extrapola a representação, se furta à razão e excede a palavra: o encontro com o antônimo ontológico do inefável, o horrível - tão qualmente indizível.
Homologamente à construção do delírio como cura na psicose, clinicamente é preciso por o trauma a concluir seu trabalho.
Buscar técnicas, lógicas e idiomas do bem dizer é livrar o trauma da maldição da repetição de um destino, isto é, arrancá-lo do sísifo destino da repetição. Todo trauma é mal dito quando desiste de si mesmo; quando, de tradução de ruína, vira ruína de tradução.
Um horrível excede, num evento, a possibilidade de sua assimilação sígnica. Funda-se a tradução disso como um insistente necessário. Por meio da dobra temporal repete-se a mal-tradução de um horrível de outrora. O trauma mal-traduz marteladamente por monumentos e memoriais de angústia. Cava a cada dobra um pouco mais do dizer no corpo amorfo do horrível, forçando que se faça história o que se apresenta como natureza indômita. A repetição matura uma palavra apta a contar a estranheza e o barbarismo do espanto.
Quando o trauma conclui seu trabalho de tradução, do evento enfim contado se faz outra coisa que não dobra temporal: uma vez conquistado para o horrível seu lugar na história ele se torna imperativo categórico: que o horrível não se repita.
Da angústia de repetição sísifa à indignação, o horrível que se pôde contar funda um sujeito onde havia objetificação: na vítima de um trauma, pela dor lancinante do parto da palavra visceral, nasce um sujeito-que-não-se-cala.
Para esse tradutor-portador-do-horrível - o sujeito-que-não-se-cala - o tempo não mais faz dobras de atualização do passado: se há portal, ele é cada instante pelo qual o passado traduzido agora fala por suas vísceras. E o seu dizer - prova de que toda a repetição traumática transubstanciou-se em reverberação - é um só: que o horrível não se repita.
JANEIRO 2021
CCLXII
Algumas poucas reflexões sobre a "Colonialidade do poder", de Aníbal Quijano:
"Como no caso das relações entre capital e pré-capital, uma linha similar de idéias foi elaborada acerca das relações entre Europa e não-Europa. Como já foi apontado, o mito fundacional da versão eurocêntrica da modernidade é a idéia do estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cuja culminação é a civilização européia ou ocidental. Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista, de movimento e de mudança unilinear e unidirecional da história humana. Tal mito foi associado com a classificação racial da população do mundo. Essa associação produziu uma visão na qual se amalgamam, paradoxalmente, evolucionismo e dualismo. Essa visão só adquire sentido como expressão do exacerbado etnocentrismo da recém constituída Europa, por seu lugar central e dominante no capitalismo mundial colonial/moderno, da vigência nova das idéias mitificadas de humanidade e de progresso, inseparáveis produtos da Ilustração, e da vigência da idéia de raça como critério básico de classificação social universal da população do mundo.
A história é, contudo, muito distinta. Por um lado, no momento em que os ibéricos conquistaram, nomearam e colonizaram a América (cuja região norte ou América do Norte, colonizarão os britânicos um século mais tarde), encontraram um grande número de diferentes povos, cada um com sua própria história, linguagem, descobrimentos e produtos culturais, memória e identidade. São conhecidos os nomes dos mais desenvolvidos e sofisticados deles: astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas, etc. Trezentos anos mais tarde todos eles reduziam-se a uma única identidade: índios. Esta nova identidade era racial, colonial e negativa. Assim também sucedeu com os povos trazidos forçadamente da futura África como escravos: achantes, iorubás, zulus, congos, bacongos, etc. No lapso de trezentos anos, todos eles não eram outra coisa além de negros." (QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 127, disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf).
O evolucionismo eurocêntrico presente no pensamento ocidental como um todo é uma espécie de antolhos que nos impõem a supremacia branca como uma "realidade natural e evidente". Esconde-se no humanismo da razão burguesa a ambição colonizadora e necropolítica que submete não-brancos em diversos cantos do planeta. Há algo no pensamento ocidental que não reconhece diferenças e singularidades étnicas e culturais: guaranis e tahuantisuyos são índios; jejes e bantos são negros; índios e negros são, negativamente, não-brancos. (O mesmo vale, considerando-se as variantes e particularidades da sexuação, para os não-homens-cis.)
Da natureza à civilização europeia, os brancos ficam do lado da civilização europeia e os não-brancos, do lado da natureza. De um lado, espírito; do outro, corpo. Este mito ocidental é portador de sentidos que excedem, ou seja, traumatizam, uma vez que, mais que colonizar mentes, mutila corpos. Deveríamos considerá-lo, por seus efeitos, ao lado da objetificação das mulheres e filhos e da propriedade privada instauradas pelo patriarcado, um dos mais violentos e traumáticos acontecimentos da humanidade.
A ideia corrente de que os movimentos anti-sexistas e anti-racistas dividem a classe trabalhadora e impedem a revolução deveria ser pensada pelo seu avesso: nenhuma revolução será possível sem que se considere a ruptura com a dominação de raça e de sexo, ou seja, sem que se reconheça a violência do eurocentrismo e os traumas impostos aos corpos que, em sua grande maioria, chamamos de proletariado, justamente por ser reduzido ao corpo, como "força" de trabalho.
Sobre a questão de gênero consideremos o seguinte trecho:
"Esse novo e radical dualismo não afetou somente as relações raciais de dominação, mas também a mais antiga, as relações sexuais de dominação. Daí em diante, o lugar das mulheres, muito em especial o das mulheres das raças inferiores, ficou estereotipado junto com o resto dos corpos, e quanto mais inferiores fossem suas raças, mais perto da natureza ou diretamente, como no caso das escravas negras, dentro da natureza. É provável, ainda que a questão fique por indagar, que a idéia de gênero se tenha elaborado depois do novo e radical dualismo como parte da perspectiva cognitiva eurocentrista." (Idem, p. 129).
O próprio Quijano, embora não leve em conta o que estou propondo como dimensão traumática da dominação, sustenta a relação entre "classe social" e "raça" como instrumento de exploração desta forma:
"Toda democratização possível da sociedade na América Latina deve ocorrer na maioria destes países, ao mesmo tempo e no mesmo movimento histórico como uma descolonização e como uma redistribuição do poder. Em outras palavras, como uma redistribuição radical do poder. Isto se deve, primeiro, a que as 'classes sociais', na América Latina, têm 'cor', qualquer 'cor' que se possa encontrar em qualquer país, em qualquer momento. Isso quer dizer, definitivamente, que a classificação das pessoas não se realiza somente num âmbito do poder, a economia, por exemplo, mas em todos e em cada um dos âmbitos. A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política." (p. 138).
A descolonização deve alcançar os corpos, isto é, o tratamento possível dos traumas, da violência sofrida pelos corpos marcados pelas diferenças de gênero, de sexuação e raciais capturadas nas cristalizações de sentidos absurdos e falsos impostas pelo pensamento eurocêntrico branco, machista, lgbtfóbico e patriarcal. Desconstruir a colonialidade das marcas corporais implica suspender, esvaziar, romper com os excessos-sentidos que séculos de dominação deram a esses corpos e dar voz aos afetos a eles ligados. Tratar esses traumas pressupõe um laço social que permita verdadeiramente o reconhecimento e a simbolização da violência sofrida e a ressubjetivação daqueles que foram por ela vitimizados, objetificados. E que fique claro que não serão (não seremos) os homens-cis-brancos-patriarcais aqueles que tratarão e curarão esses traumas. Nenhuma redistribuição efetiva e radical do poder pode ser consistente se não acolher os novos corpos/sentidos/afetos que os movimentos anti-sexistas, de gênero e de raça materializam como fruto de resistência e em nome de gerações de luta. Não há socialização do poder digna deste nome se a elite europocêntrica dos diferentes lugares do mundo não fizer sua mea-culpa histórica e entregar suas armas ou for finalmente derrotada pela luta anti-capitalista descolonizadora. Sem isso, qualquer luta de classes cai na fantasmagoria de uma luta sem corpo, uma casse de trabalhadores imateriais. Difícil supor que um trabalhador venha a se reconhecer num "conceito de trabalhador" sem que as ressonâncias corporais-afetivas de sua experiência cotidiana de mutilação não estejam presentes. Tais ressonâncias são corporificadas por meio dos instrumentos seculares de naturalização do poder e, por isso, talvez só possam ser combatidas pela interrogação dos mesmos. E claro está que a interrogação dos instrumentos de naturalização do poder visa a erradicação de suas bases sociais de sustentação e manutenção.
Aliás, é necessário pensarmos com o merecido cuidado se a exclusão ou o enfraquecimento das questões identitárias e de gênero dentro dos movimentos de luta de classes não acontecem à serviço da própria colonialidade do poder, uma vez que seria pretensioso supor que os movimentos socialistas de "Estados independentes e sociedades coloniais" (p. 134) estivessem livres de sua contaminação histórica. (Há, ainda, a vertente cínico-camuflada pela qual homens-brancos-cis-burgueses, sem nem sequer fazer uma autocrítica, se arrogam como porta-vozes e líderes das lutas de descolonização dos corpos dominados.)
Senão, vejamos o que Quijano tem a dizer acerca da miragem eurocêntrica sobre as revoluções socialistas e o socialismo em sua relação com a distribuição do poder:
"Quanto à miragem eurocêntrica acerca das revoluções 'socialistas', como controle do Estado e como estatização do controle do trabalho/recursos/produtos, da subjetividade/recursos/produtos, do sexo/recursos/produtos, essa perspectiva funda-se em duas suposições teóricas radicalmente falsas. Primeiro, a idéia de uma sociedade capitalista homogênea, no sentido de que só o capital como relação social existe e portanto a classe operária industrial assalariada é a parte majoritária da população. Mas já vimos que não foi assim nunca, nem na América Latina nem no restante do mundo, e que quase seguramente não ocorrerá assim nunca. Segundo, a idéia de que o socialismo consiste na estatização de todos e cada um dos âmbitos do poder e da existência social, começando com o controle do trabalho, porque do Estado se pode construir a nova sociedade. Essa suposição coloca toda a história, de novo, sobre sua cabeça. Inclusive nos toscos termos do Materialismo Histórico, faz de uma superestrutura, o Estado, a base da sociedade. E escamoteia o fato de uma total reconcentração do controle do poder, o que leva necessariamente ao total despotismo dos controladores, fazendo-a aparecer como se fosse uma socialização do poder, isto é, a redistribuição radical do controle do poder. Mas, precisamente, o socialismo não pode ser outra coisa que a trajetória de uma radical devolução do controle sobre o trabalho/recursos/produtos, sobre o sexo/recursos/produtos, sobre a autoridade/instituições/violência, e sobre a intersubjetividade/conhecimento/comunicação, à vida cotidiana das pessoas. Isso é o que proponho, desde 1972, como socialização do poder." (p. 138).
A descolonização do poder não é a estatização socialista do poder, mas sua radical devolução, distribuição à vida cotidiana das pessoas. Mas como fazer isso sem um nacionalismo anticolonial e sem a formação de um Estado capaz de assegurar o desenvolvimento das forças produtivas necessárias para a independência e a proteção diante das ameaças imperialistas? (Basta que interroguemos a relação que pode haver entre a estatização do poder e o anticolonialismo no marxismo dito oriental.)
De qualquer modo, na concepção de devolução do poder à vida cotidiana das pessoas se faz presente a enérgica reconstrução democrática feminista, anti-racista e queer da sociedade hoje sob o domínio macho-cis-branco-patricarcal, isto é, colonizada. E é preciso questionar até onde vai o anticapitalismo, sob quaisquer formas ou meios (isto é, ainda que se argumente que as propostas de transformações oriundas de movimentos identitários sejam reformistas e, portanto, sem ruptura evidente com o Estado burguês), sem essa descolonização.
A união da classe explorada como condição da derrubada do Estado burguês (ao invés de sua apropriação) e da distribuição social dos meios de produção, não pode ser considerada como impossibilitação das lutas anti-racistas, anti-sexistas, lgbtfóbicas. A concepção totalizante da classe trabalhadora pode servir de antecipação ideológica da ideia de que somente o partido único representa as revoluções socialistas vitoriosas. Sabemos o quanto a burocratização opressiva e violenta dos partidos únicos recompõe algo do Estado burguês que visavam superar. Muitas vezes a união formal do proletariado se transforma num imperativo silenciador de grupos minoritarizados, justamente quando tal união deveria ser a constelação da democracia real que não encontram no embate entre classes do Estado burguês.
"En su movimiento de lucha, de organización y de toma de conciencia de sus intereses específicos, el proletariado se va configurando como clase dotándose de una estructura y de tendencias de institucionalización, que corresponden a cada una de las áreas de su existencia social en y desde las cuales se enfrenta a la explotación y a la dominación. En las relaciones inmediatas de explotación y en sus instituciones concretas, referidas a la producción, distribución, reproducción; en las relaciones sociales fuera de la producción inmediata; en la distribución espacial del capital; en la configuración de los poblamientos y residencias; en las relaciones entre nacionalidades y etnias, si ellas existen diferenciadas en una formación social; en las relaciones intersexuales; en las instituciones de poder cultural y político. [...] Así, la democracia interna del partido se funda en la democracia interna de la clase, y eso fortalece y defiende a esta última y a través de eso la vitalidad de la democracia socialista, o democracia directa de los trabajadores. Y todo ello supone la presencia deliberante y decisoria de las bases de la clase, en cada uno de sus organismos." (QUIJANO, A. Poder y democracia en el socialismo. CLACSO, 2014, p. 586-7. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506052228/eje2-6.pdf)
Parece impossível que essa democratização do poder numa realidade socialista aconteça sem que as dominações de sexuação, coloniais e patriarcais tenham sido combatidas e minimamente superadas. E não creio que esta superação se dê sem o exorcismo dos excessos-sentidos escarificados nos corpos hoje dominados. É preciso continuar a contar e a apostar nos movimentos dos grupos minoritarizados como lugar de tratamento dos traumas.
CCLXI
Seguindo na esteira crítica de Losurdo, quando chama a atenção para a diferença entre o marxismo ocidental - pautado no socialismo (como tomada das condições de produção já existentes pela classe trabalhadora) e num Estado em vias de extinção - e o marxismo oriental - cujo principal escopo foi o anticolonialismo, a necessidade de formação de um Estado e do desenvolvimento de condições independentes de produção -, é admirável a seguinte passagem Augusto César Sandino:
"(...) se nos atuais momentos históricos nossa luta é nacional e racial, ela se tornará internacional conforme se unifiquem os povos coloniais e semicoloniais com os povos das metrópoles imperialistas. Não abandonarei minhas montanhas enquanto restar um gringo na Nicarágua; não abandonarei minha luta enquanto faltar a meu povo um direito por encaminhar. Minha causa é a causa de meu povo, a causa da América, a causa de todos os povos oprimidos. (SANDINO, A.C. In: FONSECA, C. Ideário político de Augusto César Sandino. Manágua: FSLN, 1984, p. 33).
A fala de Sandino dialetiza a relação entre nacionalismo anticolonial e internacionalismo anticapitalista: a causa dos povos oprimidos é, em última instância, anticapitalista, mas não deixa de ser nacional num momento de luta contra invasores e atravessada pela construção de um Estado livre e de uma nação com forças produtivas minimamente desenvolvidas como forma de combater ameaças imperialistas.
Mutatis mutandis, um país que ainda carrega heranças racistas de seu período colonial precisa vencer a opressão branca, machista e patriarcal se quiser unir-se aos povos das metrópoles imperialistas. As esquerdas nossas que não derem voz e prioridade às lutas de grupos minoritarizados e às pautas decolonizadoras estarão fadadas ao "esquerdomachismo-branco", tão disseminado em nossa bolha burguesa, composta de pensadores incapazes de se questionarem de verdade (fazem-no performaticamente), de ouvirem o outro de verdade (fazem-no desde o lugar de líderes) e sempre rápidos a tirar do bolso uma solução prêt-à-porter para os mais diversos impasses político-teóricos.
CCLX
Uma hipótese a ser investigada. Numa sociedade em que a razão cínica se multiplica, a penetração epidêmica do botox não pode se sustentar somente no impulso pela renovação consumista dos padrões "estéticos". Dialeticamente, ao invés de perguntarmos apenas o que os adesos à botoxmania querem mostrar, cabe-nos perguntar também o que tentam esconder. O botox possibilita o apagamento calculado das expressões faciais e, com isso, a aparente anestesia das emoções: a perenização e a popularização da "cara de paisagem". A feliz apatia tem agora a sua face artificialmente garantida. O botox, vendido como "fonte da juventude eterna", é a máscara permanente do cínico.
CCLIX
Algumas reflexões sobre O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, de 1959.
Não é descartável a hipótese de que o Bérenger de Ionesco não se transforma em rinoceronte por ter uma experiência diferenciada em relação à sua divisão subjetiva e à culpa. São notórias as passagens em que o texto deixa isto explícito:
"Bérenger: Não gosto muito de álcool. No entanto, se não bebo, não me sinto bem. É como se eu tivesse medo... então, bebo para não ter mais medo. [...] Não sei bem como explicar. São umas angústias difíceis de definir. Não me sinto à vontade na vida... no meio das pessoas... então, recorro ao álcool. E isso me acalma, me descontrai, me faz esquecer. [...] Estou cansado. Há muitos anos que eu me sinto cansado. Custa-me suportar o peso do meu próprio corpo... [...] Sinto a cada instante o meu corpo como se ele fosse de chumbo, ou como se eu carregasse um outro homem nas costas. Ainda não me habituei comigo mesmo. Não sei se eu sou eu. Mas basta beber um pouco, o fardo desaparece e eu me reconheço, eu me torno eu mesmo." (IONESCO, E. (1959). O rinoceronte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 28).
E mais adiante, ao final do primeiro ato:
"Bérenger: (Só.) Eu não devia, não devia ter-me irritado! [...] Estou deprimido demais para ir visitar o museu. Uma outra vez cultivarei meu espírito. (Pega no conhaque e bebe.)" (Idem, p. 49).
Jean, por sua vez, é frio, odiento e não gosta de contradições:
"Jean: Os mortos não existem, esta é que é a verdade!... Ah, ah... (Gargalhadas.) E eles também lhe pesam? Como é que podem pesar coisas que não existem?" (Idem, p. 30).
E Bérenger referindo-se a Jean:
"Ele não suporta a contradição. A menor objeção torna-o furioso. [...] A raiva é o seu único defeito." (Idem, p. 44).
Entre o sofrimento de Bérenger e o de Jean fica patente que o primeiro faz do alcoolismo o modo de anestesiar o peso de sua divisão e angústia enquanto o segundo evita a angústia cindindo e odiando. As últimas palavras de Jean são para Bérenger: "Eu o esmagarei! Eu o esmagarei!" (Idem, p. 84).
Quanto a Botard, o autor põe na boca de Bérenger o seguinte diagnóstico:
"Afinal, pensando bem, a cabeçada de Botard não me surpreende. A segurança dele era apenas aparente. Isso não impede, é claro, que ele seja ou tenha sido um bom sujeito. Os bons sujeitos dão bons rinocerontes. E é porque agem de boa-fé que, infelizmente, eles podem ser enganados!" (Idem, p. 106).
Enquanto a transformação/adesão de Jean se deu pela via do ódio, a de Botard parece ter se dado em decorrência de sua suposta intransigência ignorante.
Já em Dudard encontramos o fiel seguidor:
"Dudard: Tenho os meus escrúpulos! O dever me chama para junto dos meus chefes e companheiros, para o que der e vier.
Bérenger: Você não é casado com eles.
Dudard: Renunciei ao casamento. Prefiro a grande família universal.
Daisy: (Preguiçosamente.) Nós vamos lamentar bastante, Dudard, mas não podemos fazer nada.
Dudard: O meu dever é não os abandonar, e eu cumpro o meu dever." (Idem, p. 111).
Ionesco apresenta diferentes tipos de adesões à rinocerite. Cada um de nós conhecemos rinocerontes que já foram Jean, Botard ou Dudard. E cada um de nós sabemos como é difícil lidar com os pesos da divisão sem deixar que nos animalizem. Não podemos menosprezar os medos de Bérenger de encontrar em si os indícios da transformação. Os cornos começam a crescer quando nos julgamos superiores e intocáveis pela rinocerite. Não é incomum encontrarmos pessoas que se identificam como marxistas ou esquerdistas tratando a rinocerite como gripezinha.
Acrescento algumas passagens da peça que, lidas hoje, perdem tudo o que poderiam ter de absurdo.
"Dudard: Está escrito e bem-escrito. Veja aqui, na sessão de gatos esmagados! Chefe, faça o favor de ler a notícia.
Senhor Papillon: 'Ontem, domingo, nesta cidade, na praça da igreja, à hora do aperitivo, um gato foi esmagado por um paquiderme.'" (Idem, p. 52).
Cotidianamente encontramos, em nossos jornais, a notícia de paquidermes, às vezes fardados, esmagando gates, pretes e pardes, geralmente.
A sessão de gatos esmagados, o necropoliticiário, bem longe do obituário, em nossa sociedade patriarcal racista, podemos encontrar muitas vezes entre as informações do trânsito e o caderno de esportes.
No noticiário de ontem tivemos, por exemplo: "Jovens mortos após abordagem de PMs no RJ são enterrados; 'Não podem andar de moto só porque são pretos?', diz mãe" (https://www.google.com.br/amp/s/g1.globo.com/google/amp/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/14/jovens-mortos-apos-blitz-policial-no-rj-sao-enterrados-nao-podem-andar-de-moto-so-porque-sao-pretos-diz-mae.ghtml); e, no de hoje: "Policiais mataram ao menos 2,2 mil crianças e adolescentes no País entre 2017 e 2019" (https://www.brasil247.com/geral/policiais-mataram-ao-menos-2-2-mil-criancas-e-adolescentes-no-pais-entre-2017-e-2019-k1pjl9v0).
"Bérenger: A dor de cabeça começou durante o sono, você esqueceu que sonhou, ou melhor, você se lembra disso inconscientemente!
Jean: Eu, inconscientemente? Sou dono dos meus pensamentos, não me deixo levar por eles. Eu vou em frente, sempre em frente!" (p. 76).
Pessoas sem furos são mais vulneráveis à rinocerite.
"Jean: (Sem ouvir Bérenger.) Para ser franco, não detesto os homens, eles me são indiferentes, ou então me dão asco... mas, que não se metam no meu caminho, porque eu os esmagarei." (p. 79).
Em geral, muito apego à própria imagem vem acompanhada de ódio ao diferente. Pessoas sem furos costumam ser esmagadoras de qualquer oposição.
"Bérenger: Mesmo assim, temos uma moral ao nosso modo, que eu acho incompatível com a desses animais.
Jean: Moral! Lá vem a moral! Estou farto de moral! É linda a moral! É preciso ir além da moral!
Bérenger: E o que você põe no lugar dela?
Jean: A natureza!
Bérenger: A natureza?
Jean: A natureza tem as suas leis. A moral é antinatural.
Bérenger: Se estou compreendendo bem, você quer trocar a lei moral pela lei da selva.
Jean: E eu viverei lá, viverei lá. Bérenger: Fácil de dizer, mas, no fundo, ninguém...
Jean: (Interrompendo, indo e vindo.) É preciso reconstituir a base da nossa vida. Precisamos voltar à integridade primitiva.
Bérenger: Não concordo absolutamente com a sua opinião.
Jean: (Soprando com violência.) Quero respirar.
Bérenger: Reflita um pouco. Você sabe muito bem que nós temos uma filosofia que esses animais não têm. Um sistema de valores insubstituível! São séculos de civilização!
Jean: (Sempre no banheiro.) Derrubemos tudo isso! Assim ficaremos melhor!" (p. 82)
A revolução rinoceronte transita entre o neopaganismo e o darwinismo social. A lei do mais forte e a eugenia, como decorrências da regressão da dimensão moral a traços do corpo reificado, e a razão instrumental, como redução do pensamento à tecnologia dominadora e eticamente esvaziada, correspondem, entre outras características, à terra arrasada, à derrubada da civilização proposta pelos rinocerontes.
"Bérenger: Se isso tivesse acontecido fora daqui, num outro país, e se eu tivesse tomado conhecimento pelos jornais, poderia discutir calmamente o assunto, estudá-lo sobre todos os seus aspectos retirar objetivamente todas as conclusões. Organizaríamos debates acadêmicos, faríamos vir sábios, escritores, juristas, mulheres sábias [sic], artistas. E também gente do povo, para tornar o assunto mais interessante, apaixonante, instrutivo. Mas quando você mesmo foi tomado de perto pelos acontecimentos, quando você, de repente, foi posto diante da realidade brutal dos fatos, não pode deixar de se sentir atingido diretamente. A surpresa é grande demais para mantermos o sangue-frio. Por mim, estou surpreso, surpreso, surpreso! Não me conformo." (p. 95).
É um erro crasso dos intelectuais acharem que estão livres da ameaça da rinocerite ou que ela não é grave. ("Dudard: Deixe as autoridades reagirem por conta própria! No fundo, eu me pergunto se moralmente você tem o direito de se ocupar do assunto. De resto, continuo pensando que isso não é grave. Acho absurdo ficar desvairado por causa de algumas pessoas que quiseram mudar de aspecto. Não estavam contentes com o que tinham, ora! Estão no seu direito. São livres..." (p. 96).)
Não são poucos os que não conseguem ver os paquidermes já presentes no seu cotidiano. ("Daisy: Por outro lado, o que complica mais as coisas é que cada um tem, entre os rinocerontes, um parente, um amigo." (p. 108).)
A rinocerite, geralmente tema de discussão como algo do passado, invenção comunista ou desvio da história distraída, está no estômago do capitalismo e, por causa disso, circula como potencialidade em cada um de nós, à espera do mínimo golpe de vento para passar de uma gripezinha a uma epidemia. A pandemia de rinocerite é o destino do capitalismo.
"Daisy: Sinto vergonha disso que você chama de amor, esse sentimento mórbido, essa fraqueza do homem, e da mulher também. Isso não pode ser comparado com o ardor, com a energia extraordinária que irradiam todos esses seres que nos rodeiam." (p. 121).
O contágio das massas é a apoteose da rinocerite. Entre os seres dissolvidos na massa gozosa não há lugar para o laço amoroso. Também os eus trancados na armadura narcísica não podem ir ao campo do Outro, recusam a perda de algo de si necessária ao amor.
A rinocerite rompe amizades e laços familiares. O amor não é vacina contra a rinocerite.
Ionesco coloca o amor como o último bastião derrotado pela rinocerite.
(Pesa sobre a esquerda, em relação ao fascismo, o equivalente do negacionismo da ultra-direita em relação à covid-19: contra a escalada fascista a esquerda conta com a compreensão, a conversa, o amor, conta com seu "passado atlético", crê que tem anticorpos, não usa máscaras e não se apressa como deveria na invenção e aplicação de vacinas.)
CCLVIII
Não é incomum ouvirmos psicanalistas lacanianos dizendo que a fórmula da fantasia, por mais que enquadre a relação pulsional de um sujeito com um objeto, tem como problema não permitir a diferenciação sexual. O sujeito não tem gênero.
Diante das críticas que a psicanálise tem recebido por causa de sua heteronormatividade patriarcal, cabe pensarmos justamente o contrário: as relações pulsionais do sujeito com o objeto permitem uma concepção de sujeito livre de enquadramentos identitários. Isto não quer dizer que não haja diferenciação sexual ou que ele não possa se diferenciar, mas sim, talvez, que a diferenciação em si mereça um novo estatuto. Acompanho, quanto a isso, o que dizem Gianesi e Mountian:
"No início dos anos 60, Lacan concebeu sua invenção teórico-clínica, o objeto a e o articulou dentre outros, à pulsão. Mais tarde, ao avançar sobre sua teorização, pensando o objeto a enquanto motor pulsional da sexualidade, afirmou-o (a)sexual (Lacan, aula de 11 de abril de 1978, inédito). E ele o seria justamente por ser o a sexuado (da pulsão, do desejo, do erotismo inconsciente) e, ao mesmo tempo, seria assexual, a saber, insuficiente para dizer a diferença sexual - diferenças entre homens e mulheres. No mesmo seminário, Momento de Concluir, Lacan (1978) teria dito que o sexo é um dizer e ressaltado a importância do conjunto vazio no (a)sexo, na não relação sexual. No não complemento entre os sexos - poderíamos notar, sejam elxs quem
forem. Sublinhando novamente a responsabilidade sexual do psicanalista e, agora, no que tange a pulsão como um eco no corpo (de que há um dizer), como pensar, clinicamente, as singularidades corporais e de gozo que nos dizem desses ecos?!... A pulsão, enquanto eco, traz voz ao sujeito do desejo e à enunciação do erotismo inconsciente. Quiçá essa notação - (a)sexual - possa escrever a impossibilidade de dizer a diferença sexual quanto ao desejo, à libido (e ao gozo) e ao enigma." (GIANESI, A.P.L. e MOUNTIAN, I. (2020). Psicanálise e política: debates feministas para a psicanálise. Inédito, p. 17).
É extremamente valiosa a conclusão das autoras: que o (a)sexual possa escrever a impossibilidade de dizer a diferença sexual. Muitos desdobramentos podem ser feitos a partir daí.
E o primeiro que me ocorre diz respeito à comparação entre o (a)sexual e a fantasia no que tange à não-diferenciação sexual. De outro modo que a fantasia - que não difere sexuação, mas sustenta a totalidade neurótica da completude -, o (a)sexual dá lugar para o real do encontro com a sexualidade, ressaltando a importância do conjunto vazio no (a)sexo (na não complementariedade sexual). (Noutros termos, do lado todo das fórmulas da sexuação há lugar para a fantasia, mas não para a sexuação propriamente dita.)
Além disso - um segundo desdobramento - se considerarmos que a concepção de estilo, aplicada às múltiplas possibilidades de sexuação, muito embora preserve a singularidade do sujeito se arrisca a cair na imaginarização da performance sexual, a noção de (a)sexual, como produto da história das marcas corporais inconscientes de erotização do ser falante, mantém o enigma da diferença e dissolve o viés consumista que poderia pesar sobre a concepção de "estilo".
O que temos, no fim das contas, é que a imposição encaixotante dos sujeitos nos lados homem e mulher das fórmulas da sexuação transforma falsamente em necessário algo do impossível dizer da diferença sexual. O efeito disso, porém, não pode ser outro senão a perda do que há de um a um neste dizer, isto é: se o sexo é um dizer contingente, por que não admiti-lo não-todo quando acontece? A diferença sexual, que não se reduz a homem e mulher (herança machista-fálico-anatômica), se diz uma a uma, e isso está longe de querer dizer que todes são mulheres ou que ninguém é homem. Antes, essa formulação interroga a necessidade do lado todo das fórmulas da sexuação para além do apego religioso à neurose de Freud e da manutenção ideológica do homem como referência dominadora.
As fórmulas da sexuação, em última instância, indicam que só pode haver sexuação de fato fora das totalidades neuróticas e dos totalitarismos patriarcais, isto é, quando, contingencialmente, algo se escreve do lado não todo.
CCLVII
O capitalismo como religião, na hipótese benjaminiana, tem a culpa como categoria suprema e universalizada.
"A categoria suprema da história do mundo, que garante a univocidade dos acontecimentos, é a culpa. [...] Um estado do mundo, no entanto, é apenas, e sempre, culpa (na sua relação com um outro, que virá depois dele). Mas a inversa pede reflexão: se ele também é um estado de culpa em relação a outro que veio antes (por analogia com qualquer estado mecânico, que é causa e efeito)." (BENJAMIN, W. (1918). A ética (fragmentos de filosofia da História e política). In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 28).
E ainda:
"O capitalismo é provavelmente o primeiro caso de um culto que não redime, mas deixa um sentimento de culpa. Nesse aspecto, esse sistema religioso acompanha a queda de um movimento colossal. Uma imensa consciência de culpa, incapaz de redenção, apodera-se desse culto, e, nele, a culpa, em vez de ser redimida, é universalizada, gravada na consciência, até que o próprio Deus é apanhado nessa rede de culpa, para que, finalmente, ele próprio se interesse pela sua expiação." (BENJAMIN, W. (1921). O capitalismo como religião. (fragmentos). In: Idem, p. 35-6).
A culpa gravada na consciência de quem vive no capitalismo nasce da experiência de sem saída que ele apresenta: "Situações sem saída (no plano mental, não material), na pobreza, vagabundos, pedintes, monges. Uma situação assim sem saída é uma situação que induz a culpa." (p. 38).
Se o capitalismo se desenvolveu no Ocidente parasitando o cristianismo e se tornou uma religião de culto, mas sem dogmas, é preciso considerar se o cinismo e a feliz apatia não aparecem historicamente como sinais de uma espécie de ascese apoteótica, uma escatologia religiosa que se colocaria como solução substitutiva à transformação social - sobre a qual pairam, por sua vez, vestígios esperançosos da salvação messiânica. Uma pista desta ascese Benjamin localiza em Nietzsche:
"O tipo de pensamento religioso capitalista encontra a sua expressão grandiosa na filosofia de Nietzsche. A ideia do sobre-homem desloca o 'salto' apocalíptico, não para o arrependimento, a expiação, a purificação ou a penitência, mas para uma potenciação aparentemente estável, mas no último estágio explosiva e descontínua. [...] O sobre-homem é aquele que chegou sem voltar atrás, sem arrependimento, o homem histórico que cresceu através do céu." (Idem, p. 36-7).
Se o capitalismo não encontrar sua superação via transformação social - isto é, se não realizar em ato algo que faça valer a vergonha e a culpa que ele grava em cada um de nós -,
encontrar-se-á com a realização de seu destino pelas mãos dos super-homens-acima-de-toda-a-culpa.
O exemplar capitalista sem culpas e arrependimentos, capaz de tomar decisões que impliquem na morte de milhões de pessoas em proveito de seus negócios, é figura de grande mérito beatífico nesta religião. O pequeno-homem de Adorno, nosso complexo de Ustra, é candidato forte à hagiololia da teopragmatocracia capitalista (sim, porque o capitalismo, como religião, não busca valores espirituais, superiores ou morais, mas simplesmente a sustentação cega e pragmática do culto, tendo o dinheiro, equivalente universal, como o corpo transubstanciado de deus).
Ao pensarmos o capitalismo como religião, o cínico deixa de ser um mero adaptado: é alguém de inabalável fé no poder do sucesso. É dela que extrai a devoção ao princípio de que os fins justificam os meios e dele, por sua vez, se serve para se colocar acima e liberto de quaisquer tentações que a culpa demoníaca possa lhe trazer no caminho de sua vontade dominadora. (Aliás, a religião do capitalismo pode não ter dogmas, mas sustenta na razão instrumental seu fundamento de fé.)
O protestantismo erigiu o trabalho como resistência às tentações da carne, semeando as ervas do capitalismo em seu solo fértil. Uma vez que as irrecalcáveis mazelas históricas dessa hera daninha universalizaram a culpa, a glorificação do cinismo - forma única da bem-aventurança no capitalismo -, tornou-se o necessário esterco sagrado desse chão.
Da religião o capitalismo parasitou também a iconografia sagrada. As imagens sacras foram substituídas pelos posts de Instagram e Facebook. Acompanham a glorificação dos cínicos os adoradores de imagens, como regressão à dimensão pragmática do paganismo primitivo. Afinal o capitalismo torna-se religião porque lhe é útil à sobrevivência e não porque esteja preocupado com qualquer transcendência espiritual.
"Comparação entre as imagens dos santos em várias religiões e as notas de banco de vários Estados. O espírito que fala a partir dos ornamentos das notas de banco." (Idem, p. 37).
O bezerro de ouro do neopaganismo capitalista está encarnado hoje na plástico-mumificação dos corpos que a mais avançada tecnologia permite aos que se auto-iconificam em seus altares narcísicos. A um só tempo, por esta oferenda do corpo próprio à transmutação alquímico-mercantil, entregam-se em sacrifício expiatório e tamponam os furos por onde os capetas da culpa poderiam roubar-lhes a alma.
Diante do quadro hecatômbico pintado pelo exegeta Walter Benjamin, a superação do capitalismo, sua laicização, é alternativa necessária a ser mantida à sua expiação religiosa:
"Da essência desse movimento religioso que é o capitalismo faz parte a sua capacidade de ir até o fim, até a culpabilização final do próprio Deus, alcançando o estado de desespero no mundo a que ainda se aspira. É este o lado historicamente inaudito do capitalismo, o fato de a religião já não ser uma reforma do ser, mas a sua aniquilação." (p. 36).
A necropolítica total, suicidária, pode levar irônica e tragicamente à dissolução do Estado, como destino da história, à qual há tempos vislumbram os anarquistas. Não à toa o fim do mundo nos parece hoje mais provável que a transformação social.
A devastação dominadora da Terra, a ponto de destruir a espécie humana e outras tantas formas de vida que nela habitam, é a realização titânica do ódio em que se consubstancia, como negação da culpa, a vingança divina do capital.
(E a psicanálise, nesta teodiceia, herege quando faz falar as culpas, torna-se, no entanto, crente, quando dança, macabramente, em torno do falo.)
CCLVI
Uma consideração a partir de uma passagem do primeiro ato de O rinoceronte, do Ionesco.
No cenário, a rua e as fachadas de uma mercearia e de um café. Personagens em seus afazeres habituais. Subitamente passa um rinoceronte numa dada direção. Após o susto e a perplexidade, todos voltam mais ou menos (e perturbadoramente) à normalidade inicial. Algum tempo depois, um rinoceronte passa no sentido contrário, desta vez esmagando o gato da dona de casa, que fica inconsolável. No meio dos comentários de surpresa, perplexidade e consolo Jean afirma não se tratar do mesmo rinoceronte, pois o primeiro tinha dois cornos, sendo um rinoceronte da Ásia, enquanto o segundo tinha um corno só, sendo um rinoceronte da África. Algumas considerações são feitas até que Bérenger discorda de Jean dizendo se tratar do contrário: é o rinoceronte da África que tem dois cornos e o da Ásia, um só.
Segue uma acalorada discussão que se interrompe com a participação do lógico que retoma a questão do tratar-se ou não do mesmo rinoceronte e argumenta que Bérenger pode ter visto duas vezes o mesmo rinoceronte com um corno só, como pode ter visto duas vezes um único rinoceronte com dois cornos. Pode ainda ter visto dois rinocerontes com um corno só, bem como um primeiro com dois cornos e um segundo, outro, bicorne também. Mas, se tivesse visto um primeiro rinoceronte de dois cornos e na segunda vez um rinoceronte de um corno só, isso nada provaria, posto que o primeiro rinoceronte poderia ter perdido um dos cornos, sendo o mesmo anterior. E, ainda, se o primeiro fosse unicorne como o segundo, ainda cabe o argumento de serem dois rinocerontes que perderam um dos cornos cada um. Porém, se fosse possível provar ter visto um primeiro rinoceronte com um só corno, africano ou asiático, e um segundo com dois cornos, asiático ou africano,
"... então, nesta altura, poderíamos concluir que há dois rinocerontes diferentes, pois é pouco provável que um segundo corno possa crescer em poucos minutos, de forma visível, no focinho de um rinoceronte..." (IONESCO, E. O rinoceronte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 47-8).
Pois é... os gatos sendo esmagados e a esquerda preocupada com o número de cornos.
(O mesmo vale, atualmente, para os psicanalistas que, ocupados com as peripécias lógicas do ter ou não ter - isto é, se um rinoceronte entra no lado asiático ou no lado africano - em seus argumentos para salvar um suposto Lacan feminista e não binário, não podem ouvir o drama cotidiano des esmagades.)
CCLV
Ao discutir comparativamente as dimensões redentoras do final de de dois poemas-monumento - a Comédia de Dante e o Fausto de Goethe - com as intenções, temores e frustrações políticas de seus autores - ambos considerados conservadores para suas efervescentes épocas -, Haroldo de Campos busca extrair um "signo ideológico" com o qual, ao final de seu artigo vertiginoso, nos põe a pensar sobre as diferentes forças que nos atravessam na forma do messianismo político.
Suas conclusões sobre o último ato do Fausto II, "uma disjunção frisante, que se traduz pela carnavalização do Inferno e pela carnalização do Céu" (p. 175), demonstram haver uma dialetização da cisão medieval "bem versus mal" por meio da ultra-ironização de seus elementos arquetipizados; uma "bufoneria transcedental", como nomeia Campos ao citar Friedrich Schlegel.
Interroguemos com Campos o sentido que poderia ter esta intenção bufã para a experiência de um Goethe já avançado eu seus passeios por este mundo:
"Ter inscrito, no absolutismo sideral do 'céu' teológico, o riso discordante das esferas (no momento seguinte àquele em que anunciara sua confortadora utopia sócio-filantrópica, pela boca do potentado moribundo, Fausto), não é pequena empresa, nem escasso contributo a uma positividade mais funda, de parte do poeta octogenário, que tinha como perspectiva biológica, de proximidade imediata, a própria morte. Se o Fausto final não nos leva à linearização épica, desambiguizada, do herói positivo, como seria do gosto de certa recepção apologética, pelo menos (ou, muito mais do que isto, simplesmente) este 'canto paralelo' das esferas, este 'contracanto' nele insinuado, nos aponta para a necessidade da crítica como órganon filosófico perene." CAMPOS, H. Bufoneria transcendental: O Riso das Estrela. In: Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 177).
Ao não "aderir" ao modelo alegórico tradicional, pelo qual uma realização suprema e divinal promove os expurgos necessários do mal e a ascese final - numa Aufhebung pela qual o bem se revela como expansão na qual deixa de ser mera antítese do mal para fazer deste, passo necessário à síntese expansionista (ao fim e ao cabo, não há apoteose sem algo do imperialismo: haja vista Dante ter colocado na Rosa Mística, já em pleno Empíreo, no canto XXX do Paraíso, o trono à espera do Henrique VII, seu frustrado monarca) -, Goethe "liberta" sua dialética entre profano e sagrado de uma "síntese" depuradora das ruínas infernais da materialidade histórica. Campos vê nisso, ao que parece, o trabalho artístico-filosófico de extração crítica das ruínas escondidas no belo alegórico. Lembremos a respeito o que propôs Benjamin:
"Diremos mesmo que, sem uma apreensão, pelo menos intuitiva, da vida dos pormenores por meio da estrutura, toda a inclinação para o belo é mero devaneio. Estrutura e pormenor têm sempre, em última análise, uma carga histórica. O objeto da crítica filosófica é o de demonstrar que a função da forma artística é a de transformar em conteúdos de verdade filosóficos os conteúdos materiais históricos presentes em toda obra significativa. Esta transformação do conteúdo material em conteúdo de verdade faz do declínio da força de atração original da obra, que enfraquece década após década, a base de um renascimento no qual toda a beleza desaparece e a obra se firma como ruína. Na estrutura alegórica do drama barroco sempre se destacaram, como uma paisagem de ruínas, essas formas da obra de arte redimida." (BENJAMIN, W. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 194).
Podemos dizer que a ascensão paradisíaca de Fausto redime a de Dante ao deixar falar, de modo
chocarreiro, a materialidade profana escondida nas imagens sagradas - algo cindido pela ideologia medieval do "bem versus mal", mas que o sujeito burguês traz em si, como alimento de sua divisão - sujeito que na cosmologia dantesca só teria lugar no Inferno. (Aliás, contrário ao desenvolvimento de sua Florença como cidade-estado e à ascensão da proto-burguesia é que Dante se lança à magistral construção poética de lugares onde punir os transformadores, purgar os arrependidos e beatificar os restauradores da ordem imperial. A purificação de Dante, do inferno ao Empíreo, equivale à sua libertação dos riscos de seguir no caminho da divisão burguesa.)
(É interessante salientar que no Fausto - excetuando-se Gretchen, a quem fica relegado o lugar dos dominados -, Deus, Mefistófeles e o próprio Fausto, são exímios manipuladores.)
Mas a questão levantada por Haroldo de Campos vai além das relações cisão-medieval versus divisão-moderna (à qual, de minha parte, lanço a questão do que haveria de regressivo no sujeito da idade contemporânea, no qual entendo haver a tendência da passagem hegemônica da divisão à cisão). Campos busca, no que chamou de "signo ideológico", como um fato de superestrutura, aquilo que nos põe como questão última o lugar histórico da utopia:
"Estamos numa época que já há quem chame de 'pós-moderna', mas que, inegavelmente, poderá ser melhor definida como 'pós-utópica'. O deslugar da u-topia, à direita e à esquerda, 'regressiva' ou 'progressiva', quando se tentou ubicar - 'encarnar na história' (como diria Octávio Paz) -, culminou invariavelmente por redundar numa tópica do poder. A essa politópica do poder corresponde, em cada caso, sempre reiterada, uma tropologia do discurso monológico, do credo monolítico: da palavra única e da última palavra. [...] Do ethos crítico, de que hoje, mais do que nunca, estamos todos urgentemente carenciados (à exceção autopresumida daqueles pietistas que, com muita unção e verberação, e rala criticidade, aguardam, consolados pelo 'espirit de corps' dogmático, o advento miraculoso do domingo milenário dos séculos...). Por isto também o diá-Logos bakhtiniano foi aqui importante, como instrumento indispensável para a hermenêutica fáustica. Já que Bakhtin, como sintetiza com rara precisão o eslavista Vittorio Strada, 'à utopia da verdade monológica, opõe a verdade dialógica da utopia, onde o utópico perde a sua pretensão total e totalitária e se manifesta na sua ambivalência e ambiguidade, tornando-se parte da comunicação inter-subjetiva na busca de um mundo diverso e na crítica do mundo atual'." (CAMPOS, H. Idem, p. 176-7).
Com este final, Haroldo de Campos nos convoca à revisão dos messianismos políticos que nos atravessam. A associação entre marxismo e teologia que encontramos nas teses benjaminianas sobre o conceito de história parecem estar presentes também nesta inspiração haroldiana resumida na concepção não-toda de utopia de Bakhtin. A rememoração e a redenção, heranças messiânicas do marxismo, só fazem sentido como ferramentas críticas ("o órganon filosófico perene") e não como aspiração de utopias totalizantes.
Forçar nos documentos de cultura a rememoração de suas entranhas é tentar fazê-lo falar de sua barbárie e, por esta via, fazê-lo pagar suas dívidas. Assim, se "não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie" (BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 17), por que não pensarmos num documento remido quando, pelo trabalho crítico, fazemo-lo "confessar"? Ao invés da utopia que aponta no futuro a transcendência como desprendimento da materialidade profana, cabe-nos a utopia que há na aposta de que fazer falar nas vísceras o passado é buscar, na suspensão da afirmação cega do existente, a transformação desesperada a cada momento.
CCLIV
"Em nossa consideração, não se trata de classificação, e sim de possibilidade de expressão. As pessoas têm forte tendência a identificações estilísticas, mas a possibilidade de expressão estilística é aberta. O mais frequente sempre será que uma pessoa, em seu desenvolvimento de vida, crie um estilo. Isto porque a sobredeterminação é grande e, mesmo que a HiperDeterminação funcione frequentemente, a pessoa acaba artisticamente inventando seu modo de expressão. Em vez de perguntar a alguém qual é seu gênero, a pergunta é: 'Qual é seu estilo?' Ele retrucará: 'Não está vendo? Olhe!'" (MACHADO DIAS, M. Questão de gênero. 2015, p. 12. Disponível em: https://www.novamente.org.br/arquivos/md15-16-generointernet-pdf_1446222207.pdf)
A saída que MD Magno propõe à psicanálise, como forma de ir além da heteronormatividade impregnada nas fórmulas da sexuação, parece interessante. As várias possibilidades de identidade de gênero seriam melhor ouvidas se pensadas como uma construção de estilo e não como uma inscrição binária num lado dito Homem ou num lado dito Mulher.
O complexo conceito butleriano de performatividade talvez permita uma aproximação da ideia acima colocada de "modo de expressão".
O jeito como cada um é marcado no corpo na relação entre predisposição e história e a maneira como cada um escreve suas preferências pulsionais e significâncias objetais no campo do Outro são por demais constelares para serem reduzidos à orientação única do ter ou não ter, ser ou não ser o falo.
No que há de arte e de estranho no encontro sexual é melhor que cada um entre com o seu estilo do que com a "competência" exigida pelas normas fálicas e objetais. Muito do que encontramos na clínica são sofrimentos decorrentes do não ajustamento aos costumes de determinada época, mas estes costumes ainda estão marcados pela longa história patriarcal de nossa sociedade. Também nas relações sexuais cotidianas os corpos são muitas vezes postos à serviço do ter ou não ter, ser ou não ser. Chama a atenção que a psicanálise queira tratar os sujeitos ouvindo-os com os mesmos limites que às vezes os faz sofrer.
É curioso que a proposta lacaniana do ir além do falo tenha terminado no binarismo dos lados Homem, Mulher, ordenados pela razão fálica. Quando é que a própria psicanálise vai poder deixar o lado todo das fórmulas da sexuação?
DEZEMBRO 2020
CCLIII
Benjamin e Adorno, em diferentes passagens, insistem no quanto a complexidade técnica do mundo levou o ser humano à pobreza da experiência.
"Pobreza de experiência: a expressão não significa que as pessoas sintam a nostalgia de uma nova experiência. Não, o que elas anseiam é libertar-se das experiências, anseiam por um mundo em que possam afirmar de forma tão pura e clara a sua pobreza, a exterior e também a interior, que daí nasça alguma coisa que se veja. E também não são sempre ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes é o contrário que se verifica: tiveram de 'engolir' tudo isso, a 'cultura' e 'o Homem', e ficaram saturadas e cansadas. [...] A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto, fundiram-se aqui completamente. E diante dos olhos das pessoas cansadas das infinitas complicações da vida quotidiana, e para as quais a finalidade da vida se descortina apenas como ponto de fuga longínquo numa infindável perspectiva de meios, apresenta-se como redentora uma existência a cada momento autossuficiente da forma mais simples e mais confortável, um modo de vida em que um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha e o fruto na árvore arredonda tão depressa quanto um balão inflável." (BENJAMIN, W. (1933). Experiência e pobreza. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 89-90).
O complexo que Adorno nomeou de "pequeno homem" encontra, na realidade deformada, a existência redentora da vida simples, autossuficiente e confortável à qual se resume sua finalidade do estar no mundo. Não à toa é no cansaço cínico e conformista da classe média que encontramos sua máxima expressão.
A cultura não é mais uma cidade pela qual possamos flanar e aos poucos conhecer de tanto nela se perder; tornou-se bosque perigoso, sem guia, daqueles que ninguém entra e ao qual se quer atear fogo para fazer terra arrasada.
A redução dos restos deste incêndio à mercadoria amplifica a ausência de uma experiência que nos possa ligar à cultura. (Idem, p. 86). Neste sentido as obras de Frans Krajcberg representam mais do que a crítica à história da destruição da natureza tomada como patrimônio da humanidade; inversamente apontam também a redução mimética da cultura à natureza pela naturalização que atingiu sua permanente destruição.
Voltemos a Benjamin:
"Quando entramos na sala de uma casa burguesa dos anos oitenta, apesar de todo o 'conforto' que nela se possa sentir, a impressão mais forte é: 'Este não é lugar para ti!'. E não é lugar para ti porque nele não existe um único cantinho em que o seu habitantes não tenham já deixado a sua marca: os bibelots nas prateleiras, os naperons de crochê nos sofás, os papéis transparentes nas janelas, o quebra-fogo diante da lareira. Há uma linha de Brecht que nos ajuda, e muito: 'Apaga os vestígios!', diz o refrão do primeiro poema do Manual para os Habitantes das Cidades. Aqui, na salas da burguesia, foi o comportamento oposto que se tornou hábito. Por seu lado, o intérieur obriga o seu habitante a adquirir o máximo possível de rotinas, mais ajustadas ao intérieur em que vive do que a ele próprio. [...] Foi o que fizeram Sheerbart com o seu vidro e a Bauhaus com o seu aço: criaram espaços nos quais é difícil deixar rastro." (Idem, p. 89).
O apagamento dos rastros, fruto da simplificação empobrecedora do mundo, atinge agora em cheio, mais do que nunca, o corpo: a mesmificação mumificante dos corpos responde mais à engenharia do que à estética ou à saúde. Das mensurações de sobrancelhas definitivas ao preenchimento calculado de bochechas, da precisão luminosa das lentes de contato dental ao patrulhamento obsessivo da barriga trincada o que temos é da mesma ordem do vidro e do aço na arquitetura: o apagamento de vestígios, o libertar-se das singularidades e das diferenças, a pequenominização planificada na qual o trabalho de interrogação do mundo e da vida não precise ir além daquilo que se oferece nas séries de TVs e lives de youtuberes.
Aliás, nada mais condizente com o consentimento com a pobreza de experiências do que a troca do livro pelo canal do influencer.
Tampouco escrever se faz hoje necessário: basta apertar o microfone e o áudio, no lugar da carta, economiza meu tempo; basta postar uma foto e mil palavras morrerão como desnecessárias; basta meia palavra e a barra de sugestões do teclado do celular trabalha por mim (aliás, posso minimizar ainda mais meu tempo usando somente consoantes para metade do meu vocabulário básico de rede social - é notório como a tendência ao desprezo do tempo contemplativo alcança a eliminação das vogais, justamente as letras cujo som permite a sustentação do tempo); basta eu perguntar à Siri e o oráculo que tudo vê e ouve me assegura as referências do mundo segundo minhas preferências registradas e meus hábitos de navegação. A telescreen do Orwell de 1984 - para uns a realização última do panóptico de Bentham, para outros o ponto final da emancipação tecnológica em relação à opacidade do desejo - aí está para tentar fazer da antiga experiência um monturo, se comparada à velocidade e eficiência dos algoritmos da inteligência artificial.
(Mas basta um haicai do Bashô para mostrar os estreitos limites dos gigabytes do Fugaku.)
CCLII
"12 de julho - Com os neuróticos, é como se estivéssemos numa paisagem pré-histórica - no Jurássico, por exemplo. Os grandes sáurios ainda andam por ali; as cavalinhas crescem tanto quanto as palmeiras (?).
20 de julho - A hipótese de existirem vestígios herdados no id altera, por assim dizer, nossos pontos de vista sobre ele." (FREUD, S. (1938). Achados, ideias, problemas. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1988, vol. XXIII, p. 317).
Freud não deixa claro, nestas que são duas entre suas últimas anotações, o alcance do que quis dizer com "herdados". Mas parece ser o reconhecimento de que o isso talvez não seja uma instância psíquica livre da transmissão de marcas das gerações anteriores.
Os sáurios extintos, metáfora dos nossos antepassados derrotados, passeiam em nossas neuroses. A luta deles é pré-história das mesmas: antes que possamos encontrar os documentos conscientemente "escritos" de/por um sujeito, seu corpo já traz os significantes dos vestígios da história congelada de seus antepassados.
São marcantes os momentos em que, numa análise, algo do desejo do sujeito aparece em uma relação de causa com o sofrimento de um antepassado. Não como um sofrimento que lhe pesa - ou seja, o falso necessário lógico que se lhe apresenta como determinação, como demanda do Outro -, mas como um sofrimento que o cativou, como destino que se constela a posteriori, ao encontrar, ali no passado, algo que não pode mais ser lido como acidental para a trama de suas escolhas, escolhas que realizaram, descongelaram o que havia de inscrito naquele sofrimento.
Se o sintoma se apresenta, em sua repetição, como necessidade cuja contingência fundante está recalcada, aqui refiro-me a outro estatuto: à natureza daquilo que, contingencialmente, por uma constelação, revela um necessário que não se sabia ali, e que penso associar-se à indestrutibilidade do desejo, mas entendido como aquilo que não se limita àquele que fala, senão que o ultrapassa, transmitido de algum modo através de gerações.
A condição que tento circunscrever aqui para o signo de um desejo que uma análise pode/chega a construir remeteu-me à seguinte citação de Deleuze:
"[...] o signo é o que nos faz pensar. O signo é objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar." (DELEUZE, G. In: TOMIMATSU, M.F. Kazuo Wakabayashi: um artista imigrante. São Paulo: Porto de ideias, 2017, p. 26).
Esta dimensão do desejo jamais é acessada quando se toma o desejo abstratamente, retirando-lhe as vísceras da história.
Se o sintoma é mostração da história familiar/grupal engessada, a constelação a que me refiro é o momento em que se vislumbra algo de sua superação, isto é, sua dialética foi recuperada.
Da pedra jurássica que as gerações passavam de costas em costas o sujeito fez, per via di levare, a téssera de libertação do trauma familiar.
CCLI
"A configuração característica a ser encontrada em altos pontuadores, no entanto, parece ser a contradição não resolvida entre, por um lado, uma atitude crítica em relação à religião enquanto objetividade e, por outro, uma atitude positiva em relação a ela por razões puramente subjetivas. É característico da mentalidade preconceituosa como um todo que ela pare de pensar em certas contradições e as deixe como elas estão, o que implica tanto derrotismo intelectual quanto submissão autoritária. Esse mecanismo de abandonar arbitrariamente processos a partir do comando do eu, por assim dizer, é muitas vezes mal interpretado como 'estupidez'." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2020, p. 497).
É interesse pensarmos um pouco mais sobre o mecanismo dos altos pontuadores identificado por Adorno na passagem acima. Sabemos o quanto a contradição está presente na formação de um sintoma. Podemos dizer que a lógica do sintoma analítico é paraconsistente. O fato do preconceituoso parar de pensar nas contradições e as deixar como estão não é sem consequências, posto que o eu se angustiaria. O que muitas vezes é interpretado como estupidez deveria ser interrogado como cisão defensiva. O 'estúpido' é um indivíduo ajustado ao existente mas que, para mantê-lo idealizado e salvar suas crenças, precisa colocar fora de si suas críticas e ataques a ele e tentar, ainda, destruir esta parte da subjetividade não reconhecida como sua. O discurso da estupidez, como o nomeou Mauro Mendes Dias, é, em última instância, o discurso da cisão autoritária. A ignorância e confusão presentes nesse discurso podem ser, em parte, resultado de um apego a uma realidade rasa e falsificada somado a um não querer saber de suas críticas, falhas e dificuldades.
Freud, entre suas últimas anotações, deixou esta, que corrobora a hipótese de Adorno:
"16 de junho - é interessante que, em conexão com experiências primitivas, quando contrastadas com experiências posteriores, todas as variadas reações a elas sobrevivem, naturalmente inclusive as contraditórias. Em vez de uma decisão, que teria sido o desfecho mais tarde. Explicação: fraqueza do poder de síntese, retenção da característica dos processos primários." (FREUD, S. (1938). Achados, ideias, problemas. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1988, vol. XXIII, p. 317).
É esta "fraqueza do poder de síntese" que, entendo, deveríamos buscar correlacionar com as determinações sociais e pensar em alternativas de tratamento. A paralisação da dialética que a dominação do capital tenta impor ao processo histórico alcança também a dimensão subjetiva do indivíduo ajustado ao existente.
Se a cisão é um modo de recusa das contradições existentes, a divisão talvez seja a maneira de experimentá-las: passo necessário a uma síntese possível.
Vejamos como o próprio Adorno, na página seguinte, propõe a cisão como mecanismo defensivo:
"Parece que a personalidade de mente fascista só pode administrar a sua vida ao cindir seu próprio eu em várias agências, algumas das quais se alinham com a doutrina oficial, enquanto outras, herdeiras do antigo supereu, protegem-na do desequilíbrio mental e permitem-lhe manter-se como um indivíduo. Cisões dessa categoria tornam-se manifestas nas associações incontroladas de pessoas sem formação e ingênuas [...]" (Idem, p. 498).
Lembremos do caso relatado por Freud em A divisão do ego no processo de defesa, texto inacabado datado de 1938, em que um menino é ameaçado de castração como forma de inibir sua prática masturbatória e que, após tal ameaça, ressignifica a lembrança que tinha, até então inofensiva, de ter visto o órgão genital feminino de uma menina mais velha que ele. De imediato isso o levou à suspensão da prática masturbatória, mas tão logo inventou o que Freud considerou um substituto do pênis feminino pela fetichização de uma parte do corpo das mulheres (não relatada por Freud), voltou às suas masturbações. Sua construção incluiu um medo de ser engolido pelo pai (agente da castração ameaçada). Medo este que, nas palavras de Freud, "exigiu toda a força de sua masculinidade para ser dominado e supercompensado" (FREUD, S. A divisão do ego no processo de defesa. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1988, vol. XXIII, p. 295). E, por fim, um sintoma leve persistente que se manifestava como "uma suscetibilidade ansiosa contra o fato de qualquer de seus dedinhos do pé ser tocado" (Idem, p. 296).
A observação freudiana é a seguinte:
"Esse comportamento por parte de nosso paciente forçosamente nos impressiona como sendo um afastamento da realidade - procedimento que preferíamos reservar para as psicoses. E ele, de fato, não é muito diferente. Contudo, suspenderemos nosso julgamento, já que, a uma inspeção mais rigorosa, descobriremos uma distinção não pouco importante. O menino não contradisse simplesmente suas percepções, e alucinou um pênis onde nada havia a ser visto; ele não fez mais do que um deslocamento de valor - transferiu a importância do pênis para outra parte do corpo [...]. Esse deslocamento, é verdade, relacionou-se apenas ao corpo feminino; com referência ao seu próprio pênis, nada se modificou.
Essa maneira de lidar com a realidade, que quase merece ser descrita como astuta, foi decisiva quanto ao comportamento prático do menino. Ele continuou sua masturbação como se esta não implicasse perigo para seu pênis [...]." (Idem, p. 295).
É notória a dialética que Freud apresenta entre o eu e o "outro" no que diz respeito a um pedaço de corpo. Sob a ameaça de mutilação o sujeito se angustiou e, num primeiro momento, ressignificou como mutilação a lembrança que tinha do órgão genital feminino, ou seja, fez do outro um espelho de uma falta que já era sua e que se atualizou de modo traumático diante da ameaça (lembremos que toda ameaça é uma violência e um ter que lidar com o gozo do Outro). Num segundo momento, com a invenção do fetiche num pedaço de corpo, tornou tamponável o furo da sua imagem projetada no espelho: furos tampados, se há ou não castração, tornou-se problema do "outro"; logo, cisão (Ichspaltung) resolvida e angústia afastada, muito embora o pai mutilador aparecesse como boca (furo) e o próprio sujeito como pedaço de corpo (afinal, está implícita na própria ameaça que o pai o quer tão intacto quanto ele ao seu pedaço de corpo).
Faço notar que, diferente de Freud, não estou tomando o pênis como falo e a mulher como "a castrada". A fetichização, como efeito do mecanismo da cisão, não é a recusa da castração da mulher, mas a imposição sobre ela da castração que o homem nega em si mesmo. Na sociedade machista, o que faz o conjunto dos homens como supostamente não castrados é a invenção de que castração é "coisa de mulher" (e que o pai seja o primeiro a ser salvo, como de costume).
A divisão binária da psicanálise entre angústia de castração e inveja do pênis deveria ser tomada como prova do mecanismo defensivo de cisão e da invenção do pênis-fetiche por parte da neurose do sujeito Freud. O que a clínica psicanalítica nos ensina é que a castração implica uma dialética pulsional entre um corpo furado e seus pedaços, não havendo nada que se apresente como estrutural no que diz respeito à identidade de gênero ou escolha de objeto sexual. Quando aí se enxerta algo de estrutura na forma do pênis-falo e da mulher-castrada, é da "estrutura" patriarcal-heteronormativa que se trata e não da estrutura do sujeito do inconsciente; isto é, está mais a serviço da dominação e do ajustamento do que do tratamento dos sujeitos.
CCL
"A propaganda, quando dirigida ao potencial antidemocrático do povo, determina em grande medida a escolha dos objetos sociais da agressividade psicológica." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 482).
Assistimos como as mídias conservadoras construíram o antipetismo em 2015 e 2016.
Nesta semana estamos a ver o que estão a construir ao chamar de "vandalismo" os protestos antiracistas decorrentes do assassinato de João Alberto.
CCXLIX
Após o assassinato de João Alberto S. Freitas, negro, por dois seguranças no estacionamento de um mercado de Porto Alegre, em 19/11 às vésperas do Dia da Consciência Negra, manifestações de revolta, ainda tímidas se comparadas com aquelas que sucederam ao assassinato de George Perry Floyd Jr em Minneapolis, em 25 de maio, o presidente da República veio a público com um texto que conclui deste modo: "Aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e promovendo conflitos, atentam não somente contra a nação, mas contra nossa própria história. Quem prega isso, está no lugar errado. Seu lugar é no lixo!"
Cabe aqui destacarmos o seguinte comentário de Josias de Souza:
"É como se Bolsonaro atirasse contra sua própria imagem refletida no espelho. Faltou esclarecer em que aterro deve ser depositado um presidente que governa para um terço do eleitorado desde a posse, industrializa o ódio, divide a nação entre machos e maricas e é incapaz de se solidarizar adequadamente com a família de um brasileiro que foi moído na pancada por dois seguranças nas dependências de um supermercado." (https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2020/11/21/capitao-ignora-racismo-e-ataca-quem-reage-lixo.htm)
Fica mesmo difícil entender, numa primeira leitura, se Bolsonaro está falando dos manifestantes ou dele próprio.
Lembremos do que escreveu Adorno em 1950:
"O objetivo em direção ao qual a mentalidade pseudoconservadora se volta - difusa e semiconscientemente - é estabelecer uma ditadura do grupo economicamente mais forte. Isto deve ser conseguido por meio de um movimento de massas que prometa segurança e privilégios ao chamado 'pequeno homem' (isto é, membros preocupados da classe média e média-baixa que ainda se agarram ao seu status e à sua suposta independência) caso ele se junte às pessoas certas na hora certa. Esse desejo aparece em toda a ideologia pseudoconservadora como o reflexo de um espelho. O governo por representação é acusado de perverter a democracia. [...] Assim, os pseudoconservadores acusam os progressistas exatamente da mesma coisa que eles gostariam de fazer e utilizam essa acusação como um pretexto para 'expulsar os patifes'. Eles clamam por uma defesa da democracia contra seus 'abusos' e, ao atacar os 'abusos', acabam abolindo a democracia por completo. A ideologia pseudoconservadora se harmoniza completamente com a projeção psicológica." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 399-400).
Todos os elementos descritos pelos autores de The Authoritarian Personality podem ser, um a um, encontrados na ascensão de Bolsonaro. A classe média dos pequenos homens, portadores do Complexo de Ustra - conservadores que não querem conservar, mas destruir a democracia em nome de uma ditadura do grupo economicamente mais forte -, o movimento de massas em verde-amarelo-CBF com brados de falta de segurança e perda de privilégios, a pessoa certa na hora certa que surgiu homenageando o torturador da presidente Dilma, o antipetismo e as acusações de abusos contra a democracia, as promessas de expulsão dos patifes comunistas, o desejo declarado de suspensão dos poderes legislativo e judiciário...
Não devemos menosprezar o papel do Complexo de Ustra na ameaça de fascismo no Brasil. Tomemos, para comparar com a atual crise do neoliberalismo, o que Trotsky escreveu sobre a crise da social-democracia na Alemanha de 1930:
"1) Uma crise nacional profunda (econômica e internacional) existe indiscutivelmente. Pela via normal do regime parlamentar burguês, não se vê saída. 2) A crise política da classe dominante e de seu sistema de governo existe indiscutivelmente. Não é uma crise do parlamentarismo, mas uma crise da dominação de classe. 3) Entretanto, a classe revolucionária encontra-se ainda profundamente dividida pelas condições internas. O fortalecimento do partido revolucionário, em detrimento do partido reformista, apenas se inicia e se desenvolve ainda a um ritmo que só de longe corresponde a profundidade da crise. 4) A pequena burguesia já tomou, logo no começo da crise, uma posição que ameaça o sistema atual de dominação capitalista, mas que é, ao mesmo tempo, de hostilidade mortal com a revolução proletária."
(TROTSKY, L. (1930). O giro da Internacional Comunista e a situação Alemã. In: Como esmagar o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018, p. 41).
E em 1931 ele escreveu:
"Por enquanto, a principal força dos fascistas é a numérica. Sim, eles tem muitos votos nas eleições. Mas não é o boletim de voto que decide na luta social. Os principais efetivos do fascismo continuam a ser constituídos pela pequena burguesia e pela nova classe média que se formou: pequenos artesãos e empregados do comércio na cidades, funcionários, empregados técnicos, intelectuais, camponeses arruinados. [...] Os nacional-socialistas são um partido de desespero nacional. É a pequena burguesia que se mostra mais capaz de passar da esperança ao desespero, arrastando consigo uma parte do proletariado." (TROTSKY, L. (1931). Alemanha: chave da situação internacional. Idem, p. 67).
As falas absurdas de Bolsonaro não são somente dele, são dos "pequenos homens (acrescento: brancos)" tomados pelo Complexo de Ustra, que se espalham pelas nossas vizinhanças e, muitos secretamente ainda, comemoram espancamentos de negros.
Lembremos de ouvir as falas de Bolsonaro e os socos dos seguranças não como "desvio" ou "exceção"; o esforço coletivo dos supremacistas brancos em dizer que não foi racismo não é só negação ou desconhecimento da história de dominação deste país, é o trabalho de institucionalização de práticas de ódio contra grupos minoritarizados.
CCXLVIII
"Nossa impressão geral é que a ignorância e a confusão são mais difundidas entre os altos pontuadores do que entre os baixos. Isso seria consistente com as nossas observações anteriores sobre a atitude geral 'anti-intelectual' dos altos pontuadores. Além disso, o otimismo oficial do alto pontuador tende a excluir aquele tipo de análise crítica das condições existentes da qual depende o julgamento político racional. Um homem que é propenso a se identificar a priori com o mundo tal como ele é tem pouco incentivo para penetrá-lo intelectualmente e distinguir entre essência e superfície. [...] A ignorância em relação às complexidades da sociedade contemporânea contribui para um estado de incerteza geral e angústia, que é o terreno fértil ideal para o tipo moderno de movimento de massa reacionário." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 345-6).
Este trecho deixa bastante evidente o papel da cisão como defesa diante da angústia. A adesão cínica ao existente é feita sob a condição de não interpretá-lo, não penetrá-lo intelectualmente, isto é: a feliz apatia tem como preço a idiotização resultante da separação de si daquela parte ciente da complexidade da sociedade.
Ao mesmo tempo, e retroativamente, quando a cisão falha, ou seja, quando a ignorância e a incerteza são percebidas e vividas como divisão subjetiva, a angústia leva estes indivíduos à busca desesperada de movimentos reforçadores e garantidores da cisão perdida.
"A transformação do nosso sistema social de algo dinâmico em algo conservador, um status quo, que luta por sua perpetuação, é refletida pelas atitudes e opiniões de todos aqueles que, por conta de interesses estabelecidos ou de condições psicológicas, identificam-se com a configuração existente. A fim de não minar seu próprio padrão de identificação, eles inconscientemente não querem saber demais e estão prontos para aceitar informações superficiais ou distorcidas, desde que confirmem o mundo no qual querem continuar vivendo. Seria errôneo atribuir o estado geral de ignorância e confusão em questões políticas à estupidez natural ou à 'imaturidade' mitológica do povo. A estupidez pode ser devida a repressões psicológicas mais do que a uma falta básica de capacidade de pensar." (Idem, p. 352-3).
CCXLVII
"Não existe um hiato simples entre a experiência e a estereotipia. A estereotipia é um dispositivo para se ver as coisas confortavelmente; uma vez que, no entanto, ela se alimenta de fontes inconscientes profundas, as distorções que ocorrem não podem ser corrigidas somente pelo olhar real. Em vez disso, a própria experiência é predeterminada pela estereotipia. [...] Isso deve ser levado em consideração por qualquer política de defesa bem planejada. O otimismo em relação aos efeitos profiláticos de contatos pessoais deve ser descartado. Não se pode 'corrigir' a estereotipia pela experiência; deve-se reconstituir a capacidade de se ter experiências para evitar o crescimento de ideias malignas no sentido mais clínico e literal possível." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, p. 264).
A estereotipia e o preconceito não são meros erros de compreensão. Não se pode retificá-los cognitivamente; não é possível que a simples presença do objeto do preconceito na rotina do preconceituoso possa fazê-lo ver a falsidade de suas premissas. O fato é que o preconceituoso não quer ver a verdade. O gozo extraído do ódio, mais do que o conforto da explicação simplificada; o afastamento da angústia permitido pela cisão do preconceituoso, mais do que o pragmatismo da lógica do ticket; são os fatores subjetivos que predispõem os indivíduos às distorções da experiência. Mas isso não significa que não haja determinação objetiva: a capacidade de se ter experiências é também objetivamente determinada. A cisão como defesa hegemônica precisa ser pensada como produto do capitalismo tardio.
"Se nosso clima cultural foi padronizado sob o impacto do controle social e da concentração tecnológica em uma extensão nunca antes conhecida, podemos esperar que os hábitos de pensamento dos indivíduos reflitam essa padronização, assim como ocorre com a dinâmica de suas próprias personalidades. Essas personalidades podem, de fato, ser o produto dessa mesma padronização em um grau muito mais alto do que um observador ingênuo é levado a acreditar. Em outras palavras, temos que supor uma espécie de 'padrão geral' ideológico em nossos entrevistados que, embora não seja de modo algum indiferente à dicotomia dos pontuadores altos e baixos, transcenda seus limites. Nossos dados fornecem ampla evidência de que tal padrão ideológico geral existe de fato." (Idem, p. 339).
Do mesmo modo, dificilmente teremos uma reconstituição da capacidade de se ter experiências sem uma transformação profunda no laço social. Quantos anos mais de crítica ao racismo e ao machismo estrutural, por exemplo, vamos precisar para que se reconstitua a capacidade de se ter experiências não sedimentadas historicamente nas aberrações naturalizadas da escravidão e do patriarcado?
O hiato entre o estereótipo e a experiência é engessamento da história no particular e, deste modo, implica tocar no gozo que o alimenta para fazê-lo voltar ao discurso mentiroso que o inventou. Mas esse discurso, muitas vezes, se esconde nos corpos e se transmite como afetos há séculos. Não à toa a arte, que sabe fazer quiasmas entre o que é do afeto/corpo e o que é do discurso, economiza décadas do trabalho de reconstituição da capacidade de se ter experiências em um dado campo.
CCXLVI
Consideremos os seguintes trechos dos Estudos sobre a personalidade autoritária. O primeiro:
"Se o autointeresse econômico fosse o único determinante da opinião, deveríamos esperar que pessoas do mesmo status socioeconômico tivessem opiniões muito similares e deveríamos esperar que as opiniões variassem de modo significativo de um agrupamento socioeconômico para outro. [...] Para explicar por que pessoas de um mesmo status socioeconômico tão frequentemente têm ideologias diferentes, enquanto pessoas de diferentes status muitas vezes têm ideologias muito similares, devemos levar em conta outras necessidades além das puramente econômicas." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 84).
Um segundo trecho:
"O fascismo, a fim de ser bem sucedido como um movimento político, precisa ter uma massa como base. Ele precisa assegurar não apenas a submissão temerosa, mas a cooperação ativa da grande maioria das pessoas. Uma vez que, por sua natureza mesma, ele favorece poucos à custa de muitos, não tem como demonstrar que irá melhorar a situação da maioria das pessoas a ponto de seus interesses serem atendidos. Ele precisa, portanto, fazer apelo, acima de tudo, não ao autointeresse racional, mas às necessidades emocionais - frequentemente aos medos e desejos mais primitivos e irracionais. Caso se argumente que a propaganda fascista engana as pessoas fazendo-as acreditar que sua situação irá melhorar, então surge a questão: por que elas são tão facilmente enganadas? Por causa, pode-se supor, de suas estruturas de personalidade; por causa de padrões de expectativas e aspirações, medos e angústias há muito estabelecidos que as dispõem a certas crenças e as tornam resistentes a outras. A tarefa da propaganda fascista, em outras palavras, torna-se mais fácil dependendo do grau em que potenciais antidemocráticos já existem na grande massa de pessoas." (idem, p. 88).
Um terceiro trecho:
"É verdade, decerto, enquanto fato econômico e social, que o papel crucial na luta contra a crescente concentração de poder econômico haverá de ser desempenhado pelos trabalhadores agindo de acordo com seus próprios interesses, mas é imprudente subestimar a suscetibilidade à propaganda fascista no interior dessas próprias massas. [...] Ao que tudo indica, as diferenças entre esses grupos de homens dependem mais do fator do contato com organizações liberais e de pensamento liberal do que da associação a grupos socioeconômicos. [...] Os Homens de Classe Média e os Homens de Clube de Serviços são bastante semelhantes em relação ao status econômico e profissional; a diferença entre eles, refletida nas suas médias na escala F, é devida, muito provavelmente, a algo que predispõe os primeiros a participar de uma reunião da Associação de Pais e Mestres ou do grupo de leigos de uma igreja presbiteriana ou de aulas noturnas na Escola Profissionalizante da Califórnia, enquanto os últimos participam de um almoço no Clube de Serviços. Isso, na nossa opinião, é primariamente uma questão psicológica; A diferença está no grau de algo que pode ser rotulado, por ora, como uma disposição em direção ao liberalismo, progressismo ou humanitarismo." (Idem, p. 210-2).
Os autores deixam claro que o agrupamento socioeconômico não é razão suficiente para a presença de diferenças ideológicas. O que poderíamos pensar encontrar como um "natural" autointeresse de classe social nos faz interrogar o que leva tantos indivíduos a agirem contra seus interesses de classe e/ou a favor dos interesses que levam à sua própria exploração. No segundo trecho os autores apontam as necessidades emocionais como fator a ser levado em conta para o entendimento dessa divergência entre interesse "natural" de classe e posição ideológica. A propaganda fascista manipula aspirações, medos e angústias de parte das massas, levando-a ao limite absurdo da autodestruição. E acrescentemos o quanto as predisposições subjetivas ao fascismo são determinadas em grande medida pela lógica exploratória do próprio capitalismo ao coisificar o ser vivo, esvaziar a experiência de mundo ao reduzi-la à lógica do consumo e sistematizar e automatizar as relações submetidas à racionalidade tecnológica e administrativa.
No terceiro trecho os autores propõem o contato com organizações e pensamento liberais (lembremos que o adjetivo "liberal", tal como era usado na década de 1940, indicava um posicionamento democrático mais à esquerda, equivalendo ao "progressista" de hoje em dia e que também carece de crítica) como um fator capaz de formar indivíduos trabalhadores críticos e livres de tendências antidemocráticas.
De um lado a predisposição subjetiva e a propaganda fascista; de outro, a importância das organizações e do pensamento crítico como antídoto e combate ao fascismo e como meio de constituição de personalidades não-autoritárias.
Neste caso, como pensar os intelectuais influenciadores de redes sociais que fazem propagandas de si mesmos? Apesar do conteúdo racionalmente crítico que sustentam seguem presentes, na forma, os elementos manipuladores do afeto próprios da propaganda.
Caberia dizer que os fins justificam os meios? Não caímos, neste caso, no pragmatismo cínico da racionalidade tecnológica?
Como um influenciador que se diz de esquerda pode sustentar a crítica e a constituição de personalidades não-autoritárias alimentando-se de likes e fiéis seguidores?
A propaganda de si como modo de ventilar o pensamento crítico esconde mal o uso do pensamento crítico como modo de oferecer a imagem de si ao consumo. Quando os meios e os fins se invertem revela-se a prática consumista que subjaz à lógica dos influenciadores de redes sociais.
CCXLV
"Como apontado detalhadamente nos capítulos sobre os aspectos da personalidade do material da entrevista, a racionalidade dos baixos pinruadores, sua rejeição ao imaginário projetivo e ao julgamento automatizado não envolve, em regra, frieza emocional e desapego. Embora sejam mais racionais do que os 'altos', pelo fato de seu julgamento parecer menos determinado por fatores inconscientes reprimidos, eles são simultaneamente menos bloqueados em relação a investimentos positivos e à expressão deles. Isso se refere não somente à sua constituição psicológica geral, mas também às suas atitudes específicas em relação a minorias. A pessoa preconceituosa discute os judeus como um 'objeto', enquanto ela realmente os odeia; a pessoa sem preconceitos demonstra empatia mesmo quando aparenta simplesmente julgar objetivamente." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 323).
Interessante notar que o baixo pontuador, por não se apoiar na cisão como defesa principal, acaba por ter mais contato com seus afetos e mais liberdade com a razão. A maior empatia com a diferença parece decorrer da não necessidade de "utilizá-la" para afastar-se de uma parte de si. Quando o sujeito cindido nega em si mesmo sua divisão, objetifica-se e objetifica o outro; o sujeito dividido, por sua vez, talvez possa ver no outro um sujeito também.
Sabemos o quanto um mecanismo perverso de negação da divisão subjetiva implica fazer a divisão aparecer do lado do outro; o sadismo endereçado ao outro tem aí ao menos parte de sua sustentação.
O assimilação maior do sujeito de sua própria parte objetificada seria, assim, uma operação redutora de preconceitos. No entanto, a exploração do trabalho necessária à manutenção do laço capitalista não se sustentaria numa sociedade de sujeitos divididos, isto é, em condições de encontrarem o outro também como sujeito. O capitalismo, que precisou da subjetividade dividida em sua origem, precisa agora negá-la ao máximo.
["Se historicamente a existência do indivíduo enquanto expressão do particular foi uma necessidade social, o que gerou a ampliação das dimensões e do valor da subjetividade e da singularidade no capitalismo liberal, no capitalismo dos monopólios o indivíduo deixa de ser economicamente necessário.
O fortalecimento do capitalismo precisou da concretização no particular de uma instância capaz de se auto-orientar pela razão (e não mais por dogmas) em condições de, a partir do exame lógico da objetividade por meio da sensibilidade e da percepção (isto é, do indivíduo/corpo enquanto lócus privilegiado), realizar cálculos, tomar decisões e assumir riscos. Sem o indivíduo burguês e a multiplicação das empresas familiares o capitalismo jamais se consolidaria." (RAMOS, C. O imperativo de gozo e a propaganda no laço social da sociedade administrada: uma contribuição lacaniana para o estudo da ideologia da adesão à indústria cultural. PUC-SP. Tese de pós-doutorado. 2010. Inédito.)]
A cisão, como mecanismo de defesa hegemônico de nossos dias, é uma necessidade de autopreservação do capitalismo tardio.
CCXLIV
25 candidates transgêneros em 2020 versus 8 em 2016; crescimento de 36% na presença de mulheres nos legislativos municipais (embora ainda sejam somente 18% das cadeiras de vereadores de capitais); 44% de pessoas negras estarão nos legislativos das capitais (vide: https://www.socialistamorena.com.br/resultado-da-eleicao-indica-que-a-esquerda-subestima-a-forca-das-questoes-identitarias/); 10 prefeitos indígenas em 2020 versus 6 em 2016; candidaturas indígenas cresceram 88% em 2020 (várias notícias dão conta do aumento de vereadores indígenas em diversos municípios, mas não encontrei dados nacionais ou somente das capitais); a vociferação fascista contra grupos minoritarizados parece ter encontrado como resposta dialética uma organização institucional em torno de tais grupos. Os partidos de esquerda, ainda presos em seu estado melancólico, poderiam ouvir a força de resistência que emerge de tais grupos. Seria fundamental que os movimentos identitários se organizassem também aqui no Brasil orientados contra o neoliberalismo e pela luta de classes, isto é, fazendo ecoar a transformação social junto com as conquistas de direitos e lugares, combatendo a exploração do trabalhador ao denunciar e destruir as bases estruturais dos racismos, machismos, lgbtfobias e indiofobias. O reencontro de tais lutas com o materialismo histórico pode ser caminho de superação das formas de dominação e destruição que a elite brasileira resiste com todas as suas forças e com apoio imperialista dos EUA em deixar como passado.
Quiçá a America Latina ainda possa dar ouvidos aos revolucionários de sua história ao invés de buscar modelos europeus anti-identitários de organização da esquerda.
CCXLIII
"A pessoa extremamente preconceituosa tende ao 'totalitarismo psicológico', algo que parece ser quase uma imagem microscópica do estado totalitário ao qual ele visa. Nada pode ser deixado intocado, por assim dizer; tudo deve ser feito igual ao ideal do eu de um ingroup rigidamente concebido e hipostasiado. O outgroup, o inimigo escolhido, representa um desafio eterno. Enquanto algo diferente sobreviver, o caráter fascista se sente ameaçado, não importa quão fraco o outro possa ser." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 294).
A relação mimética entre particular e todo proposta por Adorno neste trecho é extremamente rica. Permite-nos questionar dialeticamente o quanto a realidade narrada por um sujeito corresponde à constelação de sua subjetividade e o quanto esta subjetividade é também história sedimentada.
O "totalitário psicológico", aquele que faz um todo de si, um indiviso, muitas vezes toma a imagem narcísica como um exoesqueleto (aliás, as pessoas cada vez mais plastificadas, emborrachadas e botoxadas dão provas contundentes disso). Para sustentar um corpo sem furos, separa-se radicalmente de uma parte indesejada de si. Esta parte, lembrança fantasmática de um corpo que pode se fragmentar, ameaça a frágil carapaça imaginária do totalitário psicológico. Para essa parte ele dirige o seu ódio, mas a ser entendido também como avesso de seu amor negado, pois ali, naquele fragmento, ele identifica tudo o que perdeu por sacrificar-se em nome de um ideal de eu autoritário. A ambivalência dirigida a este objeto é o que faz com que ele seja tão obsessiva e paranoicamente perseguido e destruído. A realização absoluta de sua blindagem aparece no horizonte como realização coletiva, como corpo social sem furos, como aniquilação da diferença, que sempre será deslocada de objeto a objeto. A assíntota dos totalitarismos aponta para a autodestruição.
CCXLII
"[...] assim que é permitida a entrada do preconceito em qualquer quantidade nos modos manifestos de pensar de uma pessoa, a balança pesa fortemente em favor de uma expansão cada vez maior de seu preconceito. Além disso, temos o direito de esperar esse resultado do conflito em todos os casos em que a síndrome da personalidade potencialmente fascista está estabelecida. Se o conflito dentro do indivíduo foi decidido contra os judeus, a decisão em si é quase sem exceção racionalizada de forma moral. É como se os poderes internos do preconceito, após a derrota das contatendências, consumassem sua vitória tomando a seu próprio serviço as energias oponentes que eles derrotaram. O supereu se torna o porta-voz do isso, por assim dizer - uma configuração dinâmica que, aliás, não é totalmente nova para a psicanálise. Podemos chamar, no interior da personalidade, os anseios que se expressam no antissemitismo de o promotor e a consciência de juiz e dizer que os dois estão fundidos." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 288-9).
Muitos de nós pudemos observar de perto, entre 2015 e 2018, esse fenômeno de entrada gradativa e, às vezes, ainda envergonhada, do preconceito no discurso de muita gente que mantinha de certo modo latente sua personalidade potencialmente fascista.
Rapidamente, depois da candidatura efetivada de Bolsonaro, tais pessoas estavam vociferando abertamente, já orgulhosas e desavergonhadas, as mais cruéis e absurdas desumanidades contra indivíduos minoritarizados racial, sexual, confessional, ideologicamente ou por gênero.
Se a latência da potencialidade fascista de uma personalidade, antes de 2015, poderia indicar a decisão do conflito do preconceituoso em benefício de seu objeto, possivelmente pelas condições sociais menos favoráveis aos preconceitos em parte da sociedade brasileira, com as manifestações pró-golpe contra a Dilma Rousseff - marcado simbolicamente pelo voto de Bolsonaro e sua homenagem ao torturador da golpeada - e com a possibilidade de ascensão do discurso autoritário de Bolsonaro em 2018, o conflito preconceituoso de parte calada da população potencialmente de extrema-direita muda de direção e passa a se autorizar a seguir as novas condições sociais institucionalmente criadas após o golpe de 2016.
O Complexo de Ustra - um dos nomes que poderia ter o fascismo brasileiro, cuja condição institucional recalcada foi cutucada pela comissão da verdade, cujo ovo foi chocado pela Lava Jato e cuja serpente foi acordada pelo voto de Bolsonaro a favor do impeachment - começou a bramir com força contra seus objetos, todos pertencentes ao conjunto dos historicamente dominados/silenciados. É importante considerarmos que a força deste complexo - antes dinamicamente contida pela divisão entre uma ânsia de agressão e um controle social que impediam a concretização das defesas narcísicas sustentadas no maniqueísmo ingroup x outgroup - agora se manifesta na forma de um imperativo de gozo, ou seja, supereu e isso se uniram contra uma parte não subjetivada do que poderíamos chamar, com Adorno, de personalidade. Esta parte da personalidade é delirantemente transformada em objeto na realidade e depositada em um "inimigo comum" escolhido entre as mazelas históricas do nosso baú do esquecimento.
(Claro está que é preciso ainda desenvolver mais as relações entre a emergência atual das personalidades autoritárias e o sentimento de apocalipse que advém, num capitalismo vivido como religião, como retorno do milenarismo recalcado, com os impasses e a crise do neoliberalismo. Somente este aspecto religioso da tentativa de entendimento e simplificação da crise do capitalismo permite entender a que ponto uma parte da população recebe as bobagens das fake news como verdades oraculares e dogmáticas e cai nos mais vexatórios charlatanismos políticos.)
Uma vez que a narrativa tosca e rasa adotada por Bolsonaro foi erigida como sistema ideológico de explicação do atual mundo caótico para um número muito grande de cidadãos a quem foram recusados os recursos críticos de leitura do mundo (mas também há aqueles que deles se afastaram por escolha cínica), toda uma malha de estereotipias têm servido de substrato moral que, ao mesmo tempo, ordena e atende aos anseios de agressão de quem vive a mutilação cotidiana do capitalismo. Resolve-se assim, de uma vez só, a impenetrabilidade cognitiva da crise histórica do sistema em que vivemos e os decorrentes conflitos subjetivos que ela [a crise] produz. Se há, assim, um imperativo de gozo nas manifestações de fascistas que antes talvez fossem conservadores angustiados, não se trata de pensá-lo somente como uma falha ou vício do particular, mas como uma produção do capitalismo em crise no sentido de evitar sua transformação por meio de uma "cura" antidemocrática e autodestrutiva.
De 2015 para 2020 vivemos no Brasil (mas não só) o princípio de uma contra-revolução que visa destruir qualquer coisa que aponte para a verdade da crise capitalista e da divisão do sujeito marcado por ela. Os rumos que esta contra-revolução irá tomar dependerá menos das trocas presidenciais deste e dos próximos anos do que do destino do neoliberalismo, ainda que consideremos que algo destas trocas presidenciais possam minimamente interferir naquele destino. Mas talvez seja o caso de repensarmos também a importância que os movimentos organizados de identidades minoritarizadas poderão ter na retomada da luta de classes neste momento em que as forças do preconceito precisam ser dialeticamente combatidas. O reencontro de tais lutas com o materialismo histórico, para além das reformas da sociedade civil onde muitas delas se ajustaram nos últimos anos, parece ser também um efeito do neoliberalismo decadente. Para nos defendermos do imperativo de gozo dos fascistas teremos que apostar numa superação das posições liberais e nostálgicas das militâncias oprimidas: diante da aceleração dos aparelhos de coisificação e silenciamento dos "inimigos comuns" a revolta destes pode levar a uma saída pelo desejo. Nenhuma transformação social é conquistada sem uma resposta da divisão subjetiva diante de impasses intransponíveis e ameaças concretas. O ato político, isto é, o salto dialético e a reinvenção de um sujeito histórico, é uma ruptura radical com os imperativos de gozo de uma determinada época.
CCXLI
"Quanto mais primitivas são as suas fórmulas drásticas, devido à sua estereotipia, simultaneamente mais atraentes elas são, uma vez que reduzem o complicado ao elementar, não importando como a lógica dessa redução possa funcionar. A superioridade assim obtida não se restringe ao nível intelectual." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 267).
Embora Adorno estivesse se referindo, no trecho ainda, ao antissemita, não é descabido pensarmos o quanto, nos dias de hoje, a redução de uma série de saberes a conteúdos rasos de divulgação por redes sociais, não leva à mentalidade do ticket. Discussões tais como se um militante de esquerda pode ou não usar IPhone e dicas sobre o que um intelectual deve fazer na quarentena estão muito distantes da crítica aos estereótipos. Transformam os seguidores em imitadores passivos, o saber em programas de variedades vespertinos da televisão aberta e os intelectuais em apresentadores cujo tipo e bordões precisam sempre ser repetidos para a manutenção da audiência.
É triste pensar que parte do que ainda insiste em se chamar de esquerda crítica reproduza tão fielmente os processos industrializados de danificação da cultura e ajuda a preparar, por isso mesmo, o que diz estar combatendo: o terreno propício ao fascismo.
NOVEMBRO 2020
CCXL
"A característica mais essencial dessa estrutura é a falta de integração entre as agências morais através das quais o sujeito vive e o resto de sua personalidade. Pode-se dizer que a consciência ou o supereu está incompletamente integrado ao self ou ao eu, sendo o eu aqui concebido como abrangendo as várias funções autocontroladoras e autoexpressivas do individuo. [...] Quando essa síntese não é alcançada, o supereu tem, de certa forma, o papel de um corpo estranho dentro da personalidade e exibe aqueles aspectos rígidos, automáticos instáveis antes discutidos." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 145-6).
Ao proporem a instância do supereu como não integrado ou como um corpo estranho os autores não estão tentando delimitar para os autos pontuadores da escala F uma parte cindida, ou uma parte que o eu não sintetiza e reconhece como unidade egóica? Há uma parte da personalidade que compõe um resto que não se integra às agências morais vividas pelo sujeito. Sua condição estranha à parte idealizada do eu dá-lhe o aspecto sintomático de rigidez e automatismo; uma repetição que lhe aparece como uma necessidade desconhecida e, neste contexto, sobretudo, inquestionável.
CCXXXIX
Como um adendo de esclarecimento ao tópico anterior, cabe deixar claro que a divisão e a cisão, por si sós, enquanto mecanismos de defesa que são do sujeito, não consistem "progressistas" ou "conservadores".
A hipótese de que encontramos a cisão como defesa predominante em personalidades de altos pontuadores não quer dizer que todo aquele que apresente a cisão como mecanismo seja necessariamente alto pontuador. Sem qualquer correlação entre tais mecanismos e um conjunto organizado de opiniões, atitudes e valores - o que os autores do The Authoritarian Personality definiram por ideologia -, a hipótese apresentada incorreria em raso psicologismo.
Cito as variáveis que os estudos isolaram para a formulação da escala F com a clara impressão de que ainda seriam verificáveis em nossos dias:
"a. Convencionalismo. Adesão rígida valores convencionais, de classe média.
b. Submissão autoritária. Atitude submissa, acrítica a autoridades morais idealizadas do ingroup.
c. Agressão autoritária. Tendência a vigiar e condenar, rejeitar e punir pessoas que violam os valores convencionais.
d. Anti-intracepção. Oposição ao subjetivo, ao imaginativo, a um espírito compassivo.
e. Superstição e estereotipia. A crença em determinantes místicos do destino individual; a disposição a pensar por meio de categorias rígidas.
f. Poder e 'dureza'. Preocupação com a dimensão de dominação-submissão, forte-fraco, líder-seguidor; identificação com figuras de poder; ênfase excessiva nos atributos convencionalizados do eu; asserção exagerada de força e dureza.
g. Destrutividade e cinismo. Hostilidade generalizada, desprezo pelo humano.
h. Projetividade. A disposição para acreditar que coisas tresloucadas e perigosas acontecem no mundo; a projeção para fora de impulsos emocionais inconscientes.
i. Sexo. Preocupação exagerada com 'eventos' sexuais.
Essas variáveis foram pensadas, no caso de se apresentarem juntas, como formando uma mesma síndrome, uma estrutura mais ou menos duradoura, que torna a pessoa receptiva à propaganda antidemocrática." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 135).
Vale dizer que seria interessante investigarmos a presença do conjunto de tais variáveis em sujeitos nos quais a cisão parece ser predominante. (E do mesmo modo verificar a ausência desse conjunto em sujeitos nos quais a divisão parece ser predominante.)
CCXXXVIII
Alguns trechos do resumo feito por Virginia Helena Ferreira da Costa para os capítulos IX a XIII (sob responsabilidade de Else Frenkel-Brunswik) e um trecho da conclusão final de The Authoritarian Personality, põe-me a refletir sobre uma possível fenomenologia psicológica própria aos altos e baixos pontuadores das escalas do referido estudo.
Muito embora os entrevistados do estudo sejam norte-americanos adultos da década de 40 e as formulações psicanalíticas utilizadas tenham por fundamento uma teoria do desenvolvimento da qual não compartilho, não é um desperdício de esforço buscar o que, das então nomeadas síndromes autoritária e liberal (este equivalente, talvez, ao progressista de hoje), ainda podemos encontrar em nossos dias e como poderíamos descrevê-las com recursos que a psicanálise nos dá atualmente.
Um primeiro trecho:
"Os entrevistadores procuram delimitar a presença de idealização dos pais como uma característica dos altos pontuadores. Os pais seriam elogiados segundo qualificações excessivamente convencionais de sucesso econômico e beleza, por exemplo. Posicionamento que se distingue de uma abordagem mais objetiva dos baixos pontuadores em relação a seus pais, havendo inclusive livre discordância dos progenitores - resultado de expressão mais amorosa e fornecimento de mais segurança por parte dos pais na infância -, o que leva muitas vezes a sentimentos de conflito e culpa dos baixos pontuadores. Tal desacordo consciente se distancia muito dos sentimentos negativos inconscientes, alienados do eu, em relação aos pais vivenciados pelos altos pontuadores." (COSTA, V.H.F. Resumo de The Authoritarian Personality, in: ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 54-5).
A descrição de Frenkel-Brunswik parece propor que a relação dos altos pontuadores com os pais é aquela que encontramos entre o sujeito e um suposto Outro não barrado, fantasiosamente investido de idealização e poder. Já os baixos pontuadores podem ver os próprios pais como um Outro barrado, isto é, com limites, não-idealizado, diante do qual a ambivalência de afetos pode ser experimentada. A culpa e o conflito presente na entrevista dos baixos pontuadores apontam para um sujeito dividido, em condições de interrogar os lugares que ocupa na relação com o Outro e o lugar a ele dado. Os altos pontuadores, por outro lado, como modo de sustentar o Outro idealizado, mantém cindidos do eu os afetos negativos que poderiam abalar sua imagem. Sabemos o quanto esta cisão não simbolizada tem como consequência o retorno desses afetos no real, como ódio irracional ao objeto portador do traço eleito como estigma.
Se essas características resultam para os baixos pontuadores a melancolia da densidade do conflito ético, por vezes paralisante, para os altos pontuadores um resultado potencial é a adesão cínica a ideologias paranóicas e sectaristas, capazes de alimentar a cisão de afetos oferecendo um Outro para idealizar e um inimigo comum para ser destruído.
[Wendy Brown ilustra bem o que eu quis dizer por melancolia dos baixos pontuadores na seguinte citação:
"Uma esquerda que se tornou mais ligada a sua impossibilidade do que a sua potencialidade, uma esquerda que quase não sai de casa pensando não em esperança, mas na sua própria marginalidade e fracasso, uma esquerda que está portanto presa na estrutura de ligação melancólica a certos problemas do seu próprio passado morto, cujo espírito é de morte, cuja estrutura de desejo é de olhar para traz e de punir." (BROWN, W. citada em HAIDER, A. Armadilha da identidade. São Paulo: Veneta, 2019, p. 135).]
Num segundo trecho encontramos o seguinte:
"É como se a orientação valorativa capitalista em direção à 'obtenção de coisas' transferisse as relações de trocas mercantis para a esfera das relações pessoais, como se as propriedades (como seriam entendidos inclusive os objetos pulsionais) fossem uma extensão libidinal de si mesmos. É por isso que 'o alto pontuador típico permanece dependente da bênção dada pela autoridade externa. Isso leva à acessibilidade a ser manipulado por forças sociais, principalmente por aqueles que incentivam a agressão.'" (COSTA, V.H.F., idem, p. 55).
Como não ler aqui uma articulação com o que Lacan chamou de discurso do capitalista? Como um discurso que não faz laço social, o do capitalista reduz as relações humanas à relação entre coisas. Não havendo a impossibilidade de acesso ao lugar da verdade, no qual se sustenta um significante mestre a ditar o movimento repetitivo do consumo, este discurso não encontra a perda de gozo necessária para fazê-lo girar e dar lugar a outros discursos. Mas isto não quer dizer que ele tenha encontrado a completude dos gozos, como uma espécie de fim da história. Se ele não se deixa interrogar em sua insuficiência é por ser cinicamente investido como única realidade possível. A redução das relações à racionalidade tecnológica é a afirmação manipulatória e administrativa do existente. (A afirmação do existente como não mediado historicamente: talvez não seja outra coisa o que, no fim das contas, possamos extrair do que a psicanálise chama de discurso do capitalista sem o risco de mistificá-lo e fazer com a teoria dos discursos a mesma afirmação não mediada.)
Dias sintetiza bem o alcance discurso do capitalista na seguinte passagem:
"Retomando o discurso do capitalista, meu objetivo foi o de indicar de que modo, devido à mutação do discurso do mestre, os sujeitos se tornam cativos de um tipo de satisfação. Satisfação essa que, a um só tempo, retira de cena a particularidade pelo desejo, determina o sentido a ser estabelecido na linguagem, aglutina seu lugar de forma estática na existência como o consumidor e, por fim, o assujeita de forma a comparecer num lugar em que aquilo que lhe resta é alimentar o ciclo de sua própria servidão. Espaço fechado que não depende mais de escolhas e decisões para seu êxito." (DIAS, M.M. O discurso da estupidez. São Paulo: Iluminuras, 2020, p. 85).
Aqui talvez seja o caso de interrogarmos se o cinismo dos que hoje encontraríamos como altos pontuadores poderia ser atribuído aos pressupostos de hipnose de grupos ou intoxicação psicológica das massas. (Aliás, Adorno já indicava a impostura como categoria a ser aplicada aos movimentos fascistas.)
A cisão, que encontramos como mecanismo defensivo nos altos pontuadores, como meio de não terem que se deparar com a angústia da divisão subjetiva, é uma cisão do eu. Como disse Freud em seu último texto:
"Suponhamos, portanto, que o ego de uma criança se encontra sob a influência de uma poderosa exigência instintual que está acostumado a satisfazer, e que é subitamente assustado por uma experiência que lhe ensina que a continuação dessa satisfação resultará num perigo real quase intolerável. O ego deve então decidir reconhecer o perigo real, ceder-lhe a passagem e renunciar à satisfação instintual, ou rejeitar a realidade e convencer-se de que não há razão para medo, de maneira a poder conservar a satisfação. Existe assim um conflito entre a exigência por parte do instinto e a proibição por parte da realidade. Na verdade, porém, a criança não toma nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente, o que equivale à mesma coisa. Ela responde ao conflito por duas reações contrárias, ambas válidas e eficazes. Por um lado, com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; por outro, no mesmo alento, reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico e subsequentemente tentar desfazer-se do medo. Deve-se confessar que se trata de uma solução bastante engenhosa da dificuldade. Ambas as partes na disputa obtêm sua cota: permite-se que o instinto conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela realidade. Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no ego, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa. As duas reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma divisão do ego [Ichspaltung]." (FREUD, S. [1938]. A divisão do ego no processo de defesa. In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1988, p. 293).
[Faço notar que, embora a tradução da Imago, do inglês splitting, proponha divisão do ego, o termo alemão Spaltung admite a tradução por cisão, que prefiro, para diferenciar do termo lacaniano sujet divisé. Assim, entendo como cisão do eu uma operação mais radical do que a divisão do sujeito, pois, enquanto esta suporta a contradição subjetiva, aquela age como se uma parte do eu pudesse viver sem contato com a outra parte, de modo que o discurso do cindido cínico aparece na forma característica de um eu salvaguardadamente coeso e sem furos - ruptura ricamente alegorizada por Robert Louis Stevenson no O estranho caso do Dr Jekyll e do Sr Hyde.]
O cinismo contemporâneo talvez seja uma prova de que os afetos negativos em relação ao Outro como modo de preservar sua idealização não estão mais tão recalcados. Os movimentos potencialmente fascistas de nossos dias talvez sejam mais performáticos do que alienados, posto que suas mentiras estão aparentes sem que isto impeça a adesão de eus cindidos. Talvez seja interessante articularmos a sustentação explícita de uma parte falsa do eu ao recurso crescente à produção de aparências artificiais. A cisão do eu alcança o corpo quando este se torna tão artificial quanto a ideologia apresentada pelo sujeito em questão. A verdade do corpo e do sujeito, a mesma verdade, talvez, jaz ocultada em algum lugar fora do espelho e embaixo do discurso.
Sigamos com outro trecho:
"[...] A dicotomia entre um posicionamento terno ou autoritário da autoridade parental, o que levará, no primeiro caso, a internalização do supereu por parte dos baixos pontuadores e, no segundo, ao supereu externalizado dos altos pontuadores. As consequências de tal relação com a autoridade familiar são muitas: de um lado, no caso dos baixos pontuadores, a possibilidade de compreensão das normas em seus conteúdos e significados, a ausência de medo no enfrentamento da autoridade e dos valores convencionais, a aceitação consciente de defeitos dos pais e o reconhecimento de problemas e conflitos em si mesmo, ainda que haja culpa e arrependimento; e, de outro, no caso dos altos pontuadores, o cumprimento de normas e disciplinas meramente formais, medo da autoridade, agressividade inconsciente em relação aos pais e a não aceitação de traços relacionados a fraquezas em si e na alteridade." (COSTA, V.H.F., idem, p. 55-6).
O que a autora diferencia em termos de internalização e externalização do supereu, respectivamente para os baixos e altos pontuadores, podemos entender como simbolização, no primeiro caso, e idealização imaginária, no segundo. (Lembremos do argumento de Lacan de que a introjeção e a projeção freudianas não são estruturalmente equivalentes.) A mediação simbólica do supereu é fundamental para a constituição de um Outro com furos. Sem a mediação simbólica a consistência imaginária do supereu sustenta figuras externas nas quais a lei é personificada e responde aos caprichos do gozo do Outro não barrado (tomado, portanto, pelo real da vociferação ao invés da escrita refletida da lei). Atravessada pela mediação a lei encontra a participação do sujeito; não mediada, a lei é dogmática e inquestionável, é lei alienada e não objetivada; ao mesmo tempo em que perde seu elemento dialético de subjetivação, o para si em si, para tornar-se lei absoluta nela mesma ensimesmada.
A relação mediada com a autoridade e os valores convencionais é aquela capaz de reconhecer as contingências de suas origens e suas transformações como possíveis. Sem a mediação simbólica a autoridade e os valores convencionais são tomados como necessários e suficientes, daí a condição formal do cumprimento de normas e disciplinas (cumpri-las é transformado em óbvio e factual e não em um ato de escolha e responsabilidade), daí também a aparência de impossibilidade de superá-las. O status quo é percebido e/ou sustentado não como uma escolha, mas como única realidade possível.
Voltando à citação é destacável, sobretudo, a sua parte final, que diz da não aceitação de traços de fraqueza em si e no outro, por parte dos altos pontuadores. A lei coisificada pesa sobre o sujeito autoritário com a paixão da intolerância: qualquer ranhura na imagem deificada aciona o sistema excretor das ideologias sectaristas, posto que em seu interior não pode haver lugar para elementos que apontem ou recordem suas ambiguidades.
Vejamos, para ilustrar a relação dos pontuadores com o supereu, como a diferença de agressividade aparece nas entrevistas:
"Como expressão de resistências e defesas, os autores delimitam três tipos de manifestação de agressividade nos entrevistados. Há as manifestações difusas de agressão, não integradas ao eu, como episódios de raiva cega, ataques súbitos de ódio e mau humor, típicos dos altos pontuadores. Já a agressão manifesta pelos baixos pontudores tende a ser mais específica, dirigida contra objetos, situações, pessoas bem delimitadas, sendo mais consciente e acompanhada muitas vezes por culpa, resultado de um supereu internalizado. A última categoria de agressividade, mais autoritária e persecutória, é comparada a 'um esquema mental de pogrom' e tende a ser orientada pelo pensamento dicotômico, recusando terminantemente qualquer ambivalência." (COSTA, V.H.F., idem, p. 57).
De acordo com as análises das entrevistas feitas por Frenkel-Brunswik, a diferença entre os dois primeiros tipos de agressividade corresponde ao que estamos sustentando como diferença entre cisão e divisão. O ódio não integrado ao eu nos altos pontuadores segue cindido, como afeto que não lhe pertencesse, e cujos objetos não ganham acesso à consciência da parte protegida do eu sem que isso gere angústia. Quando não pode ser inteiramente dirigido a um inimigo comum sustentado no laço social, o ódio aparece como súbita transformação do Dr Jekyll em Sr Hyde: torna-se uma manifestação catártica de ódio, mas jamais um ataque ao status quo, e por isso a aparente difusão e a cegueira do ódio, uma vez que ele não pode assumir seu verdadeiro objeto (o eu e o Outro idealizados).
Nos baixos pontuadores, por sua vez, o ódio assume seu objeto e, por decorrência, surgem manifestações da divisão, como ambivalência, culpa, arrependimento e, podemos acrescentar, angústia, ruminação, autopunição e estados melancólicos.
A categoria de agressividade apresentada como mentalidade de pogrom é explicitamente colocada como cindida, isto é, dicotômica, mas neste caso o ódio encontra sempre e paranoicamente seu objeto: por uma negatividade radical da ambivalência, a parte considerada boa do eu é mantida como ingroup e a parte considerada inaceitável é lançada para o outgroup eleito como inimigo. A mentalidade do pogrom, por ser persecutória, diferencia-se do cínico por ser fundada num sentido fechado e delirante. O cínico, como portador da impostura, no fundo sabe da falsidade da ideologia que sustenta (às vezes, inclusive, a ponto de cometer falsidades ideológicas), mas é um medroso contumaz que prefere não arriscar o pouco de gozo infantilizado a que teve acesso no status quo (e que transforma no único possível) a comparecer diante do juiz simbólico de sua própria ambivalência.
Na conclusão da pesquisa encontramos o seguinte trecho assinado coletivamente pelos autores:
"[...] haveria, no entanto, uma correlação entre a dificuldade em enxergar aspectos da realidade e problemas em assumir os traços de si mesmo. 'A resistência ao autoconhecimento e a resistência aos fatos sociais são feitos, essencialmente, da mesma coisa [...].'" (COSTA, V.H.F., idem, p. 70).
O véu a esconder a verdade da inadequação radical entre desejo e realidade aparece como característica sumária dos altos pontuadores nas últimas páginas do The Authoritarian Personality. A que devemos este véu que recobre os furos e simula uma sociedade cuja plenitude seria alcançável bastando a erradicação dos traços negados e projetados com o extermínio de seus portadores forçados?
Seria este véu da resistência, necessariamente apologista da ignorância, a causa do caldo de cultura perverso que encontramos na realidade atual?
Séculos de dominação burguesa e de tentativas de paralisação da luta de classes incutiram nos sujeitos o medo da transformação. (Algo deste medo se faz presente como melancolia para a esquerda, mas como medo da perda da transformação.) Como diz a questão de Mark Fisher colocada como subtítulo da tradução de seu último livro para o português: "é mais fácil imaginar o fim do Mundo do que o fim do Capitalismo?". Não há possibilidade de levarmos adiante o capitalismo sem sua tendência histórica ao fascismo, mas a própria possibilidade de superação do capitalismo é alimento do medo do fim do mundo, potencializando movimentos fascistas. Os capitalistas, para se protegerem, precisam impedir todas as vias de reflexão crítica para que parcela da população dominada continue a identificar o sistema atual com a própria humanidade.
Precisamos pensar mais nas diferenças subjetivas, essas que na década de 40 apareceram como baixos e altos pontuadores das escalas dos estudos sobre a personalidade autoritária, como produções da luta de classes. Sem estereotipá-las ou estigmatizá-las, tais tipologias precisam ser pensadas também para além das histórias pessoais e contingências singulares: a luta de classes penetra o âmago dos encontros de cada um com suas causas inconscientes de modo que, no caminho de cada sujeito, aparecem bifurcações capazes de determinar diferentes modos de defesa diante das ambivalências. Atribuir estas defesas à relação com o pai só tem seu valor se considerarmos o que há aí de sintomas historicamente estabelecidos de uma sociedade patriarcal. Quando hipostasiada ou camuflada de estrutura, contribui com a paralisia de sua própria dialética.
Talvez cumpra a nós psicanalistas buscar ouvir e teorizar novas causalidades, mais materialistas e menos fálicas, para os dois tipos tão distintos de fenomenologia e dinâmica subjetivas que ainda seguem aparecendo - e atualmente com mais clareza - nos anos 20 do século XXI, passados quase 80 anos dos resultados lá encontrados.
CCXXXVII
Um estudo da UFRJ e do Instituto Francês de Pesquisa e Desenvolvimento (IRD) encontrou nos municípios brasileiros uma correlação significativa entre preferência por Bolsonaro e expansão da COVID-19.
"Segundo a pesquisa, para cada 10 pontos percentuais a mais de votos para Bolsonaro [considerado o primeiro turno das eleições] há um acréscimo de 11% no número de casos e de 12% no número de mortos." ( matéria de Diego Garcia para a Folha de São Paulo, de 12/10/20, disponível em: https://www.google.com.br/amp/s/www1.folha.uol.com.br/amp/mercado/2020/10/efeito-bolsonaro-sobre-alta-nos-casos-de-coronavirus-surpreende-pesquisadores.shtml).
Chamado pelos pesquisadores de "efeito Bolsonaro" este fenômeno se associa claramente ao tratamento dado pelo presidente à doença: "Podemos pensar que o discurso ambíguo do presidente induz seus partidários a adotarem com mais frequência comportamentos de risco (menos respeito às instruções de confinamento e uso da máscara) e a sofrer as consequências." (idem).
Para além da gravidade que isso aponta em relação à responsabilidade do presidente, o estudo nos põe a pensar também sobre as relações estreitas entre a política como campo discursivo e o corpo como local de escrita da história. Em tais cidades o adoecimento e a morte ficarão para as próximas gerações como reminiscências não somente de uma pandemia, mas de uma posição ideológica. Nos cemitérios dessas cidades as datas das inscrições tumulares serão provas de que a propagação de fake news não é sem consequências irreversíveis.
Cada família que perdeu um membro transmitirá aos descendentes algo mais do que a infelicidade do encontro com o coronavírus. Cada um que guardar a experiência da falta de ar guardará também o índice, refletido ou recalcado, do sufocamento político do espírito. Cada cidadão, no qual tenha restado da COVID-19 uma fibrose pulmonar, será portador de sequelas da inscrição de um momento triste da história nos tecidos do seu corpo.
Cada corpo é também um monumento de seu tempo. Os corpos que atravessarem estes anos de bolsonarismo e coronavírus trarão marcas que, inevitavelmente, circularão no esforço de simbolização do real sempre presente de uma geração a outra.
O "efeito Bolsonaro" comprova que não há negacionismo do real que não retorne no próprio real.
CCXXXVI
"Existe também um tipo fascista de pessoa não religiosa que se tornou completamente cínica depois de ter se desiludido com a religião e que fala sobre as leis da natureza, a sobrevivência do mais forte e os direitos dos fortes." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 493).
O desencantamento do mundo provocado pelo esclarecimento associado à razão burguesa dominadora promoveu, como contrapartida dialética, o investimento encantatório da realidade como campo de batalha naturalizado.
Encontramos em Sade, talvez, já em 1795, o ápice desta relação entre esclarecimento e mistificação da natureza:
"Evite-se, pois, com o maior cuidado mesclar alguma fábula religiosa a essa educação nacional. Não percamos nunca de vista que são homens livres que desejamos formar e não vis adoradores de um deus. Que um filósofo simples instrua esses novos alunos sobre sublimidades incompreensíveis da natureza; que ele lhes prove que o conhecimento de um deus, amiúde muito perigoso para os homens, jamais serviu à sua felicidade, e que eles tampouco serão felizes admitindo, como causa daquilo que não compreendem, alguma coisa que compreenderão ainda menos; que é menos essencial ouvir a natureza que desfrutar e respeitar suas leis; que essas leis sejam tão sábias quanto simples; que sejam escritas no coração de todos os homens, e que baste interrogar esse coração para distinguir-lhe os impulsos." (SADE, M. de. [1795]. A filosofia na alcova. São Paulo: Círculo do Livro, s.d., p. 161).
A lei do mais forte, o darwinismo social, a eugenia, se fortaleceram irrefletidamente como espécies de neopaganismo. A supremacia branca colonizadora é tomada como direito divino deslocado, sustentado por ideologias pseudo-científicas mistificadas.
É em Sade, novamente, no coração da revolução francesa e na semente da razão burguesa, que encontramos o germe da crueza barbarizada dos argumentos fascistas:
"Dignemo-nos a iluminar um instante nossa alma com o santo archote da filosofia: que outra voz senão a da natureza nos sugere os ódios pessoais, as vinganças, as guerras, em suma, todos esses motivos de assassinatos perpétuos? Ora, se ela no-los aconselha, tem pois necessidade deles. Como, portanto, podemos, de acordo com isso, supor-nos culpados para com ela, já que só o que fazemos é seguir suas opiniões?" (idem, p. 196).
Mas mesmo antes da revolução francesa podemos encontrar a dimensão cínica da religião desiludida e seus deslocamentos: há algo das cruzadas cinicamente mantido como razão subsidiária na destruição de um quinto da população do planeta ao longo dos séculos XVI e XVII. A população indígena sobrevivente no século XXI ainda luta contra os cruzados da supremacia branca, hoje em cargos públicos. O racismo eugênico e necropolítico de uma classe mista entre cruzados brancos e burguesia sadicamente esclarecida segue com toda sua força quando 75% dos mortos pela polícia são negros.
Mais recentemente, as mesas de lobistas, a deep web e alguns diretórios políticos talvez tenham assumido as funções da alcova sadeana na construção de argumentos e leis mistificados sobre o poder e o direito "naturais" do mais forte. Podemos ver algumas dessas construções com toda sua pacovice nos comentários associados às crucificações digitais promovidas pelos mercenários de rede social, os haiteres - forma última assumida pelos cruzados medievais.
CCXXXV
"Ele denuncia aqueles que 'se consideram melhores' a fim de glorificar os medianos e estabelecer algo simples e supostamente natural como norma." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 506).
Embora na citação acima Adorno se refira a um baixo pontuador nas escalas dos estudos sobre a personalidade autoritária, é impossível não associá-la ao movimento dos últimos três anos, alimentado pelo bolsonarismo, de criticar de arrogante quem desenvolve argumentos ligados a ideologias de esquerda. Muitas vezes cabe perguntar se tal crítica não esconde, como contrapartida, a glorificação da mediocridade. Sob a perspetiva da tendência ao fascismo esse movimento se articula fortemente ao expediente do "pequeno grande homem", assim como Adorno nomeou o locus em si mesmo contraditório de identificação ao qual se ofereciam os agitadores fascistas norte-americanos cuja transmissão radiofônica pesquisou no início dos anos 40:
"Deixando de lado as implicações inconscientes de maior alcance, verifica-se que o expediente do mensageiro pertence a uma estrutura de propaganda fascista muito mais geral. Ele indica uma constelação característica do conjunto das relações existentes entre o locutor e sua audiência. Representando a integração psicológica de sua audiência como um todo, o agitador é ao mesmo tempo fraco e forte; fraco, na medida em que cada membro da multidão é concebido como um ser capaz de identificá-lo como o líder que, por isso, não deve ser muito superior ao seus seguidores; forte, na medida em que representa o poderio de uma coletividade que é alcançada através da unificação daqueles a quem ele se dirige. A imagem que ele exibe de si mesmo é a de um 'pequeno grande homem' com um toque de incógnito, daquele que percorre os mesmos caminhos de toda a gente sem ser reconhecido mas que, enfim, se revela ser o salvador. Ele quer ao mesmo tempo identificação íntima e distância adulatória; por isso sua figura é propositalmente contraditória. Contando que as memórias sejam curtas, ele se baseia muito mais na divergência das disposições inconscientes, às quais ele apela de acordo com a ocasião, do que em convicções racionais realmente consistentes." (ADORNO, T.W. A Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas. [1943]. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/adorno/ano/mes/palestras.htm).
Caberia interrogar mais a "espera" pelo surgimento de um salvador entre os homens comuns como um deslocamento da desilusão religiosa historicamente sofrida pelo mundo eurocêntrico.
"A religião cristã foi profundamente afetada pelo processo de esclarecimento e pela conquista do espírito científico. Os elementos 'mágicos' do cristianismo, bem como a base factual da crença cristã na história bíblica, foram profundamente abalados. Isso, no entanto, não significa que a religião cristã tenha sido abolida. Embora largamente enfraquecida em suas reivindicações mais profundas, ela manteve ao menos parte das funções sociais adquiridas ao longo dos séculos. Isso significa que se tornou em grande parte neutralizada. A carapaça da doutrina cristã, acima de tudo sua autoridade social e também vários elementos mais ou menos isolados de seu conteúdo, está preservada e é 'consumida' de maneira aleatória como um 'bem cultural', como o são o patriotismo ou a arte tradicional." (ADORNO, T.W. 2019, p. 487).
Da religião, quando neutralizada, perde-se algo da autenticidade da fé e da consistência doutrinária, mas ficam os esquemas da submissão ao pai, esvaziados do pressuposto da verdade e fortalecidos em sua função de "cimento social":
"Separados de suas raízes e muitas vezes desprovidos de qualquer conteúdo específico, esse constituintes formais tendem a ser congelados em meras fórmulas. Assim, eles assumem um aspecto de rigidez e intolerância, como aquele que esperamos encontrar na pessoa preconceituosa." (p. 488).
E Adorno continua: "quanto mais a religião se torna convencionalizada, mais ela estará alinhada com a perspectiva geral do indivíduo etnocêntrico." (p. 489).
Algumas religiões atualmente se sustentam por meio de fórmulas fundamentalistas, de tão convencionalizadas, alimentadas por pequenos grandes homens, mensageiros da terra prometida.
Mas o mais notável é observar o quanto das fórmulas e esquemas que restaram da religião neutralizada se deslocaram para as redes sociais: o que haveria de pregadores religiosos convencionalizados e das palestras radiofônicas dos agitadores fascistas nos atuais youtuberes? O que haveria do expediente do "pequeno grande homem" em influenceres? E o que haveria de glorificação da mediocridade por parte dos seguidores?
(Não é incomum encontrarmos palestrantes de redes sociais que jogam com o sofrimento de antepassados humildes quando querem identificação íntima e arrogam um "você sabe com quem está falando?" ou eruditam o próprio discurso quando querem distância adulatória.)
CCXXXIV
"A aceitação de uma ideologia não é baseada na crença no seu conteúdo ou em sua compreensão, mas no uso imediato que pode ser feito dela ou em decisões arbitrárias. [...] Seleciona-se uma Weltanschauung seguindo o padrão de escolha de uma mercadoria particularmente bem propagandeada em vez de por sua qualidade real." (ADORNO, T. W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 494-5).
Quando a lógica consumista, levada às últimas consequências, alcança o campo do pensamento e das ideologias, a verdade a eles subjacente deixa de ser considerada em troca da utilidade imediata, do sentimento de pertencer, da vontade de estar na moda e seguir a "maioria" etc. Quando isso acontece, escolhe-se um regime político como quem opta por uma marca de refrigerante.
A prática recente da apresentação de teorias densas por meio de lives em redes sociais parece convergir com a citação acima: muitas vezes fica claro que o propósito último é narcísico - o sucesso garantido pelo contador de likes - e o acúmulo decorrente do capital de influência. As divulgações teóricas, muitas vezes rasas e inconsistentes, servem como meio e não como fim. A administração da idolatria e das transferências contam mais do que o conteúdo ou a compreensão do material apresentado. O que importa é manter presente e com uma dada frequência a imagem de si oferecida ao consumo, ou seja, bem propagandear a mercadoria, ainda que isso tenha, como consequência, a falta ou perda de qualidade real da teoria que a isso serve de pretexto.
Não é sem preocupação e tristeza que vemos hoje, e cada vez mais, discursos de crítica ao fascismo semearem, na própria forma, o terreno que lhe é propício.
CCXXXIII
O conceito de castração seguiria fazendo sentido na teoria psicanalítica sem o patriarcado que ela carrega como herança neurótica de seu criador?
Se não considerássemos o "aomenosum" da exceção, não faria sentido pensar na castração.
(Estrito senso os castrati só existem para melhor cantar - e com voz feminina - ao pai. Literalmente, um efeito feminizante destinado à celebração religiosa, aprovada formalmente pelo papa Sisto V em 1589 e presente na Capela Sistina até 1913, após proibição definitiva de Leão XIII em 1902 - 7 anos antes de Freud lançar o termo Complexo de Castração ao discutir a angústia de seu pequeno Hans.)
Se o pai é uma construção da neurose freudiana, os castrados são seus correspondentes lógicos: os filhos. Dizer que um sujeito é castrado seria equivalente a dizer que ele é filho?
Como teorizar o sujeito fora desta correspondência? Um sujeito que não precisasse se colocar num conjunto pela filiação? - conjunto, diga-se de passagem, no qual as mulheres, como objetos, não podem entrar.
Neste sentido, a pulsão como aquilo que é parcial e que não teria sexo, não seria um mito melhor?
O complexo de castração em Freud remete muito facilmente ao que, em Lacan, precisamos destacar como castração imaginária e diferenciá-la da castração simbólica.
Mas o próprio Lacan, quantas vezes, exemplificou o falo por sua relação com o pênis.
A origem freudiana da castração, como "angústia edípica do menino", não está impregnada no lacanismo?
Descolar definitivamente o falo do pinto deveria implicar não remeter isso ao complexo de castração. Mas, se é de perda de objeto, de algo do corpo que se trata, não seria menos imaginário e patriarcal se chamássemos isso de complexo de mutilação?
CCXXXII
As redes sociais levam às últimas consequências, isto é, à algoritmização absoluta, a lógica do ticket (ou combo) presente na sociedade de consumo:
"Com a pequena empresa psicológica, isto é, com o indivíduo as coisas não se passam diferentemente. Ele surgira como uma célula dinâmica da atividade econômica. Emancipado da tutela imposta em fases econômicas anteriores, ele cuidava de si mesmo: como proletário, assalariando-se no mercado de trabalho e adaptando-se continuamente às novas condições técnicas, como empresário, realizando incansavelmente o tipo ideal do homo oeconomicus. A psicanálise apresentou a pequena empresa interior que assim se constituiu como uma dinâmica complicada do inconsciente e do consciente, do id, ego e superego. No conflito com o superego, instância de controle social no indivíduo, o ego mantém as pulsões dentro dos limites da autoconservação. As zonas de atrito são grandes e as neuroses, os faux fraix dessa economia pulsional, são inevitáveis. Não obstante, a complicada aparelhagem psíquica possibilitou a cooperação relativamente livre dos sujeitos em que se apoiava a economia de mercado. Mas, na era das grandes corporações e das guerras mundiais, a mediação do processo social através das inúmeras mônadas mostra-se retrógrada. Os sujeitos da economia pulsional são expropriados psicologicamente e essa economia é gerida mais racionalmente pela própria sociedade. A decisão que o indivíduo deve tomar em cada situação não precisa mais resultar de uma dolorosa dialética interna da consciência moral, da autoconservação e das pulsões. Para as pessoas na esfera profissional, as decisões são tomadas pela hierarquia que vai das associações até a administração nacional; na esfera privada, pelo esquema da cultura de massa, que desapropria seus consumidores forçados de seus últimos impulsos internos. As associações e as celebridades assumem as funções do ego e do superego, e as massas, despojadas até mesmo da aparência da personalidade, deixam-se modelar muito mais docilmente segundo os modelos e palavras de ordem dadas, do que os instintos pela censura interna. Se, no liberalismo, a individuação de uma parte da população era uma condição da adaptação da sociedade em seu todo ao estágio da técnica, hoje, o funcionamento da aparelhagem econômica exige uma direção das massas que não seja perturbada pela individuação." (HORKHEIMER, M. e ADORNO, T.W. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 189-90.)
Em suas etapas de avanço técnico, despojamento e cálculo de riscos o capitalismo precisou do indivíduo como locus da razão dominadora. O avanço industrial, o capital monopolista e a necessidade da ampliação do consumo massificado fez a "fórmula indivíduo" enquanto mediação social tornar-se um incômodo (com o distanciamento necessário à tomada racional do objeto veio também a tomada dialética da própria razão dominadora e a crítica social decorrente). Se numa época inicial a satisfação deveria ser colocada em segundo plano sob o discurso da importância do sacrifício do trabalho (momento de maior intimidade entre protestantismo e capitalismo), agora a satisfação consumista imediata é erigida como obrigação vigiada. Qualquer mediação que coloque um indivíduo capaz de se posicionar diante do comando automatizado das massas torna-se perturbador.
A organização industrial da vida atingiu o pensamento de modo a reduzir ao esquema da estereotipia a análise, a categorização e o juízo da realidade. O trabalho da crítica regride à resposta reflexa, à codificação do mundo e à imitação em série de padrões pré-fabricados. A dinâmica das redes sociais, ao suporem usuários teleguiados que respondem pelo reflexo (e não pela reflexão) a formas esvaziadas de realidade consumível, é o tratamento algorítmico do ticket, seu momento de maior avanço tecnológico. De Joseph Goebbels a Mark Zuckerberg, o fetiche da organização das massas ganha proporções cibernéticas e matemáticas, mas talvez seja a psicologia do consumidor aplicada aos dispositivos da propaganda fascista estandardizados o que mais tenha contribuído para o seu sucesso.
As redes sociais não compõem um campo neutro que possa ser "bem utilizado" dentro do capitalismo. Sua estrutura e sua forma estão comprometidas com a própria história da destituição capitalista do indivíduo. A expropriação psicológica promovida pelos pacotes combinados de satisfação facilitada somados aos mecanismos infantis de alimentação narcísica é notória quando assistimos os níveis de ódio e idolatria presentes em suas comunicações. E uma vez que os computadores avançados que fazem funcionar os algoritmos de tais redes são capazes de calcular novos algoritmos e potencializar esquemas inéditos a partir de tendências divergentes, o resultado é a retroalimentação de polaridades políticas de pessoas igualmente submetidas ao domínio fascista da visão estereotipada do mundo.
OUTUBRO 2020
CCXXXI
Precisamos pensar mais sobre o papel que a valorização da imagem e do sucesso midiático das elites pensantes tem como meio de regulação na disputa do capital de influências. Além disso é notório o abismo que há entre a aparência teoricamente densa e sofisticada muitas vezes sustentada pelos midiáticos e a essência abstrata e esvaziada, sem materialidade e lastro histórico, de seus discursos. Afastados das periferias e das bases que poderiam modestamente ouvir, sempre que sustentam como verdadeiro e decisivo o saber que pavoneiam, reproduzem o modelo de dominação branca e machista, posto que se autorizam muitas vezes a decidir sobre "interesses" de cujos lugares de fala estão geralmente distantes.
A ideologia do mérito ou da conquista pelo percurso pessoal que tais elites sustentam, secretamente ou não, como justificativa para terem se tornado celebridades da opinião esclarecida, não é em nada diferente das explicações simplistas que alguns empresários bem sucedidos dão para sustentar que merecem o que têm por terem construído com o trabalho próprio. Os privilégios de classe e de raça ficam escondidos sob o fascínio da aura paternalista, alimentada e reificada pelos recursos retóricos e midiáticos justamente para que a falsidade deste poder de pai não seja desvelada.
(E muitas vezes a psicanálise é acionada para dizer que não há o que fazer quanto a isso, instituindo tratar-se de algo estrutural.)
CCXXX
"Numa sociedade supremacista branca e patriarcal, mulheres brancas, mulheres negras, homens negros, pessoas transexuais, lésbicas, gays podem falar do mesmo modo que homens brancos cis heterossexuais? Existe o mesmo espaço e legitimidade? Quando existe algum espaço para falar, por exemplo, para uma travesti negra, é permitido que ela fale sobre Economia, Astrofísica, ou só é permitido que fale sobre temas referentes ao fato de ser uma travesti negra? Saberes construídos fora do espaço acadêmico são considerados saberes?" (RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento/Justificando, 2017, p. 79).
A propósito: quantas são as psicanalistas negras? Quantos são os psicanalistas negros? E psicanalistas transexuais, onde estão?
Teriam estes números algo a dizer sobre a relação entre privilegio branco heteronormativo e psicanálise?
Convidar psicanalistas homens-brancos-cis-heterossexuais para falar da relação entre psicanálise e questões de gênero ou chamá-los para explicar as relações entre psicanálise e identidades não é um ato politicamente neutro.
Em nome de seus universais, via de regra, a psicanálise se coloca num lugar acima ou fora das determinações sociais. Estas, quando muito, somam quase que como um coadjuvante incômodo nas questões "puramente" clínicas dos consultórios particulares que recebem sujeitos abstratos e deixam do lado de fora suas marcas sociais. Não percebem muitos dos psicanalistas o quanto que esta posição só faz afirmar a sociedade existente.
O inconsciente trans-histórico é sem corpo, mas a psicanálise que se arroga trans-histórica não é: tem corpo de homem-branco-cis-hétero.
CCXXIX
"O que se pode dizer de insultos, provocações, palavras da moda e palavras estrangeiras também se pode dizer de palavras engraçadas, slogans, palavras-chave e palavras de amor. E o que todas elas têm em comum, embora sejam tão diferentes, é o fato de estarem a serviço de um afeto, e justamente sua imprecisão e inobjetividade no uso lhes permitem suplantar campos de palavras mais certeiras, mais objetivas e mais corretas." (MUSIL, R. Sobre a estupidez. Belo Horizonte: Âyiné, 2016, p. 42).
Neste pequeno e esclarecedor fragmento Robert Musil faz uma lista de circunstâncias em que a palavra serve ao afeto, isto é - podemos dizer - está ligada mais ao corpo do que ao sentido. Ainda que um insulto ou uma palavra amorosa ou uma gíria interjetiva deixe confuso seu significado objetivo, o dizer que sustenta tem entranhas mais do que intelectividade e se satisfaz plenamente quando encontra seu destino: o corpo do outro.
Um poema não diz nada ou muito pouco se não for ouvido no corpo. O poema só cumpre sua finalidade se funcionar como texto-mimese que se pode transmitir de corpo a corpo.
Nessas palavras listadas por Musil há algo de telepático posto invocarem um suposto saber que, embora inobjetivo, ainda assim é compartilhável: mesmo que eu não possa esgotar ou precisar a definição possível de sua significação, quando as digo eu sei que o outro sabe o que eu quis dizer e eu sei que o outro sabe que eu sei que ele sabe. Naquilo que se deixa atravessar por algo do poético não é jamais o significado ataráxico o que se transmite, mas a própria potência encarnada da significação, o que eu chamaria de significância, e que em Musil aparece como Bedeutende (traduzido por Simone Pereira Gonçalves para a edição brasileira por significativo):
"O significativo associa a verdade, que podemos perceber nele, às características do sentimento contidas em nossa confiança em algo novo, numa compreensão, numa decisão, numa persistência revigorada em alguma coisa que tenha teor psíquico e espiritual e 'exija' certo comportamento de nós ou dos outros. Assim pode-se dizer, e é o mais importante em relação à estupidez, que o significativo é acessível pelo lado racional e afetivo da crítica. O significativo é também o contrário da estupidez e da rudeza; e a desproporção geral na qual atualmente os afetos esmagam a razão, em vez de inspirá-la, dilui o conceito de significado." (idem, p. 60-1).
Musil - que pronunciou duas vezes este discurso sobre a estupidez em 2 e 17 de março de 1937 em Viena - parece colocar a estupidez ascendente em sua época - lembremos que em 12 de março do ano seguinte dar-se-ia a anexação político-militar da Áustria pela Alemanha nazista - como a morte da significância; diante da desproporção dos afetos a palavra encarnada deixa de ser portadora de significância para ser voz de comando. Sem poesia a palavra encarnada é desprovida de razão; sem razão a palavra-mimese perde o espírito, torna-se bramido, vociferação.
Eis o argumento de Musil:
"Ela [a estupidez] pode ter em si todas as características ruins de um intelecto fraco, mas tem também todas que são causadas por qualquer afetividade em desequilíbrio, disforme, fraca, com mobilidade irregular, em suma, toda aquela que se desvia da saúde. Como não existem afetividades 'padronizadas', nesse desvio se expressa, mais precisamente, uma interação insuficiente entre as parcialidades do sentimento e um intelecto que não basta para refreá-las." (Idem, p. 54-5).
E mais adiante temos o seguinte:
"[...] as condições de vida atuais são assim tão pouco claras, tão difíceis, tão confusas que as estupidezes ocasionais do indivíduo logo podem tornar-se facilmente uma estupidez constitucional coletiva. Isso nos leva a considerar, para além do âmbito das características pessoais, a ideia de uma sociedade afetada por defeitos mentais. Não se pode transferir para as sociedades
o que acontece na realidade psicológica do indivíduo, tampouco doenças psíquicas e estupidez, mas hoje pode-se falar diversas vezes de uma 'imitação social de defeitos psíquicos'. Os exemplos a esse respeito são bem gritantes." (Idem, p. 58).
Uma sociedade adoece quando abre mão da razão. (Lembremos do desenho de Francisco de Goya, de 1799, da série Caprichos: "El sueño de la razón produce montruos"). A palavra em função do afeto em desequilíbrio e sem o intelecto para refreá-lo, já não carrega a significância necessária à escuta do corpo. Regride da palavra-mimese ao sinal-reflexo; seu encontro com o corpo não é mediado pela surpresa, mas por ele atravessa como a descarga convulsiva dos haters. Desprovida da cumplicidade telepática a estupidez é imediata repetição de aferências cegas e eferências ruidosas no tecido nervoso que atualmente chamamos de rede social.
Entre afetos e o intelecto há uma dialética:
"A estupidez 'inteligente', ao contrário, tem muito mais o espírito e a afetividade - entenda-se com isso não um simples punhado de sentimentos - como adversários do que o intelecto. Visto que pensamentos e sentimentos se movem juntos, mas também porque neles se exprime a mesma pessoa, alguns conceitos como estreiteza, amplitude, agilidade, simplicidade e fidelidade podem ser aplicados tanto ao pensamento quanto ao sentimento. Se a relação resultante disso não estiver ainda muito clara, ela basta, no entanto, para poder afirmar que o intelecto também faz parte da afetividade e que nossos sentimentos não estão desvinculados da inteligência e da estupidez." (Idem, p. 59).
A estupidez pode advir da afetividade em desequilíbrio e abrir mão da razão e se transformar em odienta, mas pode, ao contrário, aferrar-se ao intelecto e tomar a afetividade e o espírito como adversários. Neste caso, a estupidez se manifesta pelo cinismo - a mais grave de suas formas. Lembremos como Adorno descreveu o tipo manipulador nos estudos sobre personalidade autoritária:
"essa síndrome, potencialmente a mais perigosa, é definida pela estereotipia extrema: noções rígidas tornam-se fins e não meios e o mundo inteiro é dividido em campos administrativos, vazios e esquemáticos. Há uma quase completa falta de investimento objetal e de laços afetivos. Se a síndrome do 'Alucinado' tinha algo de paranoico, a 'Manipuladora' tem algo de esquizofrênico. No entanto, a ruptura entre o mundo interno e o externo, nesse caso, não resulta em algo como uma 'introversão' comum, mas, pelo contrário: em uma espécie de super-realismo compulsivo que trata tudo e todos como um objeto a ser utilizado, manipulado, apreendido pelos próprios padrões teóricos e práticos do sujeito." (ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019, p. 561).
O estúpido "inteligente" não dá espaços à significância, pois a palavra para ele é reduzida a instrumento de persuasão. Em sua dimensão instrumental a palavra não pode mais tocar o corpo como um dizer. Ela nem mesmo considera o corpo, pois visa substituí-lo pelo discurso. Ao fazer do discurso um corpo a estupidez "inteligente" promove o investimento de estereotipias e impede que a experiência - saber que não é sem corpo - possa interrogá-las. O cínico pode mudar de verdade diariamente, pois sem o lastro corporal do afeto a verdade pode ser derivada de qualquer jogo lógico de premissas falsas.
"Ela [a estupidez] atinge até a mais alta intelectualidade; pois, se a autêntica estupidez é uma artista silenciosa, a inteligente é a que colabora com a agitação da vida intelectual, mas de preferência em sua instabilidade e esterilidade. Há muitos anos escrevi sobre ela: 'Não há nenhum pensamento importante que a estupidez não saiba aplicar, ela se move em todas as direções e pode investir todas as roupas da verdade. A verdade, ao contrário, tem apenas uma roupa em qualquer ocasião, um só caminho, e sempre está em desvantagem.'" (MUSIL, op.cit., p. 55).
Embora um gênio do cálculo a estupidez do cínico se revela como analfabetismo poético - sua incapacidade radical de transitar pela significância.
O estúpido odiento de nossos dias odeia a arte e a ciência como odeia a liberdade do pensamento; seu pensar teleguiado considera o gritar na porta do hospital uma façanha tão catártica quanto a comemoração ao final da copa do mundo - o uniforme verde-amarelo é a senha desta equivalência: o que conta é sempre a produção da expressão atônita da "torcida" adversária; a angústia do outro é o modo de livrar-se ilusoriamente da sua própria (é o seu mecanismo perverso), daí a necessidade da suspensão de qualquer dimensão ética e a interdição de qualquer identificação com o outro; daí a necessidade da repetição compulsiva do mesmo mecanismo e da eterna caça de um novo adversário contra o qual vociferar. O estúpido cínico odeia a verdade e a poesia lhe parece inútil. O cínico se livra da angústia menos pelo ódio do que pela cisão: precisa menos do inimigo do que de um holofote diante do qual possa sustentar o contrário do que, entre quatro paredes, vive e pensa. Da angústia o cínico consegue alguma distância na medida em que conquistar seguidores, mais do que adversários; aliás, se alimenta os segundos é para melhor atrair os primeiros.
Quanto a nós: de qual estupidez participamos? Da odienta ou da cínica? O que fazemos para não deixar morrer em nós a significância, contrária à estupidez e à rudeza? E quando adormece em nós a razão e o monstro do ódio nos escapa sem ser por ela domado? E quando o conforto burguês - inimigo político do intelectual - nos desafeta e os males do mundo nos parecem distantes e erguemos o muro do "não tenho nada com isso"? Entre o rinoceronte do ódio e a feliz apatia destilamos nossa estupidez cotidiana.
Como, em tempos como o nosso, alimentar as palavras-mimese que tocam o corpo, acendem a experiência e acordam a razão? Como fazer falar a angústia pelo modo telepático da arte, da poesia? Como fazer da experiência um alimento da razão? E como fazer da razão o destino do afeto em desequilíbrio?
Na significância, lá onde ela estiver, algo da verdade sobrevive à estupidez, como a flor de Drummond:
"A flor e a náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio."
(ANDRADE, C.D. (1945). A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 15-7).
CCXXVIII
Os sujeitos em análise, muitas vezes, encontram em seus sintomas algo da mimese de formas de violência sofrida por gerações anteriores. O real desta violência, carente de elaboração, de voz, portanto, re-pete-se atravessando gerações, pede novamente o trabalho, o esforço da simbolização. Uma violência é sempre uma cena de gozo, uma vez que força o encontro de um corpo com algo do real: um trauma, a escrita de um enigma no corpo. É surpreendente que este enigma se transmita, como uma dívida familiar, um ônus histórico, como as maldições na tragédia grega. Do Sófocles do Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, deveríamos ficar mais com a estrutura de transmissão da violência pelas três gerações do que com a sustentação do patriarcalismo heteronormativo que Freud faz derivar da proibição do incesto.
O que assim é vivido por um sujeito como um enigma que se repete feito uma maldição o coloca diante de um destino a ser dado a ele: carregá-lo como um fardo que não se deixa dizer ou transformá-lo em um dizer possível. Nenhuma tentativa de dar um sentido ou uma resposta a este enigma equivale à assimilação do mesmo à condição desejante.
"O que hás herdado de teus pais,
Adquire, para que o possuas,
O que não se usa, um fardo é, nada mais,
Pode o momento usar tão só criações suas."
(GOETHE, J.W. Fausto I. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 77. [Noite, versos 682-5.])
A responsabilidade pelas marcas de violência herdadas implica tirá-las do silêncio do sintoma, no qual, mudas, elas gritam.
O trauma, como um passado necessário, é instância alheia, herdada, mas não possuída. Porém ele sai desta condição de repetição necessária no instante em que é adquirido, instante que faz dele criação sua. Este momento de acolhimento e subjetivação do grito mudo é o da sua transformação em desejo e, por decorrência, em voz. Contingência pela qual a herança se faz sujeito e o sujeito se liberta do passado como repetição necessária; contingência pela qual passado e presente se encontram e se transformam no dizer possível. E neste dizer o socorro, a derrota, a humilhação, o desespero, a indignação, o ressentimento, a fúria, a injustiça e outros tantos afetos que jaziam mudos na estreita cela do trauma ganham a força desveladora da expressão.
Como ato que é este dizer faz uma dobra temporal na qual a história interrompida em algum momento e lugar pode retomar um curso possível, algum futuro ao invés do congelamento eternizante e insistente do trauma. Se o trauma faz do silêncio uma ruptura da história, o dizer é a ruptura do trauma para extrair dele, de sua imobilidade temporal que rateia o átimo de sua morte, uma história potencial.
Uma clínica do trauma implica forçar a transformação de suas marcas de violento silenciamento objetificante na expressão prenhe de potencialidade histórica que em psicanálise chamamos desejo. Usar as marcas não somente como a tatuagem de uma data mal dita (o que talvez nunca possam ou devam deixar de ser), mas também como estrelas a desenhar um destino.
SETEMBRO 2020
CCXXVII
Uma menina passou a infância sendo estuprada pelo tio. Engravidou aos 10 anos de idade. Uma ultra-conservadora descobriu e publicou nas redes sociais a identidade da menina. Em frente da clínica onde foi feito o aborto da mesma um grupo de ultra-conservadores vociferaram que a menina e o médico são assassinos.
O terror se realizou de maneira explícita e crua quando tais ultra-conservadores aliaram-se ao tio no exercício da violência contra a menina.
Em 2019 registrou-se a média de 180 estupros por dia, o recorde de registros com um aumento de 4,1% em relação ao ano anterior. Os dados ainda acrescentaram: 81,8% do sexo feminino; 53,8% tinham até 13 anos; 50,9% negras e 48,5% brancas; 4 meninas de até 13 anos estupradas por hora (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2019. Fórum brasileiro de Segurança Pública, ano 13, 2019, p. 9).
Se levarmos em conta a gravidade do tema podemos supor uma subnotificação considerável de casos. Ou seja: se há tabu, não é mesmo do incesto, mas de falar dele. Como não dizer, mediante estes números e do quanto ficam esquecidos, que as teorias estruturalistas de proibição do incesto parecem servir como blindagem da sociedade heteropatricarcal? E o que dizer, a quatro meninas por hora, sobre as abstrações linguísticas do complexo de Édipo? A metáfora paterna é mesmo uma metáfora, mas da dominação, se pudermos lê-la em sua função ideológica de transformar a dominação masculina em trans-histórica e esvaziada de corpo.
"Pai" é só um significante. Assim como "tio", muitas vezes. "É só um significante" é um argumento fácil entre psicanalistas lacanianos que parecem ter perdido algo da dimensão que o trauma adquire na clínica psicanalítica. Um país no qual 4 meninas de até 13 anos é estuprada por hora é um país de pessoas traumatizadas. É um país traumatizado.
Enquanto se estruturaliza que a diferença sexual implica tomar o feminino como um fazer-se objeto para um homem, como esperar da psicanálise a crítica ao patriarcalismo?
A verdade da violência cotidiana que a dominação sexual esconde sob falsas naturalizações do tipo "isto é coisa de menino e aquilo é coisa de menina" retorna no real da barbárie que as estatísticas nos mostram sem querermos ver.
CCXXVI
"Tais sujeitos vociferantes já se fazem presentes através de algumas demandas de tratamento, os quais mantêm, muitas vezes, uma condição de esvaziamento de si mesmos, e ainda com pouca tolerância ao diálogo, aliada a uma expectativa de melhoras rápidas praticamente milagrosas, em que não precisem falar muito. A depender da habilidade e da disponibilidade do psicanalista, poderão se manter um tempo além do que tinham previsto. Isso porque os sintomas, principalmente os que furam o discurso da estupidez e o gozo das vociferações, não cedem com facilidade. Quando não são sintomas portados pelos próprios sujeitos, nós os encontramos através dos filhos, exercendo um tal tipo de mal-estar familiar que os obriga à procura de um profissional que trata pela palavra. Mesmo que o paciente se apresente medicado, o problema se mantém, causando duplicação do desconforto, Já que nem a estupidez, nem as vociferações, como mostrei antes, valoriza a fala, tampouco suas possibilidades terapêuticas." (DIAS, M.M. O discurso da estupidez. São Paulo: Iluminuras, 2020, p. 89-90)
São os sintomas que furam o discurso da estupidez e o gozo das vociferações. Neste contexto o sintoma - resistência do corpo dominado - não é aquilo que resiste à dominação da estupidez? De modo inverso, tais discurso e gozo não visariam calar os sintomas? Há uma dialética entre a voz do sintoma e a vociferação?
Recordo aqui um fragmento chamado Interesse pelo corpo no qual Horkheimer e Adorno (1991) apoiam na divisão do trabalho a origem da mutilação do corpo:
"A divisão do trabalho, onde o desfrute foi para um lado e o trabalho para o outro, proscreveu a força bruta. Quanto menos os senhores podiam dispensar o trabalho dos outros, mais desprezível ele se tornava a seus olhos. Assim como o escravo, também o trabalho foi estigmatizado. [...] O corpo explorado devia representar para os inferiores o que é mau e o espírito, para o qual os outros tinham o ócio necessário, devia representar o sumo bem. Esse processo possibilitou à Europa realizar suas mais sublimes criações culturais, mas o pressentimento do logro, que desde o início foi se propagando, reforçava ao mesmo tempo, com o controle sobre o corpo, essa obscena maldade que é o amor-ódio pelo corpo, que permeia a mentalidade das massas ao longo dos séculos e que encontrou na linguagem de Lutero sua expressão autêntica. Na relação do indivíduo com o corpo, o seu e o de outrem, a irracionalidade e a injustiça da dominação reaparecem como crueldade, que está tão afastada de uma relação compreensiva e de uma reflexão feliz, quanto a dominação relativamente à liberdade." (HORKHEIMER, M. e ADORNO, T.W. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991, p. 216-7)
Na relação do indivíduo com o corpo, a irracionalidade e a injustiça da dominação. De um lado, a vociferação como crueldade; de outro, o sintoma como voz do corpo dominado. Da história da divisão do trabalho teríamos herdado - internalizado e sedimentado de diferentes modos em cada um de nós em função de nossas próprias histórias - uma cisão entre a vociferação dominadora e o grito sintomático do corpo dominado? Até que ponto a nossa subjetividade não é objetivamente constituída como um aluvião, mimese mesmo, dessa história de divisão e dominação material do trabalho (e aqui é importante que se considere como parte desta dominação o machismo, o racismo e a heteronormatividade)?
Quando os sujeitos vociferantes nos chegam assentados de modo totalitário em suas verdades estúpidas - como se tornam estúpidas quaisquer verdades que se totalizam - talvez sejam inanalisáveis, posto que se ensurdecem a qualquer possibilidade de tomar sintomas como gritos de socorro, pois, o que visam, em última instância, é o mais-calar-ainda o corpo, isto é, mais dominação.
Porém, pode haver sujeitos vociferantes nos quais o grito do corpo ainda se faça ouvir, mesmo que este grito tenha que aparecer num familiar. Nesses casos o manejo transferencial pode produzir o inconsciente como contingência, isto é, uma surpresa capaz de colocar no lugar da verdade um saber possível sobre este corpo, sem o que as paixões vociferantes jamais cederão da condição de imperativo dada a uma estupidez a ser tratada.
Enfim, não poderíamos levar adiante as possibilidades do conceito de vociferação pelo caminho de uma dialética entre a vociferação e o sintoma como voz silenciada?
Afinal, lembremos o que disse Adorno retificando a formulação de que não seria possível escrever um poema depois de Auschwitz: "o sofrimento perenenizante tem tanto direito à expressão quanto o martirizado tem de berrar; por isso, é bem provável que tenha sido falso afirmar que depois de Auschwitz não é mais possível escrever nenhum poema." (ADORNO, T.W. (1970). Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 300); e consideremos a defesa que o próprio Paul Celan (a quem Adorno se refere em sua retificação) fez do poema em seu O meridiano:
"Mas o poema fala! Mantém viva a memória das suas datas, mas - fala. É claro que fala sempre e apenas em causa própria, a mais própria que se possa imaginar.
Mas penso - e esta ideia dificilmente vos poderá surpreender agora -, penso que desde sempre uma das esperanças do poema é precisamente a de, deste modo, falar também em causa alheia - não, esta palavra já a não posso usar agora -, é a de, deste modo, falar em nome de um Outro, quem sabe se em nome de um radicalmente Outro.
Este 'quem sabe' - e vejo-me chegar aí agora - é a única coisa que, por mim, aqui e agora, ainda posso acrescentar às velhas esperanças.
Talvez, é o que tenho de dizer a mim próprio agora, talvez se possa mesmo imaginar um encontro deste 'radicalmente Outro' - sirvo-me aqui de um advérbio corrente - com um 'outro' não muito distante, mesmo muito próximo." (CELAN, P. (1960). O meridiano. In: Arte poética. Lisboa: Cotovia, 1996, p. 55)
(Em outros termos, estou propondo que o grito de socorro do dominado não possa ser reduzido imediatamente à vociferação, pois é de outra coisa que se trata quando se recebe a herança de gerações de violentados.
Dou dois exemplos:
Quando uma mulher denuncia "seu porco", não está respondendo em espelho ao "sua vadia" que sofreu dele, pois isto nos levaria a desconsiderar séculos de dominação machista. O "sua vadia" é sim vociferação, mas o "denunciei seu porco" precisaria ser ouvido de outro lugar.
Do mesmo modo, quando um supremacista branco brada o white power, está no campo da vociferação, enquanto que um negro ao gritar black lives matter, pelo direito à expressão do sofrimento perenizante, merece sua voz posta em um estatuto que o diferencie da vociferação.)
Por fim, assim como O Rinoceronte, de Eugene Ionesco, metaforizou terrível e maravilhosamente a vociferação, como nos mostrou Dias, convido o XII poema da série Alturas de Macchu Picchu, do Canto Geral de Pablo Neruda, para metaforizar voz do sintoma:
"Sobe para nascer comigo, irmão.
Dá-me a tua mão aí da profunda
zona de teu pudor disseminado.
Não voltarás do fundo das rochas.
Não voltarás do tempo subterrâneo.
Não voltará a tua voz endurecida.
Não voltarão os teus olhos verrumados.
Olha-me do fundo da terra,
lavrador, tecelão, pastor calado:
domador de guanacos tutelares:
pedreiro do andaime dasafiado:
aguadeiro das lágrimas andinas:
joalheiro dos dedos machucados:
agricultor tremulando na semente:
oleiro em tua argila derramado:
trazei à taça desta nova vida
as vossas velhas dores enterradas.
Mostrai-me o vosso sangue e vosso lanho,
dizei-me: aqui fui castigado,
porque a joia não brilhou ou a terra
não entregou a tempo a pedra, o grão:
assinalai-me a pedra em que caístes
e a madeira em que vos crucificaram,
acendei-me as velhas pederneiras,
as velhas lâmpadas, os látegos pregados
às chagas, através dos séculos
e os machados de brilho ensanguentado.
Venho falar por vossa boca morta.
Através da terra juntai todos
os silenciosos lábios derramados
e lá do fundo falai comigo por toda esta longa noite,
como se eu estivesse ancorado convosco,
contai-me tudo, cadeia por cadeia,
elo por elo, passo por passo,
afiai as facas que escondestes,
colocai-as no meu peito, em minha mão,
como um rio de raios amarelos,
como um rio de tigres enterrados,
e deixai-me chorar, horas, dias, anos,
idades cegas, séculos estelares.
Daí-me o silêncio, a água, a esperança.
Daí-me a luta, o ferro, os vulcões.
Apegai a mim os corpos como ímas.
Afluí a minhas veias e a minha boca.
Falai por minhas palavras e por meu sangue."
(NERUDA, P. Canto Geral. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 61-3)
CCXXV
Um primeiro ponto que destaco no recente trabalho de Mauro Mendes Dias intitulado O discurso da estupidez é a diferenciação, em seu esforço de formalização do referido discurso, entre as versões discurso do mestre e discurso do capitalista para a estupidez.
Em sua equivalência com o discurso do mestre o discurso da estupidez por ele formulado tem a crença no lugar da verdade e a barata como líder produzido pelo agente estupidez que aborda o outro numa condição vociferante.
Se levarmos em conta o lugar de recalque da verdade nos quatro discursos originais como lugar que a produção não alcança, vamos entender que não há sobreposição de sentido entre a crença e a barata produzida/eleita. Muitos de nós temos encontrado pessoas que manifestaram de algum modo este desencontro entre algo da crença/promessa e aquilo que efetivamente se realizou com a barata (aliás, vale pensar o quanto desse desencontro entre promessa e realização esteve presente também no messianismo das esquerdas e seus populistas, também igualmente produzidos). Podemos apostar neste desencontro como abertura para estas pessoas interrogarem os significantes mestres agentes da estupidez aos quais se alienaram como sujeitos.
Ao considerarmos, porém, como propõe Dias, a formulação do discurso da estupidez com a mutação equivalente à que Lacan faz do discurso do mestre para o do capitalista, temos o seguinte:
"Como uma leitura possível encontramos a crença agindo de forma a que a estupidez se torne condição de verdade, ao mesmo tempo em que determina sobre o outro um efeito de vociferação, o qual é responsável pela produção de baratas, que se ligarão decisivamente com a crença que tem a estupidez como verdade."
E conclui o autor:
"Deixo para o leitor estabelecer a prova de realidade dessa escrita possível, praticamente, no meu entender, intratável quando funciona assim. Pode-se perguntar: intratável? Sim, existe o intratável, tanto quanto o impossível." (DIAS, M.M. O discurso da estupidez. São Paulo: Iluminuras, 2020, p. 89)
Quando, numa condição de negação da castração, o discurso do capitalista se fecha num ciclo de repetição, a ligação entre as baratas e a crença se fecham numa sobreposição de sentido que, por ser tão raso e ilusório, só pode se cristalizar sobre a estupidez no lugar da verdade. Neste caso, porém, o sujeito se objetifica e abre mão de sua voz, ou seja, de sua condição de escolher e decidir. Vociferantes, baratas, crença e estupidez sedimentam-se num todo odiento, na manada de rinocerontes, uma máquina de destruição de tudo que possa recolocar a verdade numa condição não toda e repor a barra entre significante e significado.
A diferença entre o discurso da estupidez mestre e o discurso da estupidez do capitalista, como foram formulados por Dias, permite-nos pensar a analisabilidade dos sujeitos vociferantes em função do tratamento que dão à verdade, como passível ou não de acesso e de interrogação.
Ocorre-me se aqui não seria interessante correlacionar os discursos da estupidez/mestre e da estupidez/capitalista respectivamente com as síndromes/tipos ressentimento superficial e convencional de um lado e as síndromes/tipos autoritária, durão, alucinado e manipulador de outro lado, lembrando que essas síndromes/tipos, descritas por Adorno (ADORNO, T.W. (1950). Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019), são as encontradas entre os altos pontuadores da escala F (de fascismo) nos estudos sobre a personalidade autoritária. Sem entrar nos pormenores de tais síndromes, vale lembrar, ao menos, que nas duas primeiras encontra-se ainda um antagonismo entre a experiência e o preconceito, enquanto que nas quatro últimas há uma ruptura entre experiência e preconceito ou a experiência é drasticamente deformada pelo investimento libidinal nos estereótipos e preconceitos. Ou seja, de um lado não há sobreposição de sentidos entre experiência e preconceito e de outro lado há uma falsa sobreposição de sentidos entre eles. Em suma: podemos equivaler, e de que modo, as relações entre preconceito/experiência e produção/verdade das duas formulações do discurso da estupidez?
AGOSTO 2020
CCXXIV
"As maneiras de matar não variam muito. No caso particular dos massacres, corpos sem vida são rapidamente reduzidos a condição de simples esqueletos. Sua morfologia doravante os inscreve no registro de generalidade indiferenciada: simples relíquias de uma dor inexaurível, corporeidades vazias, sem sentido, formas estranhas mergulhadas em estupor. No caso do genocídio de Ruanda - em que um grande número de esqueletos foi preservado em estado visível, quando não exumados -, o surpreendente é a tensão entre a petrificação dos ossos, sua frieza (coolness) estranha, por um lado, e por outro lado seu desejo persistente de produzir sentido, de significar algo.
Nesses pedaços de ossada impassíveis, não parece haver nenhum vestígio de 'ataraxia': nada mais que a rejeição ilusória de uma morte que já ocorreu. Em outros casos, em que a amputação física substitui a morte imediata, cortar os membros abre caminho para a implantação das técnicas de incisão, ablação e excisão que também têm os ossos como seu alvo. Os vestígios dessa cirurgia demiúrgica persistem por um longo tempo, sob a forma de configurações humanas vivas, mas cuja integridade física foi substituída por pedaços, fragmentos, dobras, até mesmo imensas feridas difíceis de fechar. Sua função é manter diante dos olhos da vítima - e das pessoas ao seu redor - o espetáculo mórbido do ocorrido." (MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 60-1)
Na necropolítica o poder sobre o corpo do dominado impõe uma visibilidade. Da frieza dos ossos às feridas perenes; dos pedaços de corpos que, na mutilação política, gritam mais alto sua ausência ao joelho no pescoço da vítima; a redução do dominado ao resto, ao fragmento, faz parte da história da relação íntima que a dominação tem com o terror. A festa pública do esquartejamento, da forca, da guilhotina, do apedrejamento ou do paredão compõe, para os vencidos, uma escrita do trauma que atravessa gerações em busca de elaboração simbólica. É um acontecimento que não se limita à geração massacrada. O massacre é um ritual que oferece ao olhar do pai vencedor os ossos de uma geração de vencidos, mas calcifica a memória no corpo das gerações seguintes.
Ainda que os ossos tenham sido mimeticamente substituídos pela frieza dura das estátuas, sabemos o quanto dos ossos e músculos de trabalhadores explorados estão materializados (da extração do ferro à fundição) nos trilhos de bonde que constituem os ossos da estátua paulistana do bandeirante Borba Gato.
E se, como nos atenta Mbembe, há na petrificação dos ossos um "desejo persistente de produzir sentido, de significar algo", é porque estes monumentos da barbárie constelam um portal pelo qual os mais longínquos e distintos momentos históricos se tocam no ponto comum em que o desejo de um outro mundo foi interrompido, recolhido, sufocado.
É na condição de medusificação do desejo que o silêncio das estátuas sempre se faz estranhamente ecoar. Se na imagem da pedra talhada há homenagem a um acontecimento da história, no seu silêncio encontramos, da mesma história, a interrupção.
Nos ossos do massacre, o silêncio. E em cada um de nós, monumentos à espera de voz.
CCXXIII
"Esta nova era é o da mobilidade global. Uma de suas principais características é que as operações militares e o exercício do direito de matar já não constituem o monopólio exclusivo dos Estados, e o 'exército regular' já não é o único meio de executar essas funções. A afirmação de uma autoridade suprema em um determinado espaço político não se dá facilmente. Em vez disso, emerge um mosaico de direitos de governar incompletos e sobrepostos, disfarçados emaranhados, nos quais sobejam diferentes instâncias jurídicas de facto geograficamente entrelaçadas, e nas quais abundam fidelidades plurais, suseranias assimétricas e enclaves. Nessa organização heterônima de direitos territoriais e reivindicações, faz pouco sentido insistir na distinção entre os campos políticos 'interno' e 'externo', separados por limites claramente demarcados." (MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 52-3)
As milícias há tempos agem no Brasil nos territórios nos quais o Estado se faz pouco presente. No entanto, neste novo governo vemos cada vez mais a possibilidade das milícias assumirem oficiosamente os objetivos necropolíticos do Estado.
Da guerra híbrida que estamos atravessando - como dão provas claras hoje o aparecimento das relações secretas entre a Lava Jato e o Departamento de Justiça dos EUA - à internacionalização da sofisticada irmandade de criminosos em que se transformou o Primeiro Comando da Capital (conforme podemos ler em interessante matéria de Naiara Galarraga Gortázar e Gil Alessi publicada no El Pais em 12/06/20: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-12/pcc-a-irmandade-dos-criminosos.html), passando pelo aumento generalizado da violência doméstica, do feminicídio ["Número de casos de feminicídio no Brasil cresce 22% durante a pandemia": vide https://www.google.com.br/amp/s/www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/06/01/numero-de-casos-de-feminicidio-no-brasil-cresce-22-durante-a-pandemia.amp.htm], pelo crescimento da matança policial na periferia e favelas ["O número de pessoas mortas por policiais militares dentro e fora de serviço no estado de São Paulo de janeiro a maio de 2020 é o maior de toda a série histórica iniciada em 2001: 442 vítimas." Vide: https://www.google.com.br/amp/s/g1.globo.com/google/amp/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/14/numero-de-mortos-pela-pm-em-2020-e-recorde-em-sp-policiais-dos-batalhoes-da-regiao-metropolitana-mataram-70percent-mais.ghtml], pelo apoio tácito à nova corrida do ouro na Amazônia [vide https://www.escolhas.org/wp-content/uploads/2020/05/TD_04_GARIMPO_A-NOVA-CORRIDA-DO-OURO-NA-AMAZONIA_maio_2020.pdf], às invasões de reservas indígenas e à degradação da floresta amazônica ["Desmatamento da Amazônia em abril de 2020 é o maior em dez anos", vide: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/19/desmatamento-da-amazonia-em-abril-de-2020-e-o-maior-em-dez-anos], e ao armamentismo ["Venda de armas de fogo no Brasil cresce quase 200% no 1º semestre de 2020": vide: https://www.google.com.br/amp/s/www.otempo.com.br/mobile/economia/venda-de-armas-de-fogo-no-brasil-cresce-quase-200-no-1-semestre-de-2020-1.2359959%3famp],
a ideia de soberania no Brasil transformou-se num pastiche. O processo de aceleração da distribuição capilar dos mecanismos necropolíticos tomaram o Brasil de modo possivelmente parecido com os da lógica colonizadora, na medida em que o Estado se recolhe propositalmente de regiões específicas para lá deixar suas "máquinas de guerra" (DELEUZE e GUATTARI apud MBEMBE, A. Idem).
As terríveis marcas de nossa sangrenta era colonial, que tanto persistem em nosso tecido social cotidiano na forma e nos efeitos do racismo estrutural, atualizam-se e se modernizam a cada dia sob os olhares sedentos e espoliadores dos novos donatários, membros da supremacia branca nacional e internacional.
Diante da violência que se torna explícita e institucionalmente consentida a ideologia se torna menos necessária. Quando a dominação se assenta declaradamente no massacre e no genocídio, os sistemas sofisticados de inculcar a disciplina e controlar os corpos como se fossem "leis naturais evidentes" (Marx) regridem aos mais rasos argumentos de autoridade, quando não são sustentados literalmente "a ferro e fogo".
Diante dos limites do neoliberalismo o capitalismo está respondendo com sintomas próprios da acumulação primitiva.
Retornemos ao que entendo ser a principal tese de Achille Mbembe em seu ensaio Necropolítica:
"Se o poder ainda depende de um controle esteiro sobre os corpos (ou de sua concentração em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com a inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo 'massacre'". (p. 59)
O capitalismo nunca deixou de mimetizar o terror tantas vezes negado de suas origens. Não é qualquer coisa, neste sentido, que os discursos mais chucros de sustentação do capitalismo apoiem-se nos terrores do socialismo e do comunismo: está pressuposta aí a falsa premissa que coloca em equivalência 'terrorismo = anticapitalismo' e a contraditória decorrente 'capitalismo = antiterrorismo'.
Com a elevação de todos os indicadores da necropolítica e da degradação do meio ambiente nacionais temos que nos haver com o fato de que o bolsonarismo integra o que Mbembe chamou de novas tecnologias de destruição, a serviço de uma elite composta de brutos colonizados fiéis e de desumanos colonizadores sem limites.
Que subjetividades teremos para estes novos tempos? Possivelmente a polarização entre, de um lado, aqueles que sustentam uma representação por meio de imagens sem corpo, e, de outro lado, aqueles que são reduzidos a um corpo sem representação. Narcisistas e angustiados. O tédio mimado da empáfia e a arrogância sem furos de um lado e a indignação distópica e o conformismo ressentido de outro lado. O cinismo neoliberal da direita e a esperança pueril da esquerda de minha geração vão mudar de caras.
CCXXII
Ao transformar em estrutural o patriarcalismo histórico de longa duração, ainda que com uma roupagem teórica sofisticada, a psicanálise contribui com a mistificação e a perenização da história dos vencedores, pois todos sabemos que não mudar o atual estado de coisas interessa fundamentalmente ao homem branco cisgênero (aquele cujo pinto serviu de base ao falo que a psicanálise lacaniana precisa a todo momento dizer que é trans-histórico, mas lembrar que não é o pinto, embora coloque do lado dito Homem e não do lado dito Mulher das fórmulas da sexuação).
CCXXI
Steve Bannon, Aleksandr Dugin e Olavo de Carvalho, os cruzados do tradicionalismo que sustentam o material ideológico da revolução cultural que estamos presenciando. Quando o terreno social fica fértil ao fascismo brotam à luz do dia ideias antes recolhidas em grupos que acharíamos típicos da Deep Web. A Ku Klux Klan aí está, marchando com um número de adeptos que jamais imaginaríamos.
O que vemos acontecer no Brasil como implosão das instituições de educação e cultura mimetiza nossas mais recentes tragédias ambientais: a lama invadindo o campo, o rio e a cidade; o fogo comendo o museu e a floresta; o óleo manchando águas e praias; o vírus espalhando-se no ar; nuvens de gafanhotos chegando nas plantações; ciclone varrendo litorais. Não se pode mais facilmente sustentar a fronteira entre a natureza/estrutura e a história: o que de histórico há na natureza/estrutura e o que de naturalização vem pesar sobre a história se torna nítido nas brechas que uma revolução produz na objetividade.
As referências bíblicas às quais nos remetem essas tragédias parecem servir como luvas às crenças de uma apocalíptica Era Sombria que estaríamos atravessando para retornar à Era de Ouro. O eterno retorno de Blanqui é associado à teodiceia que coloca o homem branco como sumo sacerdote à espera no horizonte, às costas do anjo da História. A dialética do esclarecimento revela de que modo drástico o desencantamento do mundo leva de volta ao mito.
Na mesma medida em que grande parte da esquerda perdeu a semente messiânica latente em sua crença num mundo melhor e, com ela, a fé necessária para a sustentação da revolução, a ultra-direita trouxe de modo tão explícito quanto tosco e obsceno seu messianismo racista, machista, heteronormativo, bélico e patriarcal.
Diante da crise do neoliberalismo o capitalismo reage duramente deixando subir ao poder líderes orientados por ideologias inspiradas em seitas medievais. E o caldo de cultura para isso deveríamos buscar na exacerbação da imagem produzida pela sociedade consumista e pela virtualidade e instantaneidade das redes sociais onde, estamos vendo agora claramente pela campanha de boicote ao Facebook, a manifestação do ódio tornou-se satisfação facilitada e catarse coletiva.
Hipnotizados pela imagem não mediada, perdido o lastro corporal, os habitantes deste mundo são invadidos por vivências esvaziadas, sem tempo e distanciamento necessários para transformá-las em experiências fundadas numa verdade que vá além da superfície e do instantâneo.
O corpo é o lugar onde escrevemos as experiências de prazer e dor, isto é: o corpo é fonte da memória. O excesso de imagem, na medida em que se destaca do corpo, é afirmação vazia do existente, sem história. Pelo excesso de imagem fica fácil transformar o passado em outra coisa, assim como fica fácil construir mitos e eternidades sagradas - algo já demonstrado por Leni Riefenstahl. Mas quando damos ouvidos e voz à experiência cotidiana - como bem sabia fazer Paulo Freire - de mutilação gravada no corpo negro que trabalha, séculos de história se revelam presentes no particular.
Neste sentido, por seu valor simbólico, a primeira das tragédias, aquela que anunciou a iminente entrada do Brasil na Era das Sombras, foi o assassinato de Marielle Franco em março de 2018. A placa quebrada com seu nome foi a cruz queimada da KKK nacional a adubar as sementes do fascismo.
O tradicionalismo de Bannon, Dugin e Carvalho, no fim das contas, não é outra coisa senão uma versão mistificada da história dos vencedores a eternizar em dogmas e crenças o que objetivamente se construiu "a ferro e fogo", como demonstrou Marx na chamada acumulação primitiva do capital.
Daqueles que foram soterrados pela lama aos mortos pela polícia nas favelas e periferias, passando pela maioria dos mortos pela covid e pelos índios tocaiados por garimpeiros e expropriados por incêndios criminosos, há uma série de anônimos cuja imagem jamais chegará a ser investida e celebrada como o é a simples postagem do prato de um almoço semanal de um branco de classe média. Nas redes sociais a memória do que acontece fora dela se apaga sob o bombardeamento de postagens. No capitalismo das faces dos vencedores não há lugar para os vencidos nem nos livros.
JULHO 2020
CCXX
Esvaziado politicamente pelo avanço da capilaridade disciplinar e dominado e expropriado em seus gestos enquanto força de trabalho no capitalismo de produção, o corpo é facilmente redutível à imagem, em consonância com a virtualização do capitalismo financeiro e a sedimentação, na forma de subjetividade deformada, do discurso da propaganda que só pode se sustentar na construção falsificada da aparência da mercadoria.
Assim esvaziado e reduzido à aparência, o corpo é fragmentado e esquartejado como se fosse constituído de peças consumíveis: um conjunto de mercadorias que, minimamente ordenadas, fariam algo próximo ao ser humano-produto-ideal.
O que a ficção já revelou criticamente na forma monstruosa da criatura de Frankenstein, um corpo dominado pela ciência e uma identidade perturbada pela redução do espírito ao desumano, ganha nova configuração quando esta ciência se alia à lógica mistificadora da propaganda: a franskensteinização do corpo agora é pop e transformar, intervir, modificar, mexer, encher, tirar, raspar, inserir, esticar, queimar, injetar, etc o corpo é quase condição de pertencimento a muitos grupos sociais.
Muito do que já se fez no corpo na forma da tortura, do experimento médico militar, da recuperação de deformidades e deficiências de guerra, da construção do guerreiro letal, hoje é vendido - e bem caro - como procedimento estético.
A história que se condensa num corpo montado das fotografias de Facebook é a da dominação do corpo disfarçada em índices de poder econômico.
O capitalismo tem o curioso mecanismo de expropriar e transformar em privilégios e virtudes até mesmo suas mais sangrentas crueldades: quanto será que dos experimentos de Josef Mengele está presente nas técnicas hoje utilizadas para marcar os corpos fragmentados da supremacia branca atual? E em que medida as heranças do ministério de Paul Joseph Goebbels estão aí trabalhando ativamente para fabricar desejos orientados pelas imagens que estes corpos oferecem?
CCXIX
O "pollice verso" tão presente nas redes sociais revela o quanto seus debates atuais mimetizam as lutas de gladiadores - espetáculo popular dos antigos romanos, aqueles que se submeteram à política do pão e circo.
O saldo numérico entre os polegares virados para cima e para baixo decide, se não a vida, o valor de mercado da imagem de quem, na arena, e sob vigilância atenta da massa sedenta de sangue, empunhou a palavra hoje reduzida ao gládio.
CCXVIII
O narcisista contemporâneo aparenta não ter furos - isto é, age como se não se angustiasse, como se não tivesse dúvidas ou hesitações, como se não lhe houvessem faltas passíveis de alguma ordem de preenchimento, ainda que compensatório - porque entre ele e a falsa realidade em que cinicamente vive e na qual ao menos finge acreditar não há brechas, distâncias ou divergências. A radical opacidade do desejo em relação ao existente sempre reafirmado é tão bem escondida sob a capa de imagens e ícones de consumo que revela a esta capa e estes índices mesmos sua função defensiva e protetora: as idealizações imaginárias podem ruir como uma barragem diante da menor fissura capaz de deixar vazar algo da castração subjetiva. O esforço maior destes narcisistas é o de remendar toda e qualquer rachadura da couraça imagética opondo suas certezas de modo violento, se preciso for, ao que do outro possa vir na forma de um questionamento da verdade. Esta couraça imagética que, mais do que esconde, nega a verdade de um sujeito castrado, tem a mesma estrutura do que hoje circula como fake news. Aquilo que alimenta a totalidade opressora como fake news e faz realidade e ideologia coincidirem cinicamente, no particular se manifesta, não menos opressiva e cinicamente, como narcisismo. O narcisista de nossos dias espalha fake news ao fazer de si mesmo algo viralizável. A imagem narcisicamente investida é um vírus que contamina os consumidores de certezas virtuais, isto é, pessoas para quem tudo o que não se mostra totalizado deve ser destruído como uma ameaça extremamente perigosa.
A pandemia de coronavírus que estamos atravessando poderia servir para revelar a dimensão mimética da pandemia de imagens falsas que vivemos há anos.
Mas a dimensão doentia do narcisismo atual talvez leve parte significativa do mundo a oferecer ainda mais capas e capas de imagens como negação das angústias do adoecimento, do isolamento social e da presença da morte: a pandemia de imagens como "tratamento" da pandemia do coronavírus; quando poderia ser o contrário: a pandemia do coronavírus como real capaz de furar o vírus-imagem-mercadoria.
CCXVII
"Nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância; sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade" (FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 190).
Uma vez que não conheceu as redes sociais de nossos dias podemos dizer que Foucault já tinha encontrado, em 1975, a raiz panóptica de sua estrutura disciplinar.
O narcisismo diário e infantilizado que leva milhões de usuários à exposição de detalhes dos hábitos cotidianos é cego para o avançado sistema algorítmico capaz de transformar essa gigantesca massa de informações em vigilância panóptica e em administração de valores e comportamentos.
Como escreveu o filósofo, somos menos gregos do que pensamos. Quantos acreditam estar no palco ateniense quando adentram espetacularmente no panóptico de Bentham?
Enquanto isso, da gigantesca arquibancada milhões de seguidores coagulam o olho da torre central que tudo vê.
Em nossos dias o número de visualizações é capaz de moldar corpos os mais aberrantes em quantidades de intervenções cirúrgicas e artificialismos, mas tudo isso escondido sob o discurso da liberdade individual sobre o corpo próprio.
Quantos ridículos alguém tem que passar expondo o corpo a estranhas provações para conseguir acessos, sucessos, fama? O corpo que se submete muitas vezes conta mais que o conteúdo do que se diz: o espetáculo como forma e o empobrecimento do espírito secretamente visado como efeito. Uma massa imbecilizada consumindo imagens enquanto alimenta a engrenagem do dispositivo de seu gerenciamento disciplinar.
CCXVI
Em tempos de lives as vitrines de psicanalistas se escancaram.
Os usos de jargões do lacanês e de recursos topológicos revelam-se em sua função pirotécnica, mais do que de transmissão.
Todos nós sabemos diferenciar quando o uso de matemas e recursos topológicos têm por função transmitir algo do real da clínica e quando servem para sustentar algo do imaginário de um suposto saber de analista analisado.
Parte do que ainda se chama de psicanálise rendeu-de ao consumismo imagético e midiático e se tornou manual de dicas de sobrevivência na quarentena: autoajuda de orientação psicanalítica.
Caberia à psicanálise a humildade de não saber e de parar para ouvir o real que está em jogo em tempos de pandemia, isolamento social e escalada fascista.
Encantado consigo mesmo o discurso da psicanálise resulta autorreferente e sem entranhas: psicanalistas hiper-autorizados, cheios de imagem, mas sem corpo.
Talvez não à toa os ditos finais de análise são atualmente surpreendidos por fenômenos que colocam em jogo algo do retorno do corpo recalcado.
JUNHO 2020
CCXV
Ao investigar e propor possíveis características comuns como traços de um final de análise, as escolas acabam por inventar um bem supremo à ética da psicanálise.
Membros de suas comunidades procuram, no que experimentam no divã, identificar se estão perto ou chegando neste lugar prometido de fim pelo que extraem das falas e textos daqueles que se colocam como analisados exemplares.
Em parte este fenômeno deve ser interrogado na idealização neurótica destes analisandos, mas há tempos as escolas precisam também se interrogar o quanto oferecem um bem supremo ao terem analistas que fazem uso narcísico de sua condição de analisados.
CCXIV
O ódio num fascista não é meramente um traço de caráter, mas traço necessário para que ele faça parte do conjunto "fascistas". Não pode ser aceito neste conjunto quem não mostrar claramente amar o ódio. Entre si os fascistas se amam porque amam os ódios que veem uns nos outros. Ao mesmo tempo, odeiam com todas as forças o que secretamente desejam na alteridade - em especial, nos fascistas brasileiros, a liberdade de pensamento e a reflexão sem amarras, que são atacadas como arrogância comunista e substituídas pelo aprisionamento voluntário ao senso comum alçado à condição de dogma.
Vemos claramente como, nos grupos de WhatsApp os fascistas se encontram e se identificam pela demonstração do ódio ao pensamento crítico.
Não adianta esperarmos que um fascista demonstre, sobre o objeto de seu ódio, algum grau de mudança de posição ou algum entendimento novo. O objeto não lhe interessa como objeto de conhecimento. Somente lhe serve para o exercício e o alimento de seu ódio. É bastante equivocado pensarmos que o ódio fascista existe e se constituiu por causa de um objeto - aliás, esta é uma justificativa fascista. Mas um objeto é que deve ser escolhido por causa do ódio. Sem um objeto para ser odiado, como nutrir o ódio?
Fora do fascismo o ódio tem o lugar do excesso. Dentro dele, ele é a norma, ficando para o lugar do excesso a diferença, mesmo que mínima.
CCXIII
Como sugere Eugenio Bucci, em coluna do Estadão de 21 de maio, o Brasil conseguiu a triste façanha de fazer do impeachment uma urgente necessidade de saúde pública.
A relação entre o fascismo e o desprezo da vida é imediata. E nisso ele é a expressão mais selvagem do capitalismo que destrói o planeta para o enriquecimento da minoria com poder de vida e morte sobre todos.
Veremos, em breve, o avanço tecnológico do capitalismo inventando meios de manter a economia aquecida durante as próximas pandemias mediante o maior controle dos corpos trabalhadores.
As tecnologias da comunicação continuarão tendo mais investimentos do que as pesquisas sobre avanços e combates a epidemias: é mais rápido e mais barato inventar formas rápidas de substituição de peças doentes do que criar condições para a profilaxia e o tratamento da gigantesca massa de mão de obra disponível. Não é a saúde o que conta num corpo, mas sua força de trabalho. Quando a força de trabalho excede muito as necessidades da produção e começa a pressionar as elites, quando a massa de refugiados escapa aos controles dos governos, quando o número de velhos onera os sistemas de previdência, uma pandemia é um regulador econômico a médio prazo na lógica darwinista do capitalismo selvagem. Quanto ao longo prazo, isso não importa à atual geração de capitalistas, pois eles já sabem que o mundo será destruído por este sistema, e, por isso mesmo, querem ganhar e gozar tudo o que podem desse mundo antes que isso aconteça.
O capitalismo acabará, se não com a saída de cena dos trabalhadores - algo que esta pandemia mostrou ser possível -, com a impossibilidade da sobrevivência humana na Terra. E para que a classe trabalhadora não queira sair de cena é preciso sempre deixá-la com medo e destruir tudo o que poderia lembrá-la disso.
A guerra cultural contra as esquerdas deixa clara a escolha dos dominadores pela segunda opção: 'que o fim do nosso poder seja o limite último da vida humana, só assim teremos a garantia de ter vencido.'
MAIO 2020
CCXII
"A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada." (FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 177).
O contexto do isolamento social faz saltar aos olhos a realidade de panóptico que vivemos enquanto pequeno-burgueses: uma coleção de individualidades separadas, oferecendo-se ao olhar vigilante como uma estrela, mas no mundo do panóptico "a visibilidade é uma armadilha" (idem, p. 177). Enquanto vivemos detentos do falso brilho da própria imagem nossos corpos seguem dominados como nunca pelo afã consumista que transforma o artificialismo em satisfação narcísica.
A covid-19 pode, ao menos por um tempo, lembrar-nos que a um corpo interessa mais um pulmão saudável do que músculos específicos paralisados pela toxina botulínica.
Esta pandemia poderá ser usada para intensificar o ponto de vista do guardião: chips, apps e protocolos disciplinares para facilitar a administração da multiplicidade enumerável e controlável.
CCXI
Sarcasmo da linguagem técnica da comunicação: parte da população ocupa-se de "lives" enquanto muitos corpos pretos, na periferia, acumulam-se nos cemitérios.
CCX
Um mês completo de "fique em casa".
O sentimento claro de que a catástrofe acontece lá fora. Rompe o silêncio, diversas vezes ao dia, sirenes de ambulâncias (sempre estiveram por aí e eu não notava ou de fato aumentaram em número e diminuíram em intervalo?). Não vejo mais da janela os aviões que passavam a cada 5 minutos.
Um prefeito de sobrenome Covas autoriza a utilização de 12 novas escavadeiras no cemitério da Vila Formosa.
Flashes de imaginação do que poderá estar acontecendo nos hospitais de campanha me invadem - às vezes com minha presença na cena, como se ainda estivesse por saber como estão, pessoalmente. Um número de mortes aos milhares virou dado de projeção estatística para os próximos 15 dias. Dicas de como lavar embalagens de produtos de mercado não são mais princípios de higiene, mas táticas de sobrevivência.
Aqui dentro, o pesado alívio dos privilégios. A descoberta de cantos nunca antes visitados da casa. O cálculo obsessivo da quantidade de comida para a próxima semana. O estranho prazer da construção de uma nova rotina. Fazer da casa a cidade por onde passeio requer um pouco de imaginação. Como sempre fiz, despeço-me de minha esposa com um beijo quando estou saindo de casa, mas agora é só um mudar de cômodo para começar a ouvir meus analisantes do dia. Quando são as tardes dela trabalhar, gosto de recebê-la como se estivesse voltando pra casa, ao abrir a porta que nos separava. Aos finais de semana o sabor de sair no quintal como quem vai ao parque.
E o medo de que tudo que atravessa minha porta de entrada pode carregar um inimigo. Minha casa é agora meu forte, meu quartel, meu castelo. A bolha burguesa, muito mais do que nunca, revela sua faceta necropolítica. Aqui dentro, bem-nascidos que ainda comem carré aos domingos.
Enquanto isso chegam manifestações artísticas na forma de filmes editados de músicos de uma orquestra ou de dançarinos de uma companhia, cada um em seus lares, subvertendo a interdição do encontro artístico, contradizendo o espaço privado, fazendo da delicadeza de seus acordes e gestos um grito pela vida e pela sobrevivência.
Diariamente acompanho as notícias como um drone que sobrevoa o mundo, mas que porta em si algo do anjo da história, do Klee de Benjamin. No auge do encastelamento, os olhos do mundo viajam sem fronteiras, de Wuhan à Nova Iorque, de Milão a Guaiaquil, de Manaus à Brasilândia.
Esperançosos falam em transformação e novo laço social. Mas no que leio desponta o terrorismo de Estado, o genocídio instituído, a selvageria do capitalismo no comércio/confisco/contrabando de equipamentos hospitalares, o discurso do "mais controle" apontado para a dominação. Junto com um socialismo forçado dos Estados, necessário, paradoxalmente, para salvar o capitalismo, virão tecnologias avançadas de controle dos corpos. A próxima pandemia não encontrará, possivelmente, um sistema de saúde universalizado e uma indústria farmacêutica investindo em pesquisas de prevenção. Para a próxima pandemia teremos centrais formadas de estrategistas de situações emergenciais (militares, provavelmente), sanitaristas, economistas, estatísticos e especialistas em gerenciamento de informações de telecomunicação: uma espécie de Estado paralelo capaz de administrar os relatórios que serão gerados a partir de dados coletados de aplicativos específicos que todos teremos que carregar em nossos celulares.
Recordo-me, aqui, de um trecho, tão e muito bem solicitado por Michael Löwy, das notas preparatórias de Benjamin para seu Sobre o conceito de História:
"Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história universal. Mas talvez as coisas se passem de maneira diferente. Talvez as revoluções sejam o gesto de acionar o travão [freio] de emergência por parte do gênero humano que viaja nesse comboio." (BENJAMIN, W. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 177-8).
O novo coronavírus acionou o freio de emergência da locomotiva capitalista. Os governos terão de ser rápidos em evitar que a classe trabalhadora assimile isso. (A pressa de alguns governos de que voltem ao trabalho tem menos a ver com o abalo econômico do que com o risco de que o "fique em casa" possa ser descoberto como o gesto da revolução.)
Por isso, para garantir que a locomotiva siga desenfreada, será necessário controlar melhor a classe trabalhadora que hoje, com medo e tão mais próxima da morte, poderá não perceber que o "fique em casa" faz parar as máquinas e nos permite a todos descer deste trem de doido.
CCIX
Está sendo comum nas análises a colocação da quarentena como alegoria da neurose: o dar-se conta de estar confinado numa posição por medo do que tem lá fora. Um poder sair / quando sair - da quarentena e do aprisionamento neurótico - emerge nas análises com força renovada.
O encontro forçado da redução objetal ao próprio corpo na atual e temporária realidade cotidiana da burguesia (rompendo suas ilusões consumistas de liberdade) com seu equivalente fantasmático na realidade psíquica promoveu um campo interpretativo das condições subjetivas anteriores com falas do tipo: "parece que eu já estava em quarentena há muito tempo".
O efeito real da pandemia na desinflação imaginária das ilusões de liberdade está fazendo vir à luz algumas relações entre as coordenadas da neurose e as sociais. A quarentena, como mimese do aprisionamento narcísico contemporâneo, pode fazer com que algumas pessoas queiram deixar falsas liberdades e satisfações infantilizadas. (Entretanto, está claro o quanto alguns estão utilizando da quarentena justamente para reafirmar a suposta verdade do aprisionamento narcísico, fazendo de suas casas e lives um QG particular do Big Brother; enquanto outros, afundados em suas ingenuidades e/ou ignorâncias ou em suas ilusões consumistas, seguem fora da quarentena, como se real não houvesse.)
ABRIL 2020
CCVIII
No capitalismo orientado pela ideologia da guerra a solidariedade talvez seja possível somente quando sustentada pelo inimigo comum. Estamos em guerra contra um vírus (embora ele mesmo não tenha qualquer consciência disso) e isso une muitos de nós, apesar do isolamento físico. Vencido o vírus, não haverá mais o que sustente a solidariedade e voltaremos todos ao cotidiano individualista de cada um. Findo o isolamento físico e os lutos, é provável que retornemos ao isolamento social e às disputas narcísicas de sempre, pois o que configura os nossos laços são as relações econômicas de exploração entre classes e as competições econômicas.
Além disso, saberemos ainda que proveitos a bocarra capitalista irá tirar do medo mundial de uma nova pandemia. Já circulam proposições, com ares de ficção-científica, de que a solução para evitar crises econômicas decorrentes de transmissão de doenças seja o controle em massa e centralizado de nossos índices corporais. O aumento do controle e da decisão centralizados ao invés da socialização e transnacionalização da saúde pública será mais condizente com o mundo administrado necessário ao capitalismo. Centrais especializadas dos Estados saberão ao mesmo tempo que nós quando tivermos febre (um nanochip?). E imediatamente seremos notificados a cumprir, sob alguma pena, o isolamento físico; e imediatamente os responsáveis pelo nosso posto de trabalho serão informados para correrem em nossa substituição sem perdas à cadeia produtiva.
CCVII
Teoria da conspiração?: governo espera o pânico decorrente do número de mortos pela COVID-19 para instalar um estado de sítio e fechar Congresso e STF?
CCVI
Os atos de urgência - necessários, diga-se de passagem para evitar falsos entendimentos -, para controlar a expansão das contaminações pelo novo coronavírus, estão pautados mais no medo burguês do que na solidariedade comunal. Quando a solidariedade precisa do estado de exceção para existir, estamos num planeta de egoístas.
Quando alguém compra 90 rolos de papel higiênico para sua própria quarentena, não está preocupado com a sobrevivência de seus vizinhos.
Vale dizer que a descoberta súbita do estrangulamento dos sistemas de saúde (sejam públicos sucateados, como no Brasil, ou privados, como nos EUA) coloca boa parte da classe dominante em contato com a experiência cotidiana da classe dominada.
Observar, sem recursos, e saber que a morte de parte significativa população idosa mundial será uma marca deste ano de 2020 é uma experiência de horror. Mas nos cabe perguntar por que a situação dos 70 milhões de refugiados no mundo (dados de 2018 da ACNUR) não causa a mesma comoção.
A quarentena mundial deveria ser motivada por outros afetos que não o medo. Mas, para isso, deveríamos nos deixar afetar, também, pelos favelados que estão sendo exterminados pelas políticas de segurança pública e pelas vítimas do feminicídio que cresceu com o aval dos representantes toscos dos brasileiros de personalidade autoritária.
Nas favelas, o pânico que as classes média e alta estão sentindo, não é novidade. Na Venezuela atual, também não. Mas a saúde deles importa menos, infelizmente, do que a dos nossos idosos. Seria importante levantarmos a expectativa de vida das periferias globais para sabermos se, ali tão longe de nós, tornar-se idoso é possível e em que condições.
Parte da população está tendo a oportunidade de entender que a saúde do cidadão - e não a saúde financeira das elites - deveria ser obrigação e prioridade garantida do Estado.
Por mais grave que seja a atitude daqueles que não estão respeitando ou levando a sério a quarentena, eles não são os únicos culpados das mortes pela COVID-19.
Mas assumir e levar adiante esta nossa responsabilidade histórica necessitaria da mesma força de vontade que encontramos nos profissionais da saúde que, para enfrentar a crise que estamos vivendo, escolheram ir a Wuhan.
CCV
Num pequeno artigo entitulado O estado de exceção provocado por uma emergência imotivada, de Giorgio Agamben (disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596584-o-estado-de-excecao-provocado-por-uma-emergencia-imotivada), vemos o quanto o contágio do pânico é muito mais grave do que o contágio do coronavírus. O estado de medo que se difundiu nas consciências dos indivíduos para que aceitem, em nome da proteção do Estado, governos autoritários e limitações da liberdade, precisa ser constantemente alimentado, seja por causa das ameaças financeiras, terroristas, comunistas ou de uma gripe.
Agamben não menciona as razões econômicas que também estão em jogo nesta pandemia - quais sejam, a guerra comercial entre EUA e China e a produção rápida e artificial de quebras econômicas para a ação e o fortalecimento dos monopólios - mas sua análise de que uma gripe esteja sendo usada para a sustentação de um estado de exceção é extremamente importante para refletirmos sobre os absurdos comportamentos que estamos vendo de pessoas se preparando para a guerra com estoques de compras de produtos de higiene e de alimentos não perecíveis. O cancelamento de atividades, mesmo em lugares e instituições sem casos de coronavírus, e as indicações para evitar sair de casa podem chegar a produzir a atmosfera de um ataque aéreo em zonas de guerra.
Tomada pela ideologia de guerra disseminada e sustentada pela extrema direita mundial, uma gripe vinda da China não passa de alegoria recalcada da invasão comunista. São muitos os filmes produzidos nos EUA em que pessoas viram mortos-vivos contaminados pela "doença" que veio de fora. Estamos vendo a materialização deste imaginário de invasão comunista disfarçada de extraterrestre com a gripe do coronavírus.
Prefiro o fantástico Ensaio sobre a cegueira, do Saramago, que revela que o vírus é o próprio sistema em autodestruição. A cegueira promovida pelo pânico, submetida a uma análise crítica, nos mostra a infeliz e forte presença de personalidades forjadas na teoria fascista da guerra permanente. E, diante disso, talvez se nos imponha o que propôs Benjamin sobre as teorias do fascismo alemão em 1930: "O que temos é de lançar toda a luz que a linguagem e a razão ainda nos oferecem sobre aquela 'vivência primordial' de cujo negrume surdo sai, rastejando, esse misticismo da morte dos mundos, com os seus milhares de patinhas repugnantes." (BENJAMIN, W. O anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 122.)
Não obstante, estamos em uma Guerra Mundial se considerarmos o volume gigantesco de expatriados, as guerras civis e as políticas de extermínio adotadas historicamente em Estados autoritários como o Brasil. Entretanto, à margem da produção industrial e do capitalismo financeiro, esta é uma Guerra para a qual podemos estar cegos. Estamos numa Guerra que não vemos e vivemos uma guerra que não há.
CCIV
É importante refletirmos sobre a dimensão de síntese simbólica que o discurso de Bolsonaro, quando do seu voto no impeachment da Dilma Rousseff, teve na sociedade e na história brasileira recente. Anunciava-se ali, potencialmente, sem que pudéssemos perceber, um dos rumos que a sociedade poderia tomar.
A perseguição hoje sofrida pela esquerda em diversos setores da sociedade dão elementos para pensarmos que algo do absurdo daquela cena de um deputado capitão golpista votar pela queda de uma presidenta mencionando o nome daquele que a torturou, segue se repetindo como mimese tardia dos traumas da nossa última ditadura militar e trazendo o medo claro de sua repetição.
Porém, o trauma que de fato tornou-se a marca do governo atual e de grande parte da sociedade que hoje encontramos foi o assassinato de Marielle Franco. Seu assassinato é a escrita, na história recente do Brasil, de um nó de tantos elos: racismo, machismo, patriarcalismo, homofobia, luta de classes e o retorno do recalcado da violência - de um país que se fundou sobre a escravidão - que nunca foi realmente tratada ou sequer extinta.
Este duro assassinato revelou o caminho da nossa regressão à barbárie, mesmo que ainda não tivéssemos saído verdadeiramente dela.
A morte de Marielle Franco e a proteção de seus mandantes reabrem uma ferida histórica; e é enquanto tal que devemos ouvir a indignação que elas causam. O silenciamento e a coisificação de mulheres negras; a impunidade corrupta da elite patriarcal branca com o poder de vida e morte de seus dominados.
Qual democracia poderá haver enquanto não enfrentarmos estes restos históricos que não cessam de se escrever?
CCIII
A se pensar que o infra-humano (dejeto), assim como o supra-humano (não-castrado), funcionam como exceção necessária à constituição do todo, então, a identificação (imposta ou fantasmática) ao objeto masoquista está do lado todo das fórmulas da sexuação.
Reduzir a mulher à identificação ao objeto masoquista é mais um truque patriarcalista da psicanálise: serve, tanto quanto o pai, para fazer o suposto conjunto dos homens-todo.
Dispensar a necessidade do pai e/ou do dejeto e abrir mão de pertencer a um todo, abre caminho à contingência, à assunção do impossível e à passagem para o não-todo: campo sem lugar lógico à identificação com o objeto masoquista.
CCII
Em 1945, tocado pelas reflexões sobre a Segunda Guerra Mundial, Lacan propôs uma lógica temporal, em três tempos lógicos, que ele formulou assim:
1) Um homem sabe o que não é um homem;
2) Os homens se reconhecem entre si como sendo homens;
3) Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem.
"Humano" não é, de acordo com esta lógica, um predicado comum capaz de unificar todos que o possuem num mesmo conjunto. Para Lacan não há um predicado universal para "humano". Um homem não sabe o que é um homem; um homem sabe somente o que não é um homem. Afirmar-se humano não é ostentar um universal, mas negar em ato o não-humano, pela invenção/acontecimento de um traço distintivo que não se deixa cristalizar o só se verifica/reconhece caso a caso no próprio laço social. Uma lógica do ato, portanto.
No entanto, creio que Lacan se equivoca ao dizer que um homem sabe o que não é um homem, pois, ao fazer isso, faz o não-humano algo ex-sistente e verdadeiro. Se não é possível afirmar o que é um homem, tampouco é necessário que se afirme o que não o é. "Humano" pode se tornar dialeticamente contingente pelo ato da negação da não existência do humano, o que, de modo paracompleto, não implica predicar em definitivo o que seja humano ou saber o que não é.
É possível fazer um conjunto de humanos: uma vez que não se sabe o que é um humano, mas sim o que não é um humano, é preciso identificar (afirmar) e negar o não-humano como exceção necessária. A afirmação do não-humano, como necessário, torna possível, em contrapartida, a afirmação do humano.
Há, pelo menos, duas formas de afirmação do não-humano: afirmar o não-humano como supra-humano, isto é, fazer ex-sistir o não-castrado; e/ou afirmar o não-humano com infra-humano, ou seja, fazendo ex-sistir o dejeto, preenchendo o lugar do não-humano com corpos/grupos marcados por um predicado comum a ser excluído, abandonado ou eliminado.
A afirmação do conjunto dos humanos parece, por esta lógica, só se fazer possível pela necessária afirmação do não-castrado e/ou do que traz a pequena diferença e a intolerância que a acompanha. Porém, podemos dispensar esta "necessidade" assim como a totalidade que este conjunto de humanos faz consistir: o humano pode ser o que se constela (e, portanto, não se totaliza) no ato da negação do não-humano a cada vez e no laço social. Se afirmar o humano e o não-humano é impossível, isto não impede que o humano e o não-humano aconteçam como contingência.
Todo ato de cultura é, em si mesmo, mediação dialética entre o humano e o não-humano como realidades contingentes ou necessárias. Se nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento de barbárie, como afirma Benjamin, talvez seja porque um monumento é acontecimento humano na mesma medida em que é memória cristalizada da dominação (que afirma o não-humano e/ou o supra-humano).
É importante ressaltar, porém, que entre o fazer necessária uma exceção e sua não necessidade encontramos a dialética que há entre os lados todo e não-todo das fórmulas da sexuação. E desta dialética decorre um princípio, qual seja: abrir mão da totalidade implica não afirmar o humano e o não-humano, ou seja, suportar que a humanidade seja contingente, sem o artifício de garantia da exceção: sem pai, mas também sem o dejeto/inimigo comum.
A transformação está na voz e no corpo-memória dos historicamente derrotados, pois lá reside a humanidade negada. A barbárie afirma a negação dos derrotados. Precisamos lutar contra esta negação, mas para deixar que o humano constele, de maneira não-toda, ou seja, que "humano" siga sendo algo em histórica e infinita construção. Deixar o humano no horizonte é viver o humano não absolutamente realizado, e, ao mesmo tempo, negar veementemente o não-humano. Mas isto não impede, no entanto, momentos de realização do humano como reconciliação mimética com a humanidade negada. Manifestações como a do bloco Vaca Profana, de Olinda, parecem ser exemplos disso: experimenta-se estética e politicamente o encontro com a humanidade como aquilo que sai momentaneamente de seu lugar histórico de negação.
Muito além de um epifenômeno qualquer, experiências miméticas como estas precisam ser politicamente alçadas ao lugar de horizonte possível, em que pese o messianismo contido nisso, mas não a ser pensado como revelação da graça, e sim como a satisfação da escrita de algo do "humano" que não cessa de não se escrever.
CCI
"Todos nós estamos envolvidos em várias lutas, em várias frentes, em um ritmo muitas vezes frenético. Todas elas são grandiosas. Mas a questão é outra. As múltiplas lutas não conseguem mais entrar em um processo de acumulação e unificação. Elas não entram em constelação. [...]
[...] Se há algo que as manifestações vitoriosas no Chile mostram bem é que lutas de reconhecimento como as lutas feministas, indigenistas, anti-racistas são um desdobramento necessário e decisivo da luta de classes. Elas são figuras da luta de classe. Não há contraposição alguma aqui, a não ser no sonho macabro de alguns liberais (assumidos ou não) que querem retirar dessas lutas sua potência efetiva de transformação global. Concretamente, isto significa, por exemplo, que a derrota na luta contra a reforma da previdência é, imediatamente, uma derrota da luta anti-racista. Pois são os negros e negras um dos setores mais espoliados e precários do mundo do trabalho. São elas e eles que sentirão de maneira mais forte as consequências dessas políticas de concentração e destruição dos direitos trabalhistas. As derrotas na flexibilização dos direitos trabalhistas são derrotas da luta feminista, pois as mulheres serão as primeiras a sentir de forma violenta o significado de tal 'flexibilização'. O que o Chile nos mostrou é que, por exemplo, a luta feminista demonstra sua força máxima quando ela expõe sua dimensão de luta de classe contra o modelo econômico que nos destrói." (SAFATLE, V. Para a esquerda, morrer é só o começo. Coluna do El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-27/para-a-esquerda-morrer-e-so-o-comeco.html?prod=REGCRARTBR&event_log=oklogin)
Neste trecho de seu artigo, Safatle ressalta as lutas feministas, indigenistas, anti-racistas e, acrescento, as lutas pela diversidade sexual, como figuras da luta de classes. Isto não é novidade
para muitos dos teóricos ativistas destes movimentos, embora o seja ainda para a intelligentsia branca oficial (dentre os quais me incluo). Há tempos, setores destes movimentos tem trabalhado para fazer a esquerda intelectual e política perceber que a categoria trabalhador já não se sustenta sem a constelação destas lutas por reconhecimento.
Num país capitalista e patriarcal, com uma história escravocrata e uma colonização cristã moralista, não é possível, literalmente, dar corpo ao agente da categoria trabalho sem levar em conta as lutas mencionadas.
Nossos derrotados são mulheres, pretos, LGBTIs, índios... Não é dos filósofos e políticos brancos, homens, heterossexuais e midiáticos que virá a voz do levante capaz de carregar a força de gerações de injustiçados.
Deixarmo-nos encantar por estas lutas e usarmos os espaços que temos, não para capitalizá-las narcisicamente em proveito próprio, mas para iluminar e deixar que se espalhe a semente da transformação que carregam, é o que nós - homens, brancos e privilegiados - devemos fazer neste momento.
Se uma nova esquerda está para nascer, que seja do constelar destes fragmentos de luta em torno do que elas têm em comum: o basta ao dominador histórico, qual seja, o Estado-pai-hétero-proprietário-branco.
MARÇO 2020
CC
"Este antigo mundo então chegou perto de seu fim. O jardim de delícias da jovem estirpe murchou - para fora dele, em espaços descampados e desérticos, labutavam homens crescidos, sem o antigo aspecto jovial. Desapareceram os deuses e seu séquito - solitária e sem vida tornou-se a natureza. Números indiferentes, a medida rígida, passaram a restringi-la como correntes de ferro. Caducou a antiga florescência, cheia de vida; transformou-se em palavras obscuras, tal qual cinzas ao vento. A fé encantatória também desapareceu, assim como sua gêmea divina, que tudo transforma e une: a fantasia. O vento do Norte passou a soprar com hostilidade pela planície congelada, e aquele campo de maravilhas dissipou-se no éter. As distâncias celestiais se povoam de planetas luminosos. O espírito do mundo, com todos seus poderes, ocultou-se no santuário profundo, nas regiões mais elevadas da mente, esperando a chegada do dia em que a glória universal despertará. A Luz deixou de ser o assento dos deuses, seu emblema celestial - antes, eles jogaram sobre si o véu da Noite." (NOVALIS [1800]. Hinos à noite. São Paulo: Editora Sebo Clepsidra, 2019, Canto V, p. 55)
Desta poética descrição que o romantismo de Novalis fez, em 1800 (com seus 27 anos e um ano antes de sua morte por tuberculose), sobre a perda do paraíso bíblico e/ou da harmonia da Idade do Ouro da mitologia grega, podemos extrair o ressentimento do anjo da história: o desencantamento do mundo trouxe a noite, transformou em objeto a natureza dominada, sem magia e vida, somente matéria administrável. Com o desencantamento veio também a melancolia do ser humano sem deuses e que não consegue mais romper com a dominação:
"Números indiferentes, a medida rígida, passaram a restringi-la como correntes de ferro. Caducou a antiga florescência, cheia de vida; transformou-se em palavras obscuras, tal qual cinzas ao vento."
A acedia, à qual se referiu Benjamin na sua sétima tese sobre o conceito de história, é um afeto concorrente à esperança messiânica de que "o espírito do mundo, com todos seus poderes, ocultou-se no santuário profundo, nas regiões mais elevadas da mente, esperando a chegada do dia em que a glória universal despertará".
No despertar do romantismo, Novalis extrai, dos afetos do mundo que ali se sedimentava (ele mesmo um filho de família nobre e mineradora no norte alemão nas primeiras décadas da revolução industrial), uma alegoria do que em nós novamente respira a cada vez que na história se repete o sopro frio do vento do Norte: entre o torpor histórico dos expulsos do paraíso - nossos derrotados - e o messianismo político que nos transmitem com seu desejo, vemo-nos com o impasse de Drummond: "tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo".
Mas revigora no romantismo novaliano o encantamento que só a poesia é capaz de injetar no mundo para sacudir a pesada capa da sedutora melancolia conformista:
"Certa vez, quando derramava lágrimas amargas; quando, desintegrado pela dor, a esperança me escapava, encontrava-me sobre um outeiro escarpado que, na escuridão, ocultava meu aspecto de ser vivo - solitário como nenhum recluso jamais esteve, levado por angústia indizível; destituído de forças, restava-me apenas um pensamento de aflição. - Conforme olhei ao redor, buscando por ajuda, foi impossível me mover para frente ou para trás, como se estivesse ancorado, pela vida fugidia e morrediça, a um ser infinito: então veio de longínquos ermos azulados, das alturas de minha antiga felicidade, um arrepio crepuscular - com um só golpe romperam-se os grilhões da Luz - e assim pude renascer." (Idem, canto III, p. 35)
Como nenhum outro movimento, o Romantismo, em seu primeiro momento, soube apontar na poesia e nas artes em geral sua função política de resistir ao desencantamento e à dominação da Natureza e do existir humano.
Reencantamento e fantasia (no sentido de esperança utópica): talvez estejamos vendo algo da semente romântica novaliana renascer com toda a sua força nos movimentos feministas, raciais e lgbtis como aqueles que podem responder aos atuais ventos gélidos do Norte.
A velocidade com que movimentos como a performance do coletivo chileno Las Tesis se propagam e se multiplicam pelo mundo não é sem analogia com o arrepio crepuscular que rompe grilhões da Luz e permite um renascimento. Estes movimentos de crítica e luta trazem em sua força algo do anseio (Sehnsucht) eletrizante da potencialização qualitativa e estética dos primórdios do Romantismo. São nestes movimentos que a política e a poesia estão se reencontrando com chances verdadeiras de fazer reaparecerem "a fé encantatória [...], assim como sua gêmea divina, que tudo transforma e une: a fantasia"; noutros termos: a estes movimentos cumprirão a função de reacender nas esquerdas fragmentadas a aposta na transformação social.
CXCIX
A verdade não toca o real pela via da significação. Não há significação que possa fazer a verdade e o real se encontrarem. Só se pode experimentar a verdade como real com a participação do corpo, isto é, pela via do afeto. Deste modo, quando a arte, a poesia, um epifenômeno ou uma interpretação diz algo da verdade é porque houve, neste dizer, para além da significação, um acontecimento mimético.
CXCVIII
Na sociedade do livro das faces famosas quem não tem seguidores passa por inexistente. A economia e os cálculos dos seguidores de redes sociais é mensuração e disputa imaginária do poder.
Fora do livro das faces famosas o poder verdadeiro mostra sua cara e segue destruindo o planeta, enquanto parte da humanidade segue na matrix tirando selfies e somando likes.
CXCVII
As relações do sujeito com as formas assumidas pelo objeto a em sua história não é propriamente de identificação, mas de mimese. Pois é menos uma tomada referencial e significante do objeto do que um confundir-se, um misturar-se corporalmente a/com/em ele. O sujeito se encontra no objeto menos como significado do que como gesto/traço/forma/cor/cheiro/som etc. No objeto o sujeito realiza a mais rudimentar forma de metáfora, aquela que não separa corpo e linguagem.
CXCVI
Os sintomas são arte rupestre nas cavernas do corpo.
CXCV
Os sonhos podem ser lidos como haicais escritos em kanji: diversas camadas sobrepostas de metáforas.
CXCIV
"Não podemos exibir a opulência da Natureza por simples adição, amontoando sentenças. O pensamento poético trabalha por sugestão, acumulando o máximo de significado numa única frase replena, carregada, luminosa de brilho interior.
Nos caracteres chineses, cada palavra acumula em si mesmo essa espécie de energia." (FENOLLOSA, E. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia. In: CAMPOS, H. (Org.) Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: EDUSP/Cultrix, 1977, pp. 115-162. p. 144)
Numa crítica à lógica classificatória ocidental, Fenollosa sustenta como característica da poesia a capacidade de extrair de uma fase as diferentes camadas geológicas que a constituem. É possível que um único e simples verso, como um depósito de sentidos possíveis, suporte um conjunto de metáforas que historicamente se sucederam. Mas, para isso, é preciso ler o verso para além da lógica classificatória que fariam estanques os significados de seus elementos. É preciso deixar que suas palavras se toquem, se provoquem, se fertilizem e se estranhem; que estejam livres do compromisso de comunicar, desamarradas da obrigação com a exatidão para transbordarem a memória que carregam de sua capacidade mimética.
Se o ideograma chinês materializa em si ainda esta condição poética, não é absurdo pensarmos que uma frase - tomada na condição de um verso que, investido pulsionalmente, marcou contingencialmente um corpo - possa cristalizar-se como um sintoma, cujo gozo o verso-letra-ideograma, assim constituído, alimenta com seu acúmulo de sentidos. Deixar que o sintoma fale suas camadas geológicas é deixar que ele vire poesia. Mas para isso é necessário que alguém se ponha a lê-lo, forçando-o como tal.
CXCIII
"Somente os eruditos e os poetas remontam com esforço às nossas linhas etimológicas e reúnem como podem nossas expressões a partir de fragmentos esquecidos. Esta anemia do discurso moderno é estimulada pela debilidade da força de coesão de nossos símbolos fonéticos. Numa palavra fonética, há muito pouco, ou mesmo nada, que exiba os estágios embrionários de seu desenvolvimento. Ela não ostenta a metáfora em sua própria aparência."(FENOLLOSA, E. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia. In: CAMPOS, H. (Org.) Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: EDUSP/Cultrix, 1977, pp. 115-162. p. 140)
Fenollosa nos aponta o quanto a escrita chinesa ostenta a metáfora em sua própria aparência, algo que a nossa escrita perdeu. Curioso pensarmos que as camadas geológicas da linguagem, ainda presentes no chinês, se perderam em nossa língua e escrita: "um estágio final da decadência é apanhado e embalsamado no dicionário" (Idem, p. 140).
Porém, é nas formações do inconsciente que os vestígios geológicos da linguagem reaparecem. O inconsciente segue sendo um depósito histórico da linguagem. Lembremos o Lacan de A terceira (ou seja, o real) referindo-se à alíngua: "O que é preciso conceber aí é o depósito, o aluvião, a petrificação que se marca a partir do manejo por um grupo de sua experiência inconsciente" (LACAN, J. (1974), inédito).
Ouvir o inconsciente é escutar também esta experiência petrificada de um grupo. Interrogar sua petrificação implica suspender as naturalizações do que tem existência histórica, por mais longo que seja seu tempo de transformação. O patriarcalismo heteronormativo é uma sólida camada inconsciente de um grande grupo que precisa ser fortemente perfurada e atravessada, pois seus detritos se acumularam mesmo dentro da psicanálise, que, no entanto, tem instrumentos para ouvi-la para além da reificação estrutural.
FEVEREIRO 2020
CXCII
"Toda a delicada substância do discurso se constrói sobre um substrato de metáforas. Os termos abstratos, pressionados pela etimologia, revelam suas raízes antigas ainda mergulhadas na ação direta. Mas as metáforas primitivas não se originaram de processos subjetivos arbitrários. Elas só se tornaram possíveis por acompanharem as linhas objetivas das relações na própria Natureza. As relações são mais importantes e mais reais do que as coisas por elas relacionadas. As forças que produzem as ramificações do carvalho já se encontram potencialmente na bolota. Linhas de resistência semelhantes, infletindo a pujança das pressões vitais, presidem às ramificações de rios e de nações. Assim, um nervo, um cabo telegráfico, uma rodovia, uma carteira de compensação constituem apenas canais diversificados que a comunicação impõe por si mesma. Isto é mais do que uma analogia: é identidade de estruturas. A natureza fornece as suas próprias chaves. Se o universo não estivesse cheio de homologias, simpatias, identidades, o pensamento teria vivido à míngua e a língua acorrentada ao óbvio. Em parte alguma teriam existido pontes para a travessia da verdade menor do visível até a verdade maior do invisível. Umas poucas centenas, não mais, de raízes, em nossos vastos vocabulários, teriam lidado diretamente com os processos físicos. Podemos identificá-las razoavelmente bem no sânscrito primitivo. São, quase sem exceção, verbos vívidos. Cresceu a riqueza do discurso europeu acompanhando lentamente o intrincado labirinto das sugestões e afinidades da Natureza. As metáforas se foram superpondo em camadas quase geológicas." (FENOLLOSA, E. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia. In: CAMPOS, H. (Org.) Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: EDUSP/Cultrix, 1977, pp. 115-162. P. 138)
A tese fenollosiana da evolução da linguagem como ato que se desdobra em complexidade, mas a partir da mimese da Natureza, encontra-se muito próxima da tese benjaminiana da origem da linguagem no gesto mimético. A própria escrita dos caracteres chineses condensa metonimicamente nos gestos da mão que escreve esta dança corporal primitiva e expressiva com a qual teria nascido a linguagem. Em sua beleza, um ideograma é o retrato do milenar encontro da balética com o significante, como faculdades miméticas que são.
Ao tomar numa mesma série um nervo, um cabo telegráfico e uma rodovia, Fenollosa fundamenta seu conceito de metáfora numa semelhança formal, mais do que num parentesco de sentidos. As camadas geológicas de metáfora que se superpõem respeitam semelhanças e identidades estruturais, preservadas entre elas uma homologia formal. Esta homologia é o que da linguagem se faz corpo e o que do corpo se faz linguagem: crosta. Mais do que o sentido final e imediato a que se possa chegar numa comunicação, algo desta geologia se transmite como aquilo que de secular se sedimenta entre gerações. Mas a linguagem, se é assim constituída, não é eterna, imutável e definitiva, mas se transforma como se transforma um vale ou uma serra.
Ao psicanalista caberia ouvir e investigar o sujeito do inconsciente como um geólogo: suas diversas camadas e materiais, ouvir a Terra como algo vivo, que respira, se transforma e que pode morrer naturalmente ou tragicamente por ter entrado na história humana. Caber-nos-ia buscar mais, ao encontrarmos uma caverna no discurso de alguém, ouvir o rio que ali já passou há dezenas de anos, sem duvidarmos do que pode haver de verdadeiro na expressão popular de que o desejo move montanhas.
Aquilo que no corpo se escreve como sintoma, homólogo ao pictograma, à arte rupestre, carrega, como metáfora, a estrutura homóloga de antigas camadas geológicas de relações significativas. Reavivar no sintoma sua dimensão histórica, geracional, fazê-lo falar o que nele se congelou e endureceu, é forçar aquilo que virou corpo empedrado a voltar a dançar (uma subversão que a expressão rock and roll, por exemplo, nos permite ler, como num ideograma).
CXCI
O Coringa (Joker), filme dirigido por Todd Phillips e brilhantemente interpretado por Joaquin Phoenix, é uma piada explicada do início ao fim - muito embora termine com um "você não entenderia" para a pergunta da profissional do sanatório sobre a "piada" da qual o protagonista ria.
Enquanto comediante sem graça, mal-sucedido, com problemas mentais e uma gargalhada sintomática cuja explicação diagnóstica era dada num cartão, o protagonista expressa a piada de mal gosto à qual se reduz a dimensão subjetiva que não se deixa ajustar ao sistema. Na mutilação cotidiana de cada um há algo de joker, há uma piada, um chiste, um sintoma que se rebela contra o ajustamento social, seja por uma risada fora de contexto, uma angústia sem explicação, uma compulsão, um distúrbio ou transtorno qualquer (aliás, vale dizer que o bullying exercido pelo três personagens que são assassinados no metrô não é outra coisa do que o lado joker dos mesmos). Cada um de nós carrega no bolso seu cartão-diagnóstico, sua máscara de joker, a explicação do chiste que é ter que viver feliz no capitalismo necessariamente mutilador do corpo e do espírito.
O levante proposto pelo filme declaradamente nada tem de político, pois não apresenta nenhuma causa que não a mimese imediata e irrefletida dos excessos sintomáticos; um exercício catártico do gozo, sem qualquer mediação de desejo.
Sem a participação da razão, tal levante é a colocação da barbárie como significante mestre (o que, por sinal, muito se assemelha aos movimentos de junho de 2013 que, como sabemos, serviram de material afetivo às manipulações da imprensa que geraram o golpe contra a Dilma).
Uma mensagem ambígua que podemos depreender do filme é essa: se o Estado desse mais remédios para a população carente a subjetividade não-ajustável poderia ser melhor silenciada.
O representante simbólico do Estado no filme, Thomas Wayne, é aquele que não responde e não dá ouvidos, é aquele que esmurra quem precisa de escuta - afinal, ele também tem seu lado joker que, neste caso, está instituído como prática de Estado.
Dar ouvidos ao que o sintoma diz e fazer deste dizer uma política do sintoma é diferente de transformá-lo num acting out coletivo e surdo ao desejo e à crítica que ele sempre guarda em si.
Do bobo da corte ao mateus do Bumba-meu-Boi, passando pelo arlequim da commedia dell'arte e pelo apresentador Murray Franklin interpretado por Robert de Niro neste filme, a figura do palhaço é aquela a quem compete divertir e/ou constranger o público com a encenação de sua própria desgraça e falta de jeito ou com o apontamento da desgraça ou falta de jeito alheias. Da boca do palhaço podemos ouvir como chiste denúncias e preconceitos que não poderiam ser ditos pelas bocas dos ajustados. A figura do palhaço diz aquilo que precisa ser ouvido e refletido, escutado em sua verdade às vezes, tratado criticamente em muitas outras vezes. Na medida em que o palhaço provoca o riso, toca em verdades inconscientes, na matéria mesma que sustenta o gozo, mas este gozo que ele revela pode ser um ódio mortífero endereçado a um grupo ou a uma minoria.
No entanto, quando um joker ganha a condição de espalhar preconceitos em cadeia nacional, isto só servirá para o gozo mimético do ódio de todos aqueles que buscam transformar em verdade os absurdos daquilo que pensam e que, em algum momento da história, já foi piada de mal gosto na boca de palhaços desavisados.
CXC
Como quem joga videogame, militares norte-americanos mataram o general Soleimani, herói do Irã.
Um drone - maior, certamente, do que os que vejo nas mãos de crianças em parques públicos - levou o míssil.
Começa o último ano da segunda década do século XXI e esbarramos no início de uma Terceira Guerra Mundial (que, diga-se de passagem, não sei por qual razão se convencionou escrever com iniciais em maiúsculas, como a dar-lhe uma sacralidade messiânica).
Vejo-me tendo que contar com o bom senso xiita, já que não espero muita coisa da ignorância típica produzida pela massificação cultural e consumista do capitalismo avançado.
Diversos dirigentes de Estado e de organismos internacionais assistem e pouco ou nada dizem, permitindo um clima de "legitimidade" consentida e amedrontada à ideia de que Trump pode, a qualquer momento, enviar um drone para assassinar um representante de Estado qualquer em qualquer lugar do planeta.
O líder norte-americano joga videogame com o mundo. E nós, passivamente, assistimos, como quem segue um youtuber de manicraft.
JANEIRO 2020
CLXXXIX
Em seu texto Notas sobre o bonapartismo, o fascismo e o bolsonarismo (disponível em: https://aterraeredonda.com.br/notas-sobre-o-bonapartismo-o-fascismo-e-o-bolsonarismo/), Bernardo Ricupero traça importantes linhas de divergência e de convergência histórica entre o que estes três termos representam. Retomando Marx ele nos lembra que:
"Marx, ao analisar o golpe de 02 de dezembro de 1851, que fez de Luís Bonaparte o imperador Napoleão III da França, destacou como o desenvolvimento da luta de classes levou a burguesia a perceber 'que a fim de preservar intacto o seu poder social, seu poder político deve ser destroçado'. Ou, em termos mais diretos, tal classe notou 'que, a fim de salvar a bolsa deve abrir mão da coroa' (18 Brumário, p. 63). A crise revolucionária levara a uma verdadeira inversão, em que só um aventureiro 'pode salvar a sociedade burguesa; só o roubo pode salvar a propriedade; o perjúrio a religião; a bastardia a família; a desordem a ordem' (p. 124). Em termos mais profundos, "sob o segundo Bonaparte" o Estado parecia 'tornar-se completamente autônomo' (p. 114), apoiando-se diretamente na força."
Ao retomar a tese de André Singer de que o lulismo teve a característica bonapartista de arbitrar os interesses divergentes entre capital e trabalho, Ricupero analisa que, tanto o acirramento da luta de classes ("redução cíclica da taxa de lucro agregada da economia e um aumento do número de greves (Marcelino, 2017; Martins e Rugitsky, 2018). Não por acaso, nesse contexto ocorreram as "Jornadas de Junho" de 2013 que marcam o início da crise dos governos do PT") quanto a possibilidade da abertura de um diferente momento do capitalismo com a queda crescente da associação firmada desde o pós-guerra entre capitalismo e democracia - como demonstra a ascensão da extrema direita em diferentes países - produziram no Brasil a inesperada eleição de um aventureiro como Bolsonaro.
Ricupero deixa claro, entretanto, que Bolsonaro não e um árbitro entre às classes, mas um capitão da classe dominante. E, ao final do texto, recupera elementos históricos para nos alertar dos riscos já mencionados no 18 de Brumário: abrir mão da coroa para salvar a bolsa.
"Mas ao pensar a relação entre o aventureiro e a burguesia, pode ser boa ideia voltarmos às advertências de um autor praticamente esquecido. Thalheimer, já em 1928, indicava como o equilíbrio entre os dois elementos é instável, bastando um ato para se ingressar na ditadura. Notava, todavia, que 'nesse ato a burguesia é apenas um elemento passivo, já que seu papel se limita a criar as condições para que ela possa ser socialmente 'salva' e politicamente violentada. Já o estupro é realizado pelo herói do golpe de Estado' (p.122)."
Inevitável o retorno à memória da cena traumática que condensa mimeticamente boa parte do momento político atual: um capitão que vota sim ao golpe que derrubou uma presidenta da república homenageando àquele que a torturou.
CLXXXVIII
"Hoje, por exemplo, eu poderia sem esforço esboçar um conto pelo prisma de um general janeleiro. Seria composto de frases objetivas, desprovidas de ornatos. Sem condicionais. São 15h27 de uma segunda-feira. Tirante as crianças e, vá lá, quatro a cinco por cento de turistas, é uma praia apinhada de mandriões. É isso o Brasil. Frescobol, roda de altinha na beira da água, não é proibido? Quem é que vai pôr ordem nessa bagunça? Vendedores de mate, cerveja, biscoitos de polvilho, espetos de camarão ao arrepio da vigilância sanitária. E viados de tanga. Viado a dar com pau. Jovens faltam à escola para jogar baralho. Cadê meu binóculo? É um baseado que eles passam de mão em mão. É isso o Brasil. Um preto desata a correr, estava demorando. Dez, vinte banhistas correm atrás. Agarram o preto, vão linchar. Chegam dois PMs pardos e isolam o preto. É deles o direito de bater no preto." (BUARQUE, C. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 151-2.)
Chico Buarque coloca em boca autoritária, prostrada em janela de frente à praia do Leblon, a visão conservadora e distorcida do Brasil.
Um general janeleiro vendo a praia do Leblon.
Quantos já encontramos o general janeleiro do Chico no elevador, na fila, na sala de espera, na mesa ao lado, no encontro de família?
Um cafona e medíocre boneco dourado com faixa presidencial numa janela do Leblon é a síntese buarqueana para representar a elite e a classe média conservadoras do Brasil.
Com ironia machadiana, Chico atualiza para o Brasil de hoje a face bárbara e romanticamente esvaziada da indolência parasitária e sem culpa que Antônio Cândido, por exemplo, encontrou na visão de liberdade da paisagem dos anos joaninos do Memórias de sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida (CÂNDIDO, A. Dialética da malandragem. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, (8), 67-89, 1970. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/download/69638/72263/)
O trabalho escravo, elidido na obra de Almeida, tem seu correspondente nos "instantes" de violência para com as figuras não-burguesas que aparecem distribuídos como que en passant, nos cenários do protagonista de Chico. Mas como diz Sérgio Rodrigues nas orelhas do livro, podemos localizar o povo, e acrescento aqui o trabalhador, na alegoria dos castrati: aqueles que são escolhidos para serem mutilados e infantilizados, com a participação da religião, para trabalharem em prol do deleite dos mandatários.
Na praia do boneco dourado (diga-se, em novo contexto: um capitão de milícias) há preguiçosos, vagabundos, trabalhadores informais, cabuladores, viados, maconheiros, policiais pardos e larápios pretos. Mas não nos esqueçamos dos castrati.
Em Essa gente, Chico Buarque explora a dimensão paradoxal da alegoria ao transformar os proletários em seu exato contrário: os eunucos.
E, ao mesmo tempo em que o eunuco é posto no Paço Imperial, recolocando o Brasil como colonizado, o boneco dourado é plantado na sala de um apartamento de luxo do Leblon, de onde, é muito provável, se bateu panelas pelo golpe contra a Dilma. Redobra-se, entre o romance e o romance dentro do romance, na forma de um mise en abyme, o ódio do Brasil que somos e que nunca chegou a ser realmente moderno e a violência do Brasil escravocrata que nunca deixamos efetivamente de ser.
CLXXXVII
"À fama, mais que ao vero dão ouvido,
querendo que ela a sua opinião sancione,
antes de arte ou razão terem ouvido."
(ALIGHIERI, D. A Divina Comédia: Purgatório. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 173 (XXVI, 121-3).)
Em épocas do imperativo das imagens, sustentado pelas mídias, redes sociais e outros que tais - arautos assumidos da indústria cultural - o trecho acima do Purgatório de Dante, quase um haicai, ganha tonalidades proféticas: a busca da fama, antes um vício, tornou-se uma virtude. Passagem livre ao Paraíso dos Narcisos aqueles que fizerem hoje o culto à própria imagem e a correta administração de um Eu de sucesso.
Ao alcançar o Eu, como previram Horkeimer e Adorno no Dialética do Esclarecimento, a lógica administrativa impõe-se como totalitária (como bem tem destacado ultimamente Marilena Chauí): tudo na esfera humana atual, até o eu e seus afetos, está tomado pela racionalidade tecnológica própria da lógica administrativa.
O Eu-empresa, termo com o qual podemos melhor vislumbrar as raízes históricas dos narcisismos contemporâneos, é uma realidade concreta, estabelecida e inconsciente, de modo a pulular entre os psicanalistas dos quais, juntamente com algumas outras áreas de conhecimento, esperar-se-ia minimamente sua crítica.
Que a fama tenha passado historicamente do vício à virtude explica que, na teoria lacaniana, o escabeau, como identificação ao sinthoma, tenha feito do narcisismo um fim de análise.
DEZEMBRO 2019
CLXXXVI
"Grupos de trabalhadores ignorantes - diz a nota - açulados pelos catequistas vermelhos, se rebelaram contra os seus patrões, exigindo maior salário e melhores condições de vida. E, como se isso não fosse já uma manifestação clara e contundente dos propósitos de violar o estado legal e social das relações entre o capital e o trabalho, há duas noites, como é do conhecimento público pelas amplas informações proporcionadas pelos órgãos da imprensa nacional, foi descoberto um plano revolucionário pelo qual se pretendia tomar de assalto um dos quartéis desta capital. [...] o governo se viu obrigado a decretar disposições drásticas para reprimir os surtos isolados do comunismo que já começaram a se manifestar em diversos setores da República".(GÓMES, J.A. Farabundo Martí: herói do povo de El Salvador. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, s.d., p. 23).
Esta citação é trecho do boletim do governo do general ditador Hernández Martínez, de El Salvador, e faz referência ao massacre do levante camponês de 1932, com a brutal liquidação de milhares de pessoas.
Nas periferias do capitalismo são milhares os levantes, milhões os mortos.
Quantos mais boletins semelhantes a estes ainda teremos?
"Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém, que está disposto a usar a violência e a criminalidade sem nenhum limite [...] Esta é uma batalha que não podemos perder, [por isso] o general Javier Iturriaga, chefe da Defesa Nacional, reuniu 9.500 homens (agentes das Forças Armadas) para salvaguardar a paz, a tranquilidade, os direitos e liberdades" (citação de Sebastián Piñera, presidente do Chile, de 21/10/19 retirado de: https://www.google.com.br/amp/s/www.brasil247.com/mundo/estamos-em-guerra-afirma-pinera-presidente-do-chile-assumindo-discurso-da-ditadura%3famp).
E temos ainda a fala do nosso ministro da economia:
"É irresponsável chamar alguém pra rua agora pra fazer quebradeira. Pra dizer que tem que tomar o poder. Se você acredita numa democracia, quem acredita numa democracia espera vencer e ser eleito. Não chama ninguém pra quebrar nada na rua. Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo pra quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?" (Citado em 26/11/19 em: https://www.google.com.br/amp/s/g1.globo.com/google/amp/politica/noticia/2019/11/26/paulo-guedes-fala-da-possibilidade-de-novo-ai-5-se-corrige-e-diz-que-e-inconcebivel-declaracao-provoca-reacoes.ghtml)
CLXXXV
"AQUELE QUE NOS CONTAVA AS HORAS
Aquele que me contava as horas
continua a contar.
Que estará ele a contar, diz?
Conta e torna a contar.
Não faz mais frio,
nem mais noite,
nem mais húmido.
Só aquilo que nos ajudava a escutar
agora escuta
para do sozinho.
(CELAN, P. Sete rosas mais tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, p. 49)
Num país sob ameaça de golpe, quando o amanhã fica suspenso, onde as liberdades - que já eram poucas para muitos - não estão mais garantidas e o silêncio se transforma pouco a pouco em peso cotidiano, a experiência do tempo muda. Cada minuto é percebido, cada hora é contada. Sob o clima de dominação o tempo não flui, arrasta-se. Para os dominados, a história paralisada é espera que se acumula. Pequenos instantes de esperança - alguns fatos em que a semente da transformação se atualiza, como a libertação do Lula - são vividos como um relâmpago na escuridão contínua do tempo.
Um estranho cansaço que abate mais o espírito que o corpo dá mostras da energia que a indignação consome para manter acesas as centelhas da aposta na ruptura com o capitalismo.
Seria este momento em que a dominação se explicita em tantos lugares um sinal de "cansaço", de esgotamento do capitalismo (ou ao menos de sua forma neoliberal)? Ou seria o abatimento que estou sentindo o deparar-se com o tempo longo da história do capitalismo?
NOVEMBRO 2019
CLXXXIV
"'Ler o que não foi escrito.' Esta forma de leitura é a mais antiga: a leitura antes de toda linguagem, a partir das entranhas, dos astros ou da dança. Mais tarde apareceram instrumentos intermediários de novas formas de leitura, runas e hieróglifos. Tudo indica que foram essas as etapas que permitiram a entrada na escrita e na linguagem daquele dom mimético que em tempos fora o fundamento das práticas ocultas. Assim sendo, a linguagem seria o grau mais elevado do comportamento mimético e o mais completo arquivo de semelhanças não-sensíveis: um medium para o qual migraram definitivamente as antigas forças da ação e da ideia miméticas, até ao ponto de liquidarem as da magia." (BENJAMIN, W. Sobre a faculdade mimética. In: Linguagem, tradução, literatura. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 55-6).
Ler o que não foi escrito. Tomar por linguagem o que não é linguagem. Eis uma riquíssima definição de mimese. O ato mimético, ao buscar fazer Um com o Outro que a natureza veste, lê o que se oferece em sua superfície: estrelas, entranhas, manchas, conchas, folhas caídas. Quantas destas coisas que constelam em superfícies se escondem hoje na linguagem? Em superfícies pouco audíveis e visíveis a não analistas como sílabas que se repetem, vícios de linguagem, repetições de lugares discursivos, objetos corporais, pregnâncias de imagem?
O inconsciente é o refúgio do encantamento mimético. Não à toa muitos fenômenos analíticos parecem mágicos quando não formalizados.
E o que Benjamin chamou de o mais completo arquivo de semelhanças não-sensíveis não é o mesmo que Lacan chamou de alíngua?
No céu d'alíngua brilham rabiscos e garatujas rupestres prenhes de desejos e traumas dos antepassados de uma família, de uma comunidade, de um povo. Quando o falar a um psicanalista permite que o sol do sentido e do senso comum se ponha, anoitece estrelado o dizer.
CLXXXIII
"Não tinha motivo nenhum para matar quem quer que seja no Rio de Janeiro."
Ao responder deste modo à reportagem da Globo que envolve seu nome no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, Bolsonaro desloca a questão do âmbito do matar ou não matar para o do ter ou não ter motivo.
Sua frase carrega uma confissão inconsciente: "havendo motivo [e o que bastaria para ser um motivo a alguém com tal mentalidade?], mato."
(Por outro modo de ler logicamente a frase, poderíamos pensar que seus motivos para matar apontavam na ocasião para outro lugar, não para o Rio de Janeiro: "não tinha motivo para matar quem quer que seja no Rio de Janeiro, mas em X...")
Esta maneira rude e supostamente transparente de dizer tudo é o que atrai a identificação de pessoas que pensam como ele. Por isso, quaisquer críticas se tornam inócuas para elas. Não há, como seria de se esperar, a dimensão do espanto. Quanto mais abjeto é o discurso de um líder boçal, mais viscosa é sua mediocridade e mais pegajosa ela se torna para quem o ouve sem a capa protetora da razão.
CLXXXII
A apologia do sucesso, que alimenta milhares de horas vazias dedicadas às redes sociais, é o cimento firme que pavimenta o caminho mais curto para a identificação cega com a história dos vencedores. Se a acedia, como apontou Benjamin na sua sétima tese sobre o conceito de história, é um sentimento que impede a ruptura da identificação afetiva com os dominadores, em tempos de redes sociais a veneração da imagem vem ocupar lugar muito semelhante.
Se a melancolia implica a aceitação passiva da dominação existente como destino inevitável, o culto à imagem como índice de fama e sucesso é a versão cínica e arrebatada da mesma aceitação.
Nos atuais mass media, mesmo para se falar em favor dos vencidos, é importante fazê-lo com ares de vencedor: afinal, o que ficará para a posteridade é a fotografia e não o que foi dito.
As postagens e disseminações de fotografias que reúnem os intelectuais de esquerda aos finais de seus encontros dão claro testemunho desta vaidade. Nelas podemos ver no orgulho de suas expressões que, em segredo, era mesmo por esse momento que mais esperavam, servindo seus entusiásticos discursos em prol da transformação social como meios para tal fim.
Talvez sirva tanto para a ideologia de nossos dias quanto serviu à de em 1828 o seguinte trecho de Victor Cousin, historiador, filósofo e político francês da Escola Eclética:
"Normalmente, só se vê no sucesso o triunfo da força, e uma espécie de simpatia sentimental nos leva em direção ao vencido; espero ter demonstrado que, uma vez que é preciso haver sempre um vencido, e que o vencedor e sempre quem deve sê-lo, é preciso provar que o vencedor não só serve à civilização, mas é melhor, mais moral, e que, por isso, é o vencedor." (COUSIN, V. citado em: LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses "Sobre o conceito de história". São Paulo: Boitempo, 2005, p. 72.)
CLXXXI
"À percepção é atribuível não um número em princípio infinito de significações possíveis, mas um número infinito de possíveis interpretações. A interpretação não é transparente na sua relação com o que é interpretado. A interpretação refere-se àquilo cuja leitura se sugere e está presente; a significação, àquilo que é significado e está ausente. A interpretação, na sua relação com a significação, é exata, é o esquema desta, o cânone da possibilidade que faz com que um significante possa significar alguma coisa. Esse esquema (o cânone da significação) é a significação de uma possibilidade de significar. Ao atribuírmos a uma configuração na superfície a significação da sua possibilidade de significar, estamos a interpretá-la. Interpretar uma coisa é subsumir nessa coisa enquanto significante a possibilidade de significar como algo de significante. As possibilidades de interpretação da percepção são infinitas, mas ao mesmo tempo simples em relação a um 'de cada vez e todas as vezes' ainda por determinar (o que não tem a ver com manifestação, ou acontecimento)." (BENJAMIN, W. Fragmentos de filosofia da linguagem e epistemologia. In: Linguagem, tradução, literatura. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 29-45, p. 30.)
Este parágrafo de um curto fragmento de Benjamin sobre percepção permite-nos levantar muitas questões que tocam a prática cotidiana do psicanalista.
Benjamin propõe a interpretação como um ato de leitura dos sinais que se constelam numa dada superfície.
Há uma opacidade na relação entre a interpretação e o que se constela sobre a superfície. As infinitas possibilidades de interpretação se devem a esta opacidade. Porém a leitura à qual a interpretação aponta está presente enquanto constelação sobre a superfície, enquanto que a significação que disso se extrai carece de elementos que não fazem parte do que se constela. A interpretação lê as infinitas possibilidades da constelação, mas a significação engessa uma interpretação possível sob o peso fantasmático do que está ausente na constelação. Neste sentido, a interpretação da constelação é, em si mesma, distância e resistência à submissão aos pré-julgamentos da significação.
A psicanálise se caracteriza por forçar a possibilidade de significação em elementos heterodoxos, ou seja, ela busca, no que se diz, superfícies inabituais para ler o que nelas se configura para além da significação corrente. Uma repetição silábica, uma homofonia ou uma interrupção de frase são tomadas como elementos sobre a superfície do dizer; e a constelação que formam, como o ressoar de outra coisa neste dizer. É nisto que consiste a interpretação psicanalítica naquilo que faz dela o esquema da significação, mas não a própria significação.
A interpretação aponta onde está a letra, mas é a significação que lhe dá o sentido ao referir-se ao significado, isto é, ao que está ausente na superfície.
No querer dizer do que se configura na superfície a interpretação aponta uma falta, falta que a significação vem tamponar com o que está ausente. Sustentar o passo entre a interpretação e a significação é suportar a presença desta falta, presença de um furo pelo qual o querer dizer garante sua liberdade poética.
CLXXX
Enquanto o Brasil avança sem freios rumo ao neoliberalismo, no Chile o neoliberalismo mostra as entranhas de seu fracasso e de sua violência.
Nosso destino não será a Venezuela, como comemoram os bolsonaristas, mas o Chile.
CLXXIX
Misteriosas manchas de óleo invadem praias paradisíacas do Nordeste brasileiro.
Um ano que começou com o mar de lama de Brumadinho, termina com um mar de óleo no mar.
Entre estas duas catástrofes, uma floresta em chamas.
Lamas, chamas, manchas.
E o sangue das periferias.
CLXXVIII
"A representação da luta de classes pode induzir em erro. Não se trata nela de uma prova de força, em que seria decidida a questão: quem vence, quem é vencido? Não se trata de um combate após cujo desfecho as coisas irão bem para o vencedor, mal para o vencido. Pensar assim é encobrir romanticamente os fatos. Pois, possa a burguesia vencer ou ser vencida na luta, ela permanece condenada a sucumbir pelas contradições internas que no curso do desenvolvimento se tornam mortais para ela. A questão é apenas se ela sucumbirá por si própria ou através do proletariado. A permanência ou o fim de um desenvolvimento cultural de três milênios são decididos pela resposta a isso. A história nada sabe da má infinitude na imagem dos dois combatentes eternamente lutando. O verdadeiro político só calcula em termos de prazos. E se a eliminação da burguesia não estiver efetivada até um momento quase calculável do desenvolvimento econômico e técnico (a inflação e a guerra de gases o assinaram), tudo está perdido. Antes que a centelha cheguei a dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado. Ataque, perigo e ritmo do político são técnicos - não cavalheirescos." (BENJAMIN, W. Rua de mão única. In: obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 45-6)
Neste fragmento de Benjamin, apropriadamente intitulado - a tomá-lo em nossos dias - "alarme de incêndio", leio o esforço em tirar a história do trilho romântico do embate entre dois personagens. A questão posta por Benjamin em nível de urgência pressupõe a autodestrutividade imanente à razão burguesa: ou rompemos o curso histórico do progresso capitalista ou assistiremos a destruição certa do planeta.
A esquerda brasileira ainda espera o príncipe encantado que virá no futuro, oriundo do chão da fábrica ou do gabinete da universidade pública, como um protetor dos fracos disposto a lutar por eles, pobres coitados. Há algo não só de messiânico, mas de medieval nas apostas de parte considerável da esquerda brasileira. Quando ela não visa a reconciliação com a burguesia, tende ao apego religioso ao pai salvador. Nossa fantasia de nação do futuro nos impede de ver o país em chamas.
CLXXVII
"Conheci rios,
sombrios e antigos rios
minha alma tornou-se profunda como os profundos rios."
(Do poeta afro-americano Langston Hugues, citado por Frantz Fanon em Pele negra - máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 116)
Trazemos em nós as águas mais distantes. Correm por nós rios de outros tempos, outras épocas. A herança fluida e fugidia que empedra em nosso corpo e em nossa alma como segunda natureza, jorrada desde os atos e palavras de pais, tios, avós, vizinhos, ancestrais.
Cada fala e cada ato nosso banha-se nesse rio, seja ele frio às vezes, quente noutras, ou lodoso, ou límpido. Nossos riachos de cada um, nossos ribeirões comuns, nossos rios coletivos, nosso grande rio. Quantas veredas nos atravessam? Cada um, o cruzamento de uma hidrografia cavando curso ou guardada em subsolo.
Nossos caminhos em muitos momentos deságuam em leitos comuns. Não são poucos os sedimentos que compartilhamos, as pedras e o húmus que legamos em silêncio há gerações.
Precisamos com urgência buscar ouvir as águas que nos atravessam e derreter nossas pedras seculares.
Para onde irão estas águas quando conseguirmos romper a barragem e o frio que as seguram?
A história pode ser retida, condensada na repetição, fazer-se natureza. Mas quando ela flui, quando se rompe o que impede seu fluxo, não há como saber seu curso ou se ela chegará ao mar.
CLXXVI
"Dispostas em diálogo umas com as outras, as esculturas de José Bezerra lembram as descrições que Euclides da Cunha faz da região de Canudos, na primeira parte de Os sertões, 'A terra': '(...) árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, de flora agonizante...'. Realmente, a visão que Euclides da Cunha formula em seu livro delineia uma natureza conturbada que parece antecipar o conflito armado de Canudos. [...] No entanto, penso que a ambição de José Bezerra é, ao mesmo tempo, mais modesta e mais histórica que a de Euclides da Cunha. A expressividade angulosa de seus trabalhos - acentuada pela disposição em conjunto - não pretende criar uma cosmologia tumultuosa que faça do sertão e de sua realidade natural a matriz das realidades do mundo. O conflito que o move advém da compreensão de que o próprio meio que contribuiu decisivamente para o surgimento de seu trabalho - essa região em que o contato operoso com a natureza mantém um vínculo com a cidade que não chega a ameaçá-la - está prestes a ser posto abaixo pelas mudanças aceleradas nas relações econômicas do país. Além disso, estou convencido de que o escultor intui como poucos a extensão da tragédia que ronda todo o planeta, as ameaças que a natureza enfrenta em escala mundial." (NAVES, R. José Bezerra: natureza e expressão. In: José Bezerra: escultura. São Paulo: Galeria Estação, 2009, p. 15.)
É notável como Rodrigo Naves pôde ler como a arte de José Bezerra apresenta mimeticamente a realidade em destruição de seu tempo. Seja pelo material que Bezerra utiliza - o que a natureza oferece como seus despojos -, seja pelo seu modo característico de trabalhá-lo - extraindo dele a mínima forma ambiguamente colocada entre o que não se concluiu e o que já está se decompondo (ou como escreveu Caetano Veloso num dos versos de Fora da ordem: "Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína") -, o artista desvela, no resto, a memória que ele sugere, como se as formas dos garranchos que encontra escondessem uma história paralela e extinta. José Bezerra confirma isso quando diz esculpir animais que já matou, como se quisesse reconstruir em seu museu uma natureza agredida sem negar-se a representá-la enquanto tal: seu mundo das ideias, pela arte, reconcilia-se com o mundo sensível, do mesmo modo que - à maneira da Eternidade pelos astros de Blanqui - o passado ao qual suas obras aponta se encontra, num tempo mimético que só a arte permite ver, com o futuro anunciado de seu mundo tomado pela ganância sem limites.
OUTUBRO 2019
CLXXV
"'Porquê e para quê... Porque tinha de conversar, talvez, comigo ou contigo, tinha de conversar, com a boca e com a língua, e não só com a bengala. Pois... com quem conversa ela, a bengala? Conversa com a pedra, e a pedra - com quem conversa ela?'
'Com quem, meu irmão, há-de ela conversar? Ela não conversa, fala, e quem fala, meu irmão, não conversa com ninguém, fala porque ninguém o ouve, ninguém e Ninguém, e depois é ele que diz, ele e não a sua boca, e não a sua língua, ele e apenas ele diz: estás a ouvir?'" (CELAN, P. Diálogo na montanha. In: Arte poética. Lisboa: Cotovia, 1996, p. 38.)
Para conversar é preciso subir a montanha. Tantas redes sociais e ninguém está a ouvir. É preciso uma bengala para conversar. As imagens não têm boca, não tem língua. As imagens Photoshop não falam, escondem, ocultam as pedras, os corpos mutilados pelo cotidiano. Escondidos sob as imagens os corpos viram pedras. As pedras gritam por traz das imagens. Os corpos fora das redes carregam bengalas e conversam com elas, mas Ninguém ouve. Ninguém fala. Ninguém sai às ruas. Mas, das redes sociais, Ninguém pode ver.
CLXXIV
"No primeiro ano do hitlerismo, o antropólogo Spamer, meu colega, que conhece tão bem a origem e a transmissão de lendas, disse-me uma vez, quando lhe falei horrorizado do estado mental do povo alemão: 'Se fosse possível [naquele tempo ele ainda considerava que essa era uma hipótese irrealizável] impor uma linha única a toda a imprensa e a todo o sistema de ensino, de modo a reiterar que a Guerra Mundial de 1914-1918 não existiu, em três anos todos acreditariam que de fato ela não existiu.' Em nosso primeiro encontro prolongado, quando lembrei Spamer dessas palavras, ele me corrigiu: 'Sim, me recordo, só que você está enganado. Naquela ocasião eu disse, e agora repito com mais ênfase: em um ano!'" (KLEMPERER, V. LTI. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 190.)
Estamos vendo, nos dias de hoje, em quão pouco tempo pessoas próximas estão negando a existência das atrocidades da ditadura militar brasileira de 1964-1985, com base em difusão de mensagens e videos de WhatsApp.
Que um especialista em transmissão de lendas (em folclore alemão) - que, inclusive, fez carreira como chefe do Reich para o folclore - tenha previsto a força do controle totalitário da comunicação sobre as crenças humanas, é prova de que já é bastante conhecido o poder da linguagem de produzir a regressão do esclarecimento ao mito.
Nenhuma fase de esclarecimento é garantia contra esta regressão: se não resistirmos à redução dos lugares de saber a meios rasos de informação, estaremos cada vez menos em condições de identificar a barbárie em nosso cotidiano.
Hoje é imperativo que gritemos as absurdas diferenças entre o que é lenda e o que é história.
CLXXIII
72.843 focos de incêndio no Brasil.
Em chamas, parte do território brasileiro arde o descaso destrutivo do capitalismo mais selvagem.
Da lama de Brumadinho à Amazônia em chamas o ódio autodestrutivo avança sem metáforas sobre tudo o que pode representar a vida.
Quando a lei, corrompida, para de operar, as formas destrutivas da Coisa invadem o mundo.
CLXXII
"O que mais me espanta é ver como para eles é perfeitamente natural, por exemplo, a exposição sem limites de si próprios, de um eu amaneirado, ensimesmado, inconsciente - em resumo, jornalístico. E como o oportunismo impregna, até aos mínimos pormenores, aquilo que escrevem." (BENJAMIN, W. Perfil da nova geração. In: Linguagem, tradução, literatura. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 116)
Interessante ver como a crítica feita por Benjamin em 1930 à nova geração de escritores se aplica tão bem aos dias de hoje. O que Benjamin talvez não imaginasse é que os escritores ruins da nova geração de 1930 se degradariam em youtubers depois de 2005.
CLXXI
"Quando nossos medos forem todos transformados em episódios de uma série, nossa criatividade censurada, nossas ideias levadas ao mercado, nossos direitos vendidos, nossa inteligência reduzida a palavras de ordem, nossa força exaurida, nossa privacidade leiloada; quando a vida estiver completamente transformada em encenação, em entretenimento, em comércio, então vamos nos encontrar vivendo não numa nação, mas num consórcio de indústrias em que seremos totalmente ininteligíveis uns para os outros, exceto pelo que conseguirmos ver através de uma tela escura." (MORRISON, T. Racismo e fascismo. In: serrote 32. São Paulo: Instituto Moreira Salles, julho 2019, p. 4-17. p. 17)
O retrato que Toni Morrison faz do futuro fascista só pode ser evitado se anteciparmos a tela escura. Quando desligamos a tela o que vemos nela refletida?
O ser humano primitivo saia da caverna, encontrava o mundo, se encantava e voltava para mimetizá-lo nas paredes de seu abrigo.
Hoje, evoluído, o ser humano teme sair da frente da parede. Fora da caverna, o Outro de hoje é muito mais assustador que o smilodon.
(Mas ele não vê que são as paredes que o fazem acreditar nisso.)
Quem hoje pinta as paredes não tem dentes de sabre. Tem dinheiro e, com ele, compra tintas que fazem os desenhos parecerem reais. Mas continuam sendo desenhos.
(E é ele quem realmente tem medo de que as pessoas saiam das cavernas encantadas.)
CLXX
"Há certos loucos que observam as caras das pessoas e o seu comportamento. Não por serem epígonos do positivismo de Lombroso (como grosseiramente insinua Ferrara), mas porque conhecem a semiologia. Sabem que a cultura produz códigos; que são os códigos que produzem o comportamento; que o comportamento é uma linguagem; e que num momento histórico em que a linguagem verbal é toda ela convencional e esterilizada (tecnicizada), a linguagem do comportamento (físicos mímico) assume uma decisiva importância.
Assim, para tornarmos ao princípio do nosso discurso, parece-me que há boas razões para afirmar que a cultura de uma nação (neste caso concreto a Itália) se exprime hoje em dia sobretudo através da linguagem do comportamento, ou linguagem física, mais um certo quantitativo - completamente convencionalizado é extremamente pobre - de linguagem verbal.
É a este nível de manifestação linguística que se manifestam: a) a manifestação antropológica dos italianos; b) a sua total normalização a partir de um único modelo." (p. 37)
Porque o velho fascismo, se bem que através da degeneração retórica, fazia distinções: enquanto o novo fascismo - que é muito diferente - já não distingue ninguém: já não é humanisticamente retórico, mas sim americanamente pragmático. O seu objetivo é a reorganização e a normalização brutalmente totalitárias do mundo." (p. 40)
(PASOLINI, P.P. O verdadeiro fascismo e por consequência o verdadeiro antifascismo. In: Escritos corsários, cartas luteranas: uma antologia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 35-40.)
Neste longo trecho Pasolini nos alerta que o novo fascismo nos atravessa a todos que não podemos ser loucos o bastante para ler como os códigos culturais adentram a linguagem, o comportamento, o corpo das pessoas, fazendo-as mimetizarem os modelos de consumo. No caldo de cultura o fascismo é a normalização totalitária e administrada de todos os passos de consumo das pessoas.
O que devem beber, fazer nas férias, com quem devem foder e em quem devem votar. Mas também como deve ser o corpo, o andar, o jeito de olhar, o que postar nas redes sociais e até o que fazer escondido fora delas.
O novo fascismo é um grande algoritmo-olhar que recolhe o que fazemos e nos devolve como opções as mercadorias adequadas para a doutrinação capitalista do desejo. Como se não houvesse espaços para a falta, o algoritmo-olhar logo vem com uma mercadoria para que nada de sujeito ali apareça em sua singularidade desejante.
O cruzamento de padrões de consumo e a estatística dos assuntos de redes sociais permitem a produção de um perfil de consumidor médio ideal, modelo investido pelas propagandas, veículos de comunicação de massa e influenciadores virtuais. O caldo de cultura é hoje produzido e administrado em rede. Os códigos estão facilitados pela lógica reflexiva dos cliques em massa. Não é mais sequer preciso extraí-los dos comportamentos da moda.
Os ódios há tempos estão disseminados nos comentários de internet e redes sociais. O imediatismo e a velocidade da transmissão em rede, a ausência de mediação e crítica, e o impacto da informação massiva, podem transformar em verdade, em questão de horas, quaisquer protocolos de sábios quaisquer.
Temos ao menos uma geração formada para ser extremamente eficiente em comunicações de alta velocidade, mas incapaz de se deter no pensamento que exige a pausa reflexiva, a espera da construção de sentidos, a lentidão do processo analítico.
O pensar codificado da linguagem degradada devido ao enxugamento de sentidos necessário à formalização tecnológica retira do trabalho intelectual o encantamento e a dimensão poética. Estes são imprescindíveis para alimentar a sensibilidade questionadora da realidade e dar subsídios subjetivos à transformação da experiência em razão.
No caldo de cultura em que vivemos a experiência cotidiana de mutilação se torna transtorno de personalidade ou comportamento a ser extinto por tecnologias psicológicas.
Cada vez menos as pessoas ouvem o próprio sofrimento fora das nosologias de ajustamento social.
Nas depressões que se multiplicam vemos a presença mortificada da experiência de cada um. No tédio crescente, a incapacidade socialmente produzida de sustentação do desejo. Nas crises de pânico que muitos sentem paira o encontro súbito com a mais cruel verdade: a brutalidade do totalitarismo fascista escancarado no cotidiano administrado de cada um.
CLXIX
Se à linguagem cumpriu recolher as heranças filogenéticas da mimese primitiva, mas com o passo importante de transformá-la num jogo de semelhanças não sensíveis, então, em que medida podemos tomar o próprio trabalho teórico-conceitual de buscar homologias entre uma dada estrutura e um material bruto investigado como uma espécie avançada de mimese?
Quando, em psicanálise, fazemos correlacionarem-se um recurso topológico e um material clínico, não é um jogo de semelhanças não sensíveis que estamos jogando a partir das leis da linguagem matemática, por exemplo?
E até que ponto este trabalho nos permite avançar no campo do não-idêntico da coisa, isto é, de fazermos falar contingencialmente algo de um real que não se entrega às colagens imaginárias da razão identitária?
Com isto estou propondo que a busca de homologias, de semelhanças entre uma estrutura e um material que supomos estruturado deve ser tomada dialeticamente como um instante que se constela, mas no qual o objeto não se deixa apanhar por completo, por ser vivo (isto é, histórico), singular e responder ao próprio trabalho de formalização.
Só se pode do inconsciente se aproximar a cada vez e caso a caso. Não se o aprisiona no espelho da teoria ou da estrutura utilizada para dele conseguir a luz fugidia de um instante.
CLXVIII
Quando parte da população brasileira, seguidora de um presidente mentiroso, nega junto com ele a verdade, as referências orientadoras do desejo e as insígnias imaginárias do cotidiano se fragilizam. A relação estreita entre a realidade e a ideologia escancara a dimensão fictícia da sociedade. As instituições deixam de ser lugares de sustentação, de recurso e mediação social para serem fonte de discursos de justificação da ficção da camada que sustenta o poder e escolhe o que vai ser verdade e o que vai ser mentira.
Sintomas fóbicos, ansiedades, despersonalizações, tristezas e outros sintomas decorrentes de abalos egóicos e de perdas de objeto tornam-se frequentes.
Sem uma verdade sustentável, o sentimento é de não ter mais aonde se segurar.
O fascismo impõe sua fantasia coletiva, sem preocupar-se em esconder que ela é mentirosa. É como estar num pesadelo, saber que é um sonho e não conseguir acordar.
Num contexto de escalada fascista, o pesadelo é de verdade.
CLXVII
"Os típicos líderes fascistas são frequentemente chamados de histéricos. Não importa como chegaram a esta atitude: seu comportamento histérico satisfaz certa função. Embora realmente reflitam seus ouvintes na maioria dos aspectos, diferem deles em um ponto importante: não conhecem inibições ao se exprimir. Eles atuam de forma vicária por seus ouvintes desarticulados ao fazer e dizer o que os últimos gostariam mas não consegue ou não se atrevem a tal. Violam os tabus que a sociedade de classe média colocou sobre qualquer comportamento expressivo por parte do cidadão normal e realista. Pode-se dizer que alguns dos efeitos da propaganda fascista são conseguidos por essa ação invasiva. Os agitadores fascistas são tomados a sério porque arriscam a ser passar por todos." (ADORNO, T.W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora UNESP, 2015, p. 145)
Temos visto a imprensa utilizar as tolices de Bolsonaro como forma de minar a sua força. Ninguém tem dito, no entanto, o quanto isso é esperado por seus seguidores. Muitos vibram quando assistem nas falas grotescas desse presidente o que eles pensam sem jamais terem mostrado. A tolice instituída na figura do presidente tende a ser autorizada e multiplicada. (Exemplo disso são os excessos no trânsito, que retornaram depois da proposta presidencial de flexibilização das leis porque impedem o prazer em dirigir: "você não tem mais o prazer em dirigir, a qualquer lugar que você vá está cheio de radar.")
Preocupada com a esculhambação ética e moral do presidente, a imprensa faz crítica do comportamento, mas sem refletir sobre o caldo de cultura em que se encontra. Não enxerga que o problema não se resume à precariedade de Bolsonaro, mas à função de vicariedade que ele exerce. As tolices de Bolsonaro fazem seguidores ao invés de afastá-los, pois são o retorno da face violenta e recalcada da mediocridade historicamente construída pela indústria cultural de massa.
CLXVI
Caminhamos com o Povo Sem Medo na manifestação Ditadura Nunca Mais, que foi do MASP ao antigo DOI-CODI, na rua Tutoia - do museu de arte à delegacia de polícia...
Não foram poucas pessoas, vindas de diversas ocupações do MTST.
Seguravam fotos de pessoas mortas pela ditadura.
Esta manifestação trouxe novamente à tona a memória dos traumas que muitos, incluindo o atual governo, querem manter esquecidos.
A Comissão da Verdade, suspendeu o recalque de nosso passado recente. Não foi sem efeitos. Parece que, em resposta, os fascistas saíram do armário para tentar apagar novamente a memória.
Nossa democracia estava assentada sobre o preço do esquecimento dos assassinatos políticos. Sem dar voz a este trauma, ela seguirá frágil.
(Durante a caminhada, alguns gritos de protesto apareciam. Mas o silêncio chamou a atenção: por vezes, aquela marcha pareceu mais uma procissão do que uma manifestação política.)
CLXV
"Desapareceu o prazer de ter recebido a maçã de presente. Aquela alma caridosa, simples e ingênua, com forte sensibilidade antinazista, apesar de muito humana, estava infectada pelo elemento principal do veneno nazista; identificava 'alemão' com o conceito mágico de 'ariano'; soava-lhe quase inadmissível que uma 'alemã' pudesse ser casada comigo, um estranho, um ser de outra categoria no reino animal." (KLEMPERER, V. LTI, Rio de Janeiro: 2009, p. 144)
A infecção pela linguagem que se solidifica no uso comum é aquela que transforma o que é histórico em falsa natureza. O estranhamento no afeto de Frieda, a antinazista de quem Klemperer recebeu a maçã endereçada à sua esposa "alemã" acamada, compõe parte da linguagem que se estende para além da sua dimensão estrutural significativa. A dimensão mágica adquirida pelo termo alemã, associada a ariana e contraposta a judeu, não é mágica, mas forjada historicamente. O recalque do seu processo de naturalização, a ponto de ser reproduzida até mesmo por uma antinazista, é o que dá sua aura mágica. Corresponde à dimensão mimética da linguagem, os depósitos de sedimentos históricos que fazem dela o relevo social.
(Pessoas de bem em oposição a petistas e gente de esquerda, é um termo nosso e atual que pode estar nos infectando.)
CLXIV
"A partir daí, pode se levantar a questão de saber o que o mundo, o que chamamos de mundo no começo, com toda a inocência, deve ao que lhe é devolvido por esse palco. Tudo o que temos chamado de mundo ao longo da história deixa resíduos superpostos, que se acumulam sem se preocupar minimamente com as contradições. O que a cultura nos veicula como sendo o mundo é um empilhamento, um depósito de destroços de mundos que se sucederam e que, apesar de serem incompatíveis, não deixam de se entender muito bem no interior de todos nós." (LACAN, J. O Seminário 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 43)
Neste trecho, em que Lacan comenta a obra Pensamento selvagem de Claude Lévi-Strauss, articulando razão analítica razão dialética, notamos que a história como encenação deixa resíduos sobre o tempo cósmico do mundo, ou seja, a estrutura como tempo de longuíssima duração.
Podemos notar aqui também o quanto que o conceito posterior de alíngua como aluvião, se articula com as marcas históricas que se acumulam e se transmitem entre gerações.
Se Lacan chegou a formular que não há relação sexual a não ser entre gerações, podemos indagar se esta relação não se dá justamente na forma dessa transmissão real de alíngua. A fantasia edípica, assim, seria uma maneira de dar forma épica e imaginarizada ao que acontece carregado de real.
Por essa citação é possível interrogarmos as relações entre aquilo que na psicanálise buscamos cernir como alíngua e aquilo que Benjamin teorizou como resquícios filogenéticos da mimese na linguagem: o que era esforço mimético de conciliação com a natureza no homem primitivo tornou-se o aluvião da alíngua depositado historicamente sobre a estrutura da linguagem.
CLXIII
Os artistas ainda gritam.
As instituições da República seguem corrompidas.
O povo não vai pra rua.
Estamos entrando no noite.
CLXII
Perguntado sobre o massacre de Altamira, no qual 62 pessoas foram mortas, Bolsonaro respondeu: "Pergunta para as vítimas dos que morreram lá o que eles acham. Depois que eles responderem, eu respondo vocês".
Está manifesto que a política de extermínio do "bandido bom é bandido morto" chegou ao poder.
A facilidade com que a destruição é colocada como solução prática de uma suposta limpeza e purificação sociais revela o gozo mortífero do ódio fascista.
Mas não é somente gozo. A racionalidade tecnológica embutida neste tipo de silogismo macabro que levou, por exemplo, à morte os deficientes mentais da Alemanha nazista, por não poderem gerar bons filhos e trazerem despesas para o Estado, esconde, em seu horror, o tamanho do medo que o movimenta.
O fascista é um covarde diante da assustadora diferença e goza com sua eliminação.
Diante de seu medo de perder-se mimeticamente no outro, reduz o outro ao fascínio do objeto de seu pior gozo. Todo facínora tem pavor do desejo ardente que tem por aquilo que destrói.
A destruição criminosa do criminoso é uma síntese dialética como realização mimética da mimese negada: a paixão pelo crime.
AGOSTO 2019
CLXI
O ataque dos milicianos garimpeiros aos índios Wajãpi, do Amapá, não é um conflito local, mas uma das realizações da política de extermínio que vem sendo gestada no Brasil desde o golpe de 2016.
Esta política é o terrível retorno explícito à cena dos traumas de um Brasil cuja modernidade bárbara sempre se fez ao preço da vida de índios e negros.
Matar índios e negros neste país nunca se tornou algo do passado.
CLX
Tive um sonho em que as pessoas, no meio de uma selva escura, quando saiam de sua plataforma de segurança, eram comidas por seres devastadores e vorazes.
Dos ódios aos medos. Os afetos sociais têm se modificado. O aumento das ameaças do governo, a prisões arbitrárias de militantes de movimentos de esquerda, a presença de militares filmando professores em encontro científico, a prisão de hackeres que teriam invadido celulares dos mais altos cargos dos três poderes, a publicação apressada e interesseira de regulamentação que poderá será usada para deportar Glenn Greenwald... Fecha-se o cerco do autoritarismo com a produção do clima de medo social. Precisou-se alimentar os ódios para a escolha de um governo de extrema direita, agora, governo eleito, precisa-se alimentar os medos para que ele justifique sua investida autoritária de centralização do poder e suspensão de garantias.
Nós, analistas, que acolhemos raivas, rupturas e os efeitos da intolerância nos últimos meses, a partir de agora, provavelmente, vamos receber e ouvir mais fobias.
CLIX
Em que medida, com o avanço da sociedade de consumo, a ideologia da raça pura não teria se deslocado para os imperativos da imagem?
Do caractere hereditário ao corpo montado (do Photoshop às próteses e outras tecnologias de franksteinização, passando pela farmacêutica), busca-se ostentar na encarnação da imagem um suposto ideal de superioridade.
CLVIII
Numa obra de Warley Desali, acrílica sobre tela, de 2019, lemos na margem inferior: "GENTE IQUAl A GENTE MORRE" (sic). A cena é composta, em primeiro plano e do centro à porção esquerda da tela, de uma mesa redonda com quatro bancos redondos em volta, todos, em sua simplicidade, em tons escuros entre o azul, o roxo e o cinza.
Encontram-se num ambiente quadrangular, que sugere um chão avermelhado, feito de terra, talvez, cujos limites parecem se alongar para os lados e para baixo, mas não para cima, onde encontra, próximo à margem superior, com um outro retângulo mais claro, pintado em bege na sua superfície e em amarelo e preto nas bordas, sugerindo a base de uma parede que sobe do chão para além das margens do quadro.
Uma superfície em perspectiva, mais baixa que a mesa e colocada ao lado direito dela, como se fosse a ponta de um balcão que continua à direita do quadro, tendo seu topo, margeado em laranja-avermelhado, em tons próximos aos da mesa e dos bancos e a lateral em marrom, como área menos iluminada da cena.
O primeiro encontro com o quadro, com a leitura da frase subscrita, convoca o olhar não ao que se apresenta, mas ao que se ausenta do quadro: onde está a "gente" duplamente presente na frase?
A frase, assim, transforma os objetos ali representados numa cena, da qual saíram as figuras humanas. E para onde teriam ido? Estarão por perto? Próximos às margens ocultas do quadro? Ou o lugar está realmente vazio (exceto pelo olhar solitário do observador)? Inevitável que se conclua que foi a morte que tenha retirado dali os atores.
Pintada de modo quase ingênuo (as imprecisões das pinceladas fazem as manchas parecerem de guache), com pinceladas reforçando os contornos - uma técnica infantil de desenho - a imagem é feita de modo a transmitir as marcas melancólicas e líricas da recordação do artista. A vibração criada pelos contornos reforçados gera um ambiente emotivo, uma linguagem expressionista. O contraste entre o quente da cor do plano de fundo e o frio da cor do que se encontra em primeiro plano realça a solidão dos objetos, por um lado, e o calor aconchegante do ambiente, por outro. Colisão de afetos que extrai a crueza pueril dos traços do risco do esquematismo banal.
A simplicidade da mesa, dos quatro bancos e do quintal ou salão, retratam um lugar pobre, possivelmente um ponto de encontro em algum lugar periférico da grande Belo Horizonte, periferia bastante presente, de modo crítico, mas também afetuoso, nos trabalhos do artista. O erro proposital da palavra "IGUAL", grafada "IQUAl", visa indicar também esse elemento de simplicidade. A atração da observação para esse erro gráfico produz ainda destaque para a identificação solicitada pelo artista com o ambiente cultural por ele retratado. Identificação dada não só pelas decisões estilísticas pictóricas como também pela função poética da duplicação em espelho da palavra GENTE.
É tocante o modo como a técnica utilizada e a narrativa escolhida com a presença da frase sugerem os destinos incertos e violentos dos jovens de periferia com os quais o artista escancara sua identificação (Desali pintou este quadro, provavelmente, com 35 anos) e nos convida a ela: se os atores não estão ali, é porque se encontram no velório de um amigo assassinado, arrisco-me a dizer. E parece-me que sou levado a isso menos por fantasias e preconceitos meus do que pelo exame estético e do conteúdo do quadro, que, por esta razão, tem a perspicácia de remeter o observador à existência de outra cena: cada observador que se dedique a interrogar a obra - e ainda que não tenha informações sobre a vida do artista - constelará, a seu modo, mas com os dados ali mostrados, esta outra cena.
Desali quase que nos obriga a vermos a periferia por seus olhos, suas lembranças, suas reflexões e suas dores, mas, fundamentalmente, nos põe a vê-la pelo lado de dentro, revelando ao observador de origem burguesa, criticamente, sua condição periférica e alienada em relação aos sobreviventes da classe trabalhadora.
CLVII
A teoria da origem da linguagem de Richard Paget, apresentada e defendida por Benjamin, segundo a qual o elemento primário é o gesto e não o som, abre interessantes perspectivas para o entendimento das relações entre o significante e o corpo.
Citando Paget:
"O sorriso inaudível transformou-se num 'haha' emitido ou ciciado, o gesto de comer transformou-se num 'mnha, mnha' audível (ciciado), o de sorver pequenas quantidades de líquido é o antepassado da nossa palavra atual 'sopa'! E por fim veio a importante descoberta de que os sons guturais de rugidos e grunhidos podiam ligar-se aos movimentos da boca, e a fala ciciada, quando associada a um som gutural, se tornava perceptível e audível a uma distância dez a vinte vezes maior do que antes." (apud BENJAMIN, W. Problemas da sociologia da linguagem. In: Linguagem, tradução, literatura. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 81).
Ao que conclui Benjamin:
"E assim se associa, segundo Paget, a articulação como gesto do grande aparelho da linguagem ao grande círculo da linguagem mimética corporal. O seu elemento fonético é o suporte de uma comunicação cujo substrato original foi um gesto expressivo." (BENJAMIN, W. idem, p. 81).
E ainda um pouco mais:
"Essa perspectiva, que descobre as raízes da expressão linguística e da balética numa mesma faculdade mimética, leva-nos ao limiar de uma fisiognomia da linguagem que ultrapassa em muito, em alcance e dignidade científica, os primitivos ensaios onomatopaicos." (p. 82).
Ao condicionar a origem da linguagem aos movimentos expressivos do corpo, Benjamin evoca a relação entre corpo- imagem e significante-som como equivalentes naquilo que se dá a ver e se dá a ouvir. Tendo suas raízes numa mesma faculdade mimética, a linguagem e a expressão gestual, corpo e significante, passam a ser moldados por um certo endereçamento ao Outro; o dançar vira voz assim como o falar é fazer corpo. Em que medida, quando Lacan evoca o mistério do corpo falante, não está justamente apontando pra essa mimese comum na raiz da linguagem e da dança? Em que medida a pulsão, enquanto dizer do corpo, não substancializa o elo deste encontro original entre linguagem e expressão corporal? E em que medida também o sintoma não é um dizer especial pelo qual a linguagem dança e o corpo fala?
JULHO 2019
CLVI
"É como as sementes que ficaram durante milênios hermeticamente fechadas nas câmaras funerárias das pirâmides e conservam até hoje o poder de germinar." (BENJAMIN, W. O contador de histórias. In: Linguagem, tradução, literatura. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 147).
Esta alegoria que Benjamin utiliza para diferenciar uma história de uma informação, nos faz perguntar: em que medida, enquanto psicanalistas, não buscamos nas pirâmides das neuroses, as sementes germináveis das histórias ali enterradas?
CLV
"A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. "A verdade nunca nos escapará" - essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela." (BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224)
Um parentesco da psicanálise com o materialismo histórico pode ser considerado a partir desta citação de Benjamin: a verdade não-toda com a qual se depara a psicanálise não pode ser jamais uma verdade inescapável. As marcas de gozo que uma psicanálise põe a falar não falam senão por uma evanescência relampejante diante da qual algo do passado pode ser reconhecido. Este instante constelar é aquele mesmo em que um falante se sente atravessado por uma ordem de determinação passada que se transforma em causa presente, na mesma medida em que, de uma forma lógica modal, experimenta-se algo que se tomava por necessário revelar-se em sua condição de contingência.
Recordando Lacan:
"Sejamos categóricos: não se trata, na anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes." (LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 257)
O apelo que as derrotas silenciosas do passado faz ao presente não é passível de esquecimento absoluto. Ele ali permanece com todo o seu peso, repetindo-se nos mais fantasmagóricos e estranhos sentimentos, nos mais enigmáticos sintomas, nas mais injustificáveis inibições, como um céu ensolarado sobre o qual as estrelas seguem ocultas à espera de que a noite venha. Não se pode traçar constelações durante o dia. É preciso enfrentar o medo da noite e deixar que ela venha. Só assim algo pode ser lido no céu com o qual, por um instante, nos identificamos mimeticamente. A astrologia ali encontrava a verdade magicamente antes que a linguagem historicamente absorvesse a mimese humana.
"'Ler o que nunca foi escrito.' Esta forma de leitura é a mais antiga: a leitura antes de toda a linguagem, a partir das entranhas, dos astros ou da dança. Mais tarde apareceram instrumentos intermediários de novas formas de leitura, runas e hieróglifos. Tudo indica que foram essas as etapas que permitiram a entrada na escrita e na linguagem daquele dom mimético que em tempos fora o fundamento das práticas ocultas. Assim sendo, a linguagem seria o grau mais elevado do comportamento mimético e o mais completo arquivo de semelhanças não-sensíveis: um medium para o qual migraram definitivamente as antigas forças da ação e da ideia miméticas, até ao ponto de liquidarem as da magia.' (BENJAMIN, W. Sobre a a faculdade mimética. In: Walter Benjamin: linguagem, tradução, literatura. Belo \Horizonte: Autêntica, 2018, p. 56)
Liquidada a magia, mas não a mimese, a psicanálise surge como prática capaz de fazer ressoar/relampejar constelações no dizer e, por meio delas, dar a ouvir/ver o real que, do passado, assombra o presente à espera de um reconhecimento e de um destino.
Entre o Benjamin pré-materialista de a doutrina das semelhanças, que busca a filogenia da mimese, e o Benjamin materialista de sobre o conceito de história, que compreende o presente como acúmulo de ruínas de uma história sedimentada, há em comum o esforço teórico de encontrar meios para fazer cessar a tempestade que sopra do paraíso e empurra o anjo da história para um futuro feito de um amontoado de ruínas até o céu.
A psicanálise pode vir
aqui somar forças se permitir-se ler e interpretar no que escuta essa mesma
tempestade.
CLIV
"A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos e intelectuais. Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. Com a inibição, teve início a inútil repetição de tentativas desorganizadas e desajeitadas." (HORKHEIMER e ADORNO, idem, p. 240).
Arrisco duas premissas: onde há violência, há gozo; onde há violência, não há sentido.
Há uma dimensão real de gozo que, fundada na violência, não encontra sentido. Desde a perspectiva civilizatória e humana, não há justificativa cabível a qualquer ato de violência contra o ser. Podemos refletir sobre a dimensão ética possível em atos de violência que negariam a negação do ser - como uma contra-violência -, mas temos, de qualquer forma, de enfrentar o risco de racionalizações que afirmariam a violência sob o discurso de proteção do ser.
O ponto que nos toca nesse momento é que, não havendo justificativa, explicação, razão possível, para um ato de violência, não há como considerá-lo pela via do sentido: a violência não tem e não faz sentido. É real, portanto, e não encontra inserção imediata nos registros do simbólico e do imaginário. Isto faz, estruturalmente, do ato de violência, um trauma. E como todo trauma, uma cicatriz social, pois não há trauma que se dê fora do laço social. Não há trauma do qual não se possa tecer circunstâncias sociológicas e históricas (e os psicanalistas não deveriam se esquecer disso).
Deparamo-nos, não poucas vezes, com discursos que banalizam a violência, mas, embora isso possa ser um forçamento de imaginarização da violência (e, deste modo, já uma tentativa de tratá-la), os discursos banalizantes do mal seguem sem suporte na razão. Toda tentativa de racionalização da violência é necessariamente sustentada no narcisismo das pequenas diferenças, isto é, num princípio especular, imaginário e não simbólico. Para que se entenda a articulação estreita que aqui proponho entre simbólico e razão, é importante ressaltar que um argumento simbólico não pode se apoiar em qualquer premissa, mas numa que se apoie num imperativo categórico, isto é, num princípio ético e com um compromisso com a verdade (não-toda). Por consequência, o argumento racional-simbólico, suportado no imperativo ético, considera a castração e a alteridade, enquanto que o argumento racionalizado-imaginário, pautado pela inflação do eu, nega a castração e a alteridade.
Quanto do que nos chega ao consultório não são marcas traumáticas de violências históricas? Marcas de uma re-petição por um lugar simbólico negado pela violência. E quanto nossos analisantes precisam falar e falar e falar para buscar um modo singular de cingir esta marca real de modo a construir uma solução desejante que sirva de lugar simbólico (no laço social, portanto) àquilo que re-pede? (E que fique claro que o encontro de um lugar simbólico atravessado por uma condição desejante não tem relação nenhuma de parentesco com o conceito de ajustamento social.)
Os sofrimentos cotidianamente relatados a um psicanalista, para além de sua fenomenologia psicológica e psicologizante (isto é, terapêutica), apontam para um real de gozo que, estruturalmente, se apresenta como esforço repetido de um querer dizer e, social e historicamente, como a cicatriz de um encontro com algo que extrapolou os limites simbólicos e imaginários do laço social. Tomar o sofrimento não somente por seu viés terapêutico-psicológico, mas por seu traumático real de gozo, é tomá-lo ao mesmo tempo psicanalítica e politicamente.
Do ponto de vista dialético, dar voz às marcas traumáticas de violências históricas é retirá-las da condição cristalizada do tempo no sujeito para transformá-las em sujeito no tempo. Quando silenciam, as marcas condensam a história; quando falam, fazem-na.
Os ajustes egóico-terapêuticos do sofrimento realizam, antes, uma silenciosa
adequação narcísico-imaginária das marcas de gozo, o que difere do
forçamento-interpretação destas marcas capaz de fazê-las dizer seu indizível.
No que diz respeito às consequências no laço social, a adequação narcísica
contribui mais com a cisão cínica do sujeito do que com sua responsabilização,
como desejante que é, diante das marcas de sua história pessoal, familiar,
identitária e de classe social. E esta diferença deveria bastar para apontar a
distância entre o fazer psicanalítico e uma psicologia do ego.
CLIII
Para mim é muito difícil falar de psicanálise em nossos dias politicamente noturnos sem voltar e re-voltar às duas últimas páginas do Dialética do Esclarecimento, onde encontramos uma reflexão tão breve quanto profunda, atribuída a Adorno (embora o livro seja assinado também por Horkheimer). Esta minima moralia adorniana, nomeada Sobre a gênese da burrice, traz como alegoria um caracol, que recolhe suas antenas mediante a violência social.
"O símbolo da inteligência é a antena do caracol "com a visão tateante", graças à qual, a acreditar em Mefistófeles, ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Em seus começos, a vida intelectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende do músculo, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo sofrimento físico, o espírito pelo medo. Na origem as duas coisas são inseparáveis." (HORKHEIMER, M. & ADORNO, T.W. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991, pp. 239)
Em 1974, Lacan disse o seguinte sobre a angústia: "A angústia é justamente alguma coisa que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo" (LACAN, J. A terceira, inédito).
O sofrimento físico e o medo são inseparáveis na origem porque também o
são o corpo e o espírito. Antenas recolhidas na concha é o que a nós,
psicanalistas, nos chega em tempos sombrios. Mas é também o que nos chega como
marcas herdadas de tempos sombrios outros. Que a teoria da evolução de Lamarck
não tenha ido tão longe no âmbito das pesquisas científicas, não podemos negar
que algo da sua intuição sobre a transmissão de caracteres adquiridos nos legou
a possibilidade de interrogar se os significantes de uma geração não se
transmitem como silêncios grafados no corpo. Como conchas, calcificamos em nós
um tempo que nos excede os anos de vida. Ao falarmos de nossos sintomas, no
espiralar da concha desdobramos heranças sedimentadas e algo ali ganha voz,
ousando sair de novo como órgão independente. Recolhidas e identificadas com o
todo, as antenas fazem sintoma. Quando tateiam o mundo, fazem desejo.
CLII
"Demoremo-nos um instante nesse sintoma de altíssima civilização, - denomino-o o pessimismo da força. O homem, agora, não precisa mais de uma 'justificação do mal', ele abomina precisamente o 'justificar': frui o mal pur, cru, acha o mal sem sentido o mais interessante. Se antes teve necessidade de um deus, delicia-o agora uma desordem do mundo, sem deus, um mundo do acaso, em que o terrível, o equívoco, o sedutor, faz parte da essência. [...] Também esse pessimismo da força termina com uma teodiceia, isto é, com um absoluto dizer-sim ao mundo - mas pelas mesmas razões em função das quais outrora lhe foi dito não -: e dessa forma leva à concepção deste mundo com o mais alto ideal possível, efetivamente alcançado." (NIETZSCHE, F. idem, p. 399-400).
Nietzsche apresenta a civilização como o processo de tratamento do mal: o acaso, o incerto, o súbito. A ciência e a filosofia, o cálculo e o pensamento das causas, tornaram prescindíveis as justificações religiosa e moral do mal. Em contrapartida, o sintoma da altíssima civilização, ou o pessimismo da força, tornou-se a própria fruição do mal. A assimilação mimética do sem sentido, da desordem e do terror, porém, deve ser aqui pensada antes como uma negação das formas mágicas de tratamento do mal do que de uma verdadeira aceitação do real nele implicado. Uma mimese perversa, ou de segundo grau, conforme encontramos em Horkheimer e Adorno. Por isso Nietzsche vê nesse sintoma da civilização uma teodiceia, um absoluto dizer-sim ao mundo, como uma reconciliação totalizante (e totalitária, como vemos em suas expressões históricas) em que o mal, com o qual se negociava magicamente, agora é atuado e gozado cínica e performaticamente. O sintoma da altíssima civilização não significa a derrubada e muito menos a superação do pai gozador do mal, mas, antes, sua encarnação multiplicada pelos irmãos, ou o gozar da identificação com ele na forma e na lógica próprias ao narcisismo das pequenas diferenças.
A civilização que inventou o pai para tratar do medo do mal, aprendeu, com o dito progresso, a canibalizar o pai como ilusão de sua suplantação. Como tratamento do mal, deus e demônio são um só: o pai que protege e ama e o pai que submete e goza são frutos da mesma invenção diante do real e do não-todo. Esta representação do mal, tê-la ou sê-la, é igualmente supor o domínio sobre a natureza (e o mal).
As relações cínicas entre a ciência e o capitalismo dão provas da orientação do progresso rumo ao acúmulo de ruínas da visão do anjo da história de Benjamin. No ponto de chegada do progresso, a reconciliação máxima entre o esclarecimento e a maldade, na destruição total.
CLI
"O que é o mal? Três coisas: o acaso, o incerto, o súbito. Como o homem primitivo combate o mal? - Concebe-o como razão, como potência, como pessoa mesmo. Com isso ganha a possibilidade de entrar com ele em uma espécie de pacto e, de modo geral, atuar previamente sobre ele - previni-lo." (NIETZSCHE, F. parag. 1019. In: Os Pensadores, vol. XXXII. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 399).
Identificado o mal com elementos reais de ruptura do todo - o acaso, o incerto, o súbito - combatê-lo implica a invenção do pai-exceção - aquele que sabe, lugar da potência, do poder -, restaurador (lógico e ilusório) do todo. O pai-potência e o evento (acaso, incerto, súbito) têm em comum serem o mal. E o mal, seja numa forma ou noutra, é real. Porém, Nietzsche, com esta reflexão, nos alerta para o fato de que o pai é uma resposta do homem primitivo à contingência. Que o pai seja necessário para fundar o todo, não é necessário como resposta ao mal da contingência, pois este todo só pode controlá-la ilusoriamente, neuroticamente. O campo do todo, no fim das contas, não passa da personificação mimética do real comportado pelo não-todo.
Quando a psicanálise admite o mito da horda primeva, neurose freudiana, como estrutura, transforma em ciência a resposta mágica do homem primitivo.
CL
Se nas famílias subsistem as tiranias derrubadas pela Revolução e se há nas primeiras crises análogas às da segunda, como psicanalistas nos cabe, política e eticamente contrários às tiranias, dar voz às potencialidades históricas presentes nessas crises. Ouvir um ser falante como se ali estivesse gritando sua ascendência derrotada e ouvi-lo também como se dali se pudesse chamar o devir de um sujeito novo. No ato de fala de uma sessão de análise não se conta somente a história de um sujeito, mas se desdobra a história condensada em sintoma e neurose: o falar põe em movimento uma história que faz sujeito.
Numa análise, o falar ilumina o passado como coisa presente e, às vezes, faz rupturas entre eles inventando futuros novos. A história constela, de modo não linear, o desejo como determinação e causa. Apresentam-se no ato de fala as marcas ainda vivas do passado e um conjunto imensurável de futuros disponíveis, todos ali presentes, no aguardo do desejo que os possa costurar.
CXLIX
"A Revolução [Francesa] não derrubou todas as tiranias; os males que se reprovavam nos poderes despóticos subsistem nas famílias; nelas eles provocam crises análogas àquelas das revoluções." (MARX, K. & PEUCHET, J. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 28-9)
Neste breve trecho de um pequeno artigo assinado por Marx, em 1846, o autor aponta aquilo que, mais tarde, Fernand Braudel veio a chamar de diferentes temporalidades da história. A longa duração do despotismo da sociedade patriarcal resistiu às transformações da Revolução Francesa e resiste ainda hoje. Mais do que isso, Marx parece ver no âmbito das famílias a secularização no particular daquilo que foi derrubado da esfera social.
As estruturas medievais de poder político e social do cristianismo puderam cair depois de introjetadas e condensadas no núcleo mais íntimo dos laços sociais.
A imposição da lógica heteropatriarcal deixa de ser percebida quando se naturaliza como "auto-imposição" construída nos menores movimentos das relações familiares.
Mas assim como aquilo que se derrubou em sua forma social mais ampla segue presente em formas mais restritas, a possibilidade da tirania retornar historicamente atualizada à sua forma ampla também persiste. Não à toa o clamor pelo autoritarismo ecoa nas instituições de resguardo das tiranias familiares, como algumas religiões. E não à toa os totalitarismos de direita rapidamente fazem pesar suas injustiças sobre tudo aquilo que entendem ser ameaça ao modelo familiar do presépio cristão (que inclui, diga-se de passagem, o alheamento das decisões sobre o corpo e o destino da mulher, como foi com a virgem Maria).
Enquanto psicanalistas, ouvimos diariamente, na forma de histórias e crises familiares, o devir de possíveis revoluções. Dar voz a este devir não nos coloca em mãos o poder da revolução, mas, ao supormos a analogia entre o que da sociedade se mantém ainda guardado na esfera familiar, permite-nos deixar constelar a história cristalizada que ali se esconde.
CXLVIII
Nas análises, os analisantes colocam como objetiva a solução de um enigma, sem perceberem, num primeiro momento, que objetiva é, unicamente, a intenção de aproximar suas questões e problemas da esfera simbólico-significativa.
"Precisamente porque na palavra, que, enquanto tal, é já 'palavra do enigma' existe um núcleo simbólico fundador para além do que por ela é comunicado, o símbolo de uma não possibilidade de comunicação." (Fragmento Sobre o enigma e o mistério, in: BENJAMIN, W. Linguagem, tradução, literatura. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 38-9).
Em toda palavra que comunica há um núcleo da impossibilidade de comunicação e, por decorrência, "o cerne do símbolo é o mistério" (idem, p. 38).
A interpretação analítica, diante da impossibilidade de apontar a resposta objetiva do enigma, não pode fazer outra coisa que apontar a objetividade da intenção nele escondida como modo subjetivo de tamponar o cerne misterioso do símbolo.
CXLVII
Entendo o fragmento Teoria do conhecimento de Benjamin como uma resposta à Kant. O estado-do-mundo-perfeito, que existe enquanto postulado necessário, se assemelha tanto ao mundo platônico das ideias quanto ao plano da coisa-em-si.
Mas Benjamin propõe o acesso fragmentário, não-todo a ele por meio da dialética do conhecimento que só se realiza temporalmente em ato no Agora da possibilidade de conhecer.
CXLVI
[Reflexões paraconsistentes e paracompletas a partir do fragmento Teoria do conhecimento de Walter Benjamin (In: Linguagem, tradução, literatura. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 36-8).]
Somente no estado-do-mundo-perfeito podemos postular a ser verdade das coisas. Lá elas existem próprias e inteiras [Ex./Fx].
Conhecê-las nos coloca como limite o Agora da possibilidade do conhecimento, dentro do qual a ação e a percepção entram necessariamente de forma incompleta, imprópria e irreal, tendo em vista a limitação do conhecimento ao conceito [/Ex./Fx].
A existência da verdade real no estado-do-mundo-perfeito, assim, só nos é acessível de modo fragmentado e irreconhecível, pelo que da constituição das coisas e do limite do conceito nos chega no Agora da possibilidade de conhecimento [/Ax.Fx].
Porém, uma vez formalizado o conhecimento, as tentativas ou as tendências não dialéticas de apagar as distâncias entre o Agora da possibilidade de conhecer e o estado-do-mundo-perfeito, expandindo a ação e a percepção conhecedoras para além do tempo lógico do conhecimento e fundando-as numa validade intemporal, pressupõem a fixação do conhecimento, que seja na consciência do sujeito do conhecimento, quer seja na fixação identitária do objeto [Ax.Fx]. A falsidade aqui se perfaz em conhecimentos que se naturalizam, em objetos que se completam, em verdades que se apropriam inteiras.
O trabalho teórico do conceito não pode deixar de confrontar Ax.Fx com Ex./Fx para que /Ex./Fx e /Ax.Fx possam constelar-se no Agora da possibilidade de conhecimento.
CXLV
Se o ser falante, para ex-sistir, para tampar o furo de sua significação ou para fazer corpo recorre às atuações de semelhança ou aos regimes identificatórios da analogia, do parentesco (ou da aparência) e da mimese, o saber fazer do psicanalista, por sua vez, consiste em ler as constelações destas atuações, destes regimes - no nó RSI que formam - e interrogá-las em sua história, com o propósito de extrair delas o seu devir na forma do sujeito desejante.
CXLIV
No fragmento Analogia e parentesco, de 1919 (in: BENJAMIN, W. Linguagem, tradução, literatura. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 33-6), Benjamin difere semelhança, analogia e parentesco. Considera que, em sentido próprio, isto é, não metafórico, somente substâncias podem ser semelhantes entre si. A analogia, enquanto semelhança metafórica, é semelhança de relações e não de substâncias. Já o parentesco, cuja essência julga enigmática, implica o ser como um todo, sem divisões. A analogia nas serve de fundamento para o parentesco, embora a semelhança, em alguns casos, possa anunciar parentescos.
Benjamin dá como exemplo ouvir música e imaginar uma paisagem ou um poema. O que aí entra em jogo é uma analogia, enquanto que o que se aparenta à música é a pura emoção.
A emoção não se orienta pela analogia, pois esta é movida pela razão: dois triângulos são análogos na medida em que encontramos as semelhanças racionais entre suas relações. Já a emoção parece ser índice do parentesco: "na emoção do povo pode apreender-se de imediato o parentesco entre as pessoas." (p. 36).
Por equivalência, talvez possamos pensar três dimensões de identificação na clínica. Quando extraímos de um discurso os lugares e as relações que ele faz repetir em contextos diversos, estamos num plano de analogias simbólicas - poderíamos dizer melhor hoje: homologias. Mas localizamos também nos discursos as semelhanças especulares, as identificações imaginárias carregadas de afetação, o que nos coloca sob o plano benjaminiano do parentesco. Mas seria mesmo interessante pensarmos um assemelhamento de substâncias, capaz não só de marcar o corpo, como também de fazer corpo por meio dele. Não teríamos um esforço de mimese da Coisa no plano desta identificação real?
CXLIII
"Hoje, todos alcançaram um grau de desprezo profundo pelos cometas, esses miseráveis brinquedos dos planetas superiores que os puxam e empurram de mil maneiras, os inflam com fogo solar e terminam por jogá-los longe aos farrapos. Que decadência! Que respeito humilde, o de outrora, quando eram saudados como mensageiros da morte! Quantas vaias e assovios, desde que se sabe que são inofensivos! Essa atitude é bem típica dos homens." (BLANQUI, L-A. A eternidade pelos astros, Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 34)
Neste pequeno fragmento de Blanqui, revolucionário comunista francês, escrito durante sua última prisão, entre 1871-79, podemos ver de que modo a ciência de sua época agiu sobre o mundo encantado anterior. A condição de desdém à qual são lançados os cometas, antes sinais grandiosos de ordem mágica e divina, revela ao autor encarcerado a inversão encantatória mais do que a indiferença desencantada. Algo semelhante ao que Adorno e Simpson disseram sobre o destino do ídolo musical:
"Gostos que tenham sido impostos aos ouvintes provocam desforra no momento em que a pressão é relaxada. Os ouvintes compensam sua 'culpa' por terem tolerado o sem-valor, tornando-o ridículo. Mas a pressão só é relaxada quando são feitas tentativas para impingir alguma 'novidade' ao público. Assim, a psicologia desse efeito de trivialidade é reproduzida sempre de novo, podendo continuar indefinidamente." (ADORNO, T. W. e SIMPSON, G. Sobre música popular [1941]. In: COHN, G. (org.) Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1994, p. 115-46, p.142)
Resguardadas as distâncias históricas e os mecanismos próprios da manipulação capitalista industrial da cultura de massas, há em comum o fato de Blanqui denunciar como atitude típica dos homens o gesto de desforra, como se a mimese de outrora, que produzia medo quando da passagem de um cometa, tivesse agora, esclarecido o que é um cometa, que ser recalcada por uma mimese perversa que tem na censura platônica dos poetas sua forma mais antiga e, na mais atual, a destruição fascista das expressões artísticas. A inversão mimética é aquela que dá aos homens o lugar de mensageiros da morte e aos cometas o lugar dos homens ínfimos e inofensivos diante da natureza.
Cabe-nos notar, no entanto, que o tratamento lúdico e poético que Blanqui dá ao assunto em seu texto devolve à mimese o lugar que lhe foi negado no tratamento dado aos céus pela ciência de sua época.
CXLII
Um garoto cheio de alegria, habilidade e talento. Com um futuro brilhante.
Tornou-se um machista acusado de estupro, polêmico, lesionado e sem orientação.
Enquanto ídolo de um Brasil contemporâneo, Neymar é a própria condensação particular da totalidade. Nas reviravoltas e decadências da história de sua imagem vemos refletir a história do país.
Em que medida algumas pessoas erguidas ao pedestal do herói nacional não servem justamente à expressão mimética do todo?
E como não pensar os efeitos sobre este jovem da passagem rápida de uma origem pobre a uma ilusão de riqueza e poder? Neymar, infelizmente, acreditou no produto de si mesmo que venderam às massas. Fagocitado pelo capitalismo, Neymar virou imitação grotesca da objetificação que ele fez e que fizeram de si mesmo. Na sua condição fake, Neymar exprime a verdade sobre nossa elite predatória.
CXLI
"Assim quis o acaso que se falasse uma vez em minha presença de gravuras [Kupferstich]. No dia seguinte, pus-me debaixo da cadeira e estendia a cabeça para fora; isso era um "esconderijo-de-cabeça" [Kopf-verstich]. Se, ao fazer isso, eu me desfigurava e a palavra também, eu só fazia o que devia fazer para criar raízes na vida. Aprendi em tempo a embrulhar-me nas palavras, que eram, de fato, nuvens. O dom de reconhecer semelhanças nada mais é do que um tênue resíduo da antiga coerção a tornar-se semelhante e a comportar-se de maneira semelhante. Essa coerção, as palavras a exerciam sobre mim. Não as que me faziam semelhante a modelos de virtude, mas a apartamentos, a móveis, a roupas." (BENJAMIN, W. apud GAGNEBIN, J.M. Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin. Perspectivas, São Paulo, 16: 67-86, 1993, p. 81).
No belo trecho acima podemos ver de que modo é possível associar o que chamamos de equívoco significante ao que Benjamin chamou de mimese. A semelhança material, sonora, imagética entre significantes, produz uma configuração mimética, o que não é o mesmo que uma cópia ou uma imitação, para além de seus significados e incluindo nisso o corpo. O dom que temos para inventar sintomas fazendo corpo com a matéria significante não é outra coisa que, ontogeneticamente, uma brincadeira de criança e, filogeneticamente, um ritual de magia. Os mais antigos e remotos monstros e fantasmas, deuses e heróis, horrores e fascínios seguem semi-presentes nos estranhamentos e entranhamentos cotidianos das coisas vistas, ouvidas, cheiradas, sentidas. E fazemos corpo, realidade e laço social utilizando fragmentos de todos estes elementais.
Nas formações do inconsciente encontramos, como segunda natureza, os resquícios históricos da dimensão encantatória e mítica que o processo civilizatório nos exigiu superar. Não à toa os sintomas se voltam, geralmente, contra a sociedade que os produziram, como crítica velada à dominação presente na socialização. No seu extremo, em sociedades totalitárias e fascistas, o recalque e seu retorno se reconciliam na barbárie, na forma da mimese perversa:
"A análise de Adorno e Horkheimer reforça a censura platônica graças ao motivo freudiano do recalque: a mímesis - identificação perversa -, repousaria sobre o recalque de uma primeira mímesis arcaica, ao mesmo tempo ameaçadora e prazerosa; o medo individual da regressão ao amorfo engendraria uma regressão coletiva totalitária, cuja expressão mais acabada é o fascismo." (GAGNEBIN, idem, p. 76)
JUNHO 2019
CXL
A neurose, enquanto segunda natureza de um sujeito desejante, traz em seu seio, justamente na forma dormente da força criativa do desejo, uma potência de transformação e invenção.
O trabalho da neurose por manter-se enquanto natureza é um silêncio imposto a essa força, silêncio que pode levar ao esquecimento da mesma como conformação social do sujeito objetificado.
Mas enquanto gritar dentro dele seus desajustamentos, há possibilidades de se lhe dar ouvidos aos apelos que não são outra coisa que desejo de transformação. O desejo que a neurose faz dormir sob o peso da repetição coisificante é um desejo de história. E é naquilo que não se ajusta às imposições do todo, das quais a neurose se alimenta, que podemos ouvi-lo chamar.
Dar ouvidos a esse desejo de história a ponto de fazê-lo assumir sua voz é um princípio ético da psicanálise. Mas é também um de seus princípios políticos saber ouvir e interrogar as imposições do todo e o trabalho silenciador da neurose.
CXXXIX
"No domingo aconteceu uma cena horrorosa aqui em casa com o casal K., que tivemos que convidar para um café. Fomos obrigados, pois o esnobismo da sra. K. nos dava nos nervos, a ambos. Ela não tem o menor senso crítico e repete tudo que ouve; mas o marido, apesar de se achar o sábio Nathan, parecia-me razoavelmente consciencioso. Entretanto, no domingo ele vem e começa a dizer que votaria 'sim' no plebiscito, com 'dor no coração', assim como a Associação Central dos Cidadãos Judeus. Sua mulher acrescenta que o sistema de Weimar se revelou impossível, de modo que era necessário 'manter o senso de realismo'. Perdi o controle. Esmurrei a mesa com tanta força que as xícaras tilintaram." (KLEMPERER, V. LTI, a linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 85).
Neste fragmento do diário de Klemperer, de 9 de novembro de 1933, podemos ver o quanto que, em momentos de ascensão do totalitarismo, a ignorância, representada pela ausência de senso crítico e antes tomada como característica pessoal (o "esnobismo" da sra. K e o "sábio Nathan" do sr. K), torna-se prova cínica da adesão à barbárie. A perda de controle de Klemperer não se deu por causa do esnobismo ou da empáfia de seus convidados, mas por ter se dado conta de que, em novo contexto social e político endurecido, tais características se tornam máscara do consentimento com o poder totalitário e com a violência contra os seus inimigos. A violência do murro na mesa de Klemperer, ainda que não justificável, foi um abrupto retirar da violência dos seus convidados a máscara de uma indiferente apatia.
Em contextos de ameaça à democracia a ignorância (cínica, neurótica ou imposta socialmente) se torna mimese da violência, mesmo quando a crítica falta no combate à falta de crítica, como no murro de Klemperer.
CXXXVIII
A tomarmos de empréstimo o autômato enxadrista da primeira nota sobre o conceito de história de Benjamin, em nossos dias de exaltada ideologia de guerra e narcisismos competitivos, a psicanálise deve enfrentar o risco de ter, sob a mesa do invencível boneco do desejo inconsciente indestrutível, o anão corcunda do indivíduo empreendedor.
CXXXVII
Ideologicamente é muito fácil percebermos nos argumentos contra os preguiçosos do bolsa família, contra os aproveitadores das cotas universitárias, contra os doutrinadores comunistas, contra a vagabundagem da forma de viver dos índios, contra as depravações estudantis das Universidades Federais, contra a imoralidade dos movimentos lgbtqia etc, que para além do radical e criminoso liberalismo econômico a nova direita brasileira tem um projeto claro de destruição das igualdades sociais.
A direita brasileira opera com a dicotomia liberdade versus igualdade. Como bem lembra Luis Felipe Miguel (A reemergência da direita brasileira. In: GALLEGO, E.S. (Org.) O ódio como política. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 20). "São silenciadas tradições filosóficas diferentes, que não operam com a dicotomia liberdade/igualdade, mas com as dicotomias liberdade/dominação (em que o problema central não é a interferência externa à ação individual, mas seu eventual caráter arbitrário) ou liberdade/necessidade (que introduz o problema da privação material como obstáculo ao exercício da autonomia humana)."
CXXXVI
As relações entre o Estado e seu apoio primitivo no patriarcalismo parecem ser, ao menos no Brasil, de tal ordem que as ideologias liberais de redução máxima do poder do Estado acabam encontrando uma grande parte de seus militantes entre religiosos que visam recolocar a família como substituta do Estado. Um movimento que podemos reconhecer como regressivo de algumas funções do Estado às suas raízes mais longínquas.
Ao mesmo tempo, o que resta de Estado nestas circunstâncias é, ele próprio, substituído pela lógica familiar. O clã Bolsonaro não mostra outra coisa senão isto: o Estado brasileiro, moderno ou não, foi construído com os tijolos históricos da Casa Grande. Quando bloqueadas suas tentativas de ser outra coisa que não isso, os arquétipos do senhor de Engenho, dos filhinhos de papai e de seus capangas emergem de seu esconderijo temporal endurecido com todas as suas faces.
CXXXV
Uma pintura/desenho de Elisa Bracher, da série encarnadas, nos convida à percepção do pseudo-orgânico. Pseudo por causa da frágil sustentação das três ou quase quatro figuras geométricas que se desfazem, derretem ou desmoronam na vibração propositalmente desencontrada entre traços pretos e as manchas em tons de vermelho-carne e bege-banha. A composição sugere um empilhamento de órgãos, como num corpo de superfície transparente, que não encontra apoio inferior e vai além do papel na parte superior. Uma estranha anatomia radiográfica ou ultrassônica, fortalecida, inclusive, pela permanência, no resultado final, da sobreposição das camadas de tinta.
A técnica utilizada, de pintar no papel manteiga que exige tempo para que a tinta seque, deixa exposta o processo em dermes que não se ocultam e tencionam-se entre si. Cada nova camada de tinta ou o traçado final são pensados em sua interdependência dinâmica, seja expressiva ou composicional: há a força de um equilíbrio que não sabemos ao certo se se busca ou se perde, blocos em condensação ou derretimento. A composição, a relação visceral entre forma e cor, aliás, revela pictoricamente o que a própria artista apresenta como origem desta série: "Um sonho que eu tive há muitos anos e que me persegue: eu abria o congelador da casa de uma amiga e tirava um tijolo que era uma carne e dois blocos de banha." (BRACHER, E. Encarnadas. Catálogo da exposição. São Paulo: BEI Comunicação, 2018, p. 21.)
A figuração geométrica, sígnica, proposta pela linha em oposição à abstração nevoenta, líquida, afetiva da mancha, expõe a contradição entre o impresso e a manifestação, como apontou Walter Benjamin (no fragmento Sobre a pintura, ou sinal e mancha. In: BENJAMIN, W. Estética e sociologia da arte. Belo Horizonte: autêntica, 2017, p. 111-5), mas ao mesmo tempo visa sua superação: "às vezes é como se você quisesse romper a distinção entre figuração e abstração, romper com uma disciplina do passado." (Elisa Byington em conversa com Elisa Bracher e Iole de Freitas, in: BRACHER, E. op. cit., p. 21.)
Limite e opacidade (do papel manteiga, inclusive), de um lado, vivacidade (da luz da mancha vermelha mais densa, ao centro, em especial) e vibração, de outro, dialetizam a experiência do que segue entre o que se contém e o que extrapola (inclusive o papel).
As direções marcadas e variadas das pinceladas do vermelho e as linhas pretas riscadas às pressas, aparentemente, contrastam com o tempo necessário ao secamento do trabalho e se oferecem como registro da dança do gesto em sua espera fóssil ou rupestre - fossilização para a qual contribui a ausência de textura da obra em função da forma de absorção do papel manteiga, aproximando a pintura do caráter documental da grafia.
Efêmero e eterno se encontram na materialidade da relação entre os pigmentos e o papel escolhidos. Com isso, o trabalho atinge, em consonância às varias camadas pictóricas, diferentes estratos de tempo: o tempo do gesto da artista, o tempo representacional do órgão vivo e em movimento, o tempo interpretativo do registro visceral e o tempo sugerido da fossilização dos anteriores. Um trabalho que nos remete às várias temporalidades históricas de Fernand Braudel, portanto. Não à toa, em conversa com a artista e com Elisa Byington, Iole de Freitas vê, nas obras dessa série, antes uma dimensão mineral do que a visceral sugerida pelo título "encarnadas" (cf. BRACHER, E. op. cit.). A sugestão geológica também presente no trabalho (e bastante coerente com as pesquisas estéticas anteriores de Bracher) reforça sua relação com tempos mais longos.
Se o processo produtivo e as características técnicas trazem algo do corpo no tempo (incluindo o corpo atuante da artista), a força expressiva do equilíbrio tenso dos órgãos força-no a algo do tempo no corpo.
Uma conclusão a que podemos chegar, e que talvez valha como verdade não somente para esta obra, mas para as obras da série encarnadas como um todo, é o quanto elas escancaram, em sua visceralidade exposta de modo gritante, um corpo do avesso, justamente aquele corpo que a história submete e que os imperativos contemporâneos da imagem visam negar ou esconder. O indivíduo, cada um, como corpo, não como aparência, em sua relação com os tempos.
CXXXIV
A conversão da desinformação - deformidade decorrente da indústria contemporânea de fake news - em opinião, isto é, a assimilação subjetiva do que é objetivamente falso, é um precioso mecanismo de negação da crítica. Muitas vezes, quando alguém reproduz, por exemplo, o bordão de que a chegada do Bolsonaro ao poder é culpa do PT, não o faz como transmissor ingênuo de uma propaganda falsa, mas como convicto arrimo da verdade última. A falta de objetividade nos argumentos que acompanham este slogan demonstra que a força de sua sustentação não é lógica, mas afetiva: alimentar o objeto de ódio nele presente e ali posto com este fim.
A inserção de um argumento racional que desmonte o slogan não encontra aí efeito, pois não se trata de uma discussão orientada pela razão. O ruído do ódio ensurdece seu portador. Mas, como fazer, uma vez que não se trata de abrir mão da razão? Como levar uma personalidade autoritária a ouvir sem ódio aquilo que lhe é discordante?
Talvez seja o caso de pensar que a verdadeira questão nestes casos não seja o tema objetivo da discussão, mas, justamente, o ódio nela presente. O objeto ao qual a razão deve voltar seu esforço não é o desmonte lógico de bordões, mas o ódio que sustenta os mesmos. O trabalho antifascista da razão talvez deva interrogar diretamente o ódio, muito mais do que o argumento fascista.
No exemplo dado, a chegada do Bolsonaro ao poder é culpa do PT, o objeto para a razão não é a falácia entre a ascensão fascista e o PT e muito menos o Bolsonaro ou o PT, mas o ódio.
CXXXIII
Se Damares Alves fosse lacaniana (hipótese absurda, reconheço), talvez em seu discurso de posse para a pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, dissesse: "meninos fazem todo e meninas são não-todas".
Possivelmente as limitações intelectuais de parte não pequena do público bolsonarista achasse isso estranho e sem sentido. Suponho, porém, que isto faria acordar uma parte grande dos psicanalistas lacanianos que não querem admitir a heteronormatividade patriarcal decorrente da divisão dos campos das fórmulas da sexuação em dois significantes: homem e mulher.
Série Vigília - Imbiruçu 2, óleo, encáustica e pastel seco sobre tela, 50cmx40cm, 2014.
CXXXII
Numa tela de Randolpho Lamonier, chamada Imbiruçu 2, vemos a paisagem seca, anti-idílica, anti-turística: um distrito industrial de Betim, na divisa com Contagem (região metropolitana de Belo Horizonte), em Imbiruçu localizamos a Usiminas, referência provável da siderúrgica presente na tela.
Oriundo da periferia, Lamonier traz um olhar atento às paisagens desconsideradas pelo olhar artístico tradicional.
Seu olhar, no entanto, não busca romantizar o periférico: o caráter esquemático da composição, quase infantil, retira o trabalho lento e delicado de uma opção mais lírica em benefício da expressão espontânea e imediata da memória afetiva (contribui para isso, provavelmente, o uso do pastel seco).
Uma escala cromática predominantemente organizada em tons de amarelos e cinzas - embora encontremos verdes entre os primeiros e azuis entre os segundos -, dividindo a tela um pouco acima de sua metade na horizontal, dá à paisagem uma leitura ao mesmo tempo seca e rude, desértica e sufocante.
A presença ostensiva da fumaça como coisa quase única ali em movimento (as nuvens também sugerem movimento) na parte de cima da pintura, parece contaminar a experiência que temos da parte de baixo, pois as manchas amarelo-laranja do solo do terceiro quadrante, bem como a forma dada à vegetação seca em fileira no primeiro plano, sugerem chamas, fogo, aumentando a temperatura do quadro como um todo, aproximando mimeticamente a própria paisagem da atividade da siderúrgica que nela encontramos (não à toa o artista tenha se utilizado da técnica da encáustica, que, lembremos, é gravar a fogo). Num detalhe cuidadoso, o artista pinta as raízes da vegetação em fila, talvez para equiparar a incandescência transparente do chão mais próximo do olhar ao metal fundido que o nome escrito no quadro convoca.
Aliás, é curioso notar que as chaminés saem do chão, como se a fumaça escura que vomitam viesse do ventre fervente desta terra em chamas, intensificando a mimese, neste caso, da natureza com a indústria em questão.
Na vertical, as três chaminés e os cactos espalhados em perspectiva dão profundidade ao descampado da cena, que revela que o urbano periférico não é diminuto, mas predominante, e só encontra limite na sombra de uma cadeia de montanhas ao fundo, que parece sustentar, junto com os três elos de nuvens, um alívio refrescante e um lugar possível fora daquele abandono.
Em sua imponência, o tamanho das três chaminés em relação aos cactos e o da siderúrgica em relação às outras três construções do quadro, deixam claro ao observador as razões históricas e sociais da paisagem: o poder industrial ali constituído e seus efeitos sobre a região transformando a natureza. (Lembremos que imbiruçu, que dá nome ao distrito ao qual o quadro provavelmente se refere, é uma árvore que chega a 25 metros e 80 cm de diâmetro. Se alguma imagem no quadro chega perto de uma imbiruçu é a que se encontra à extrema esquerda, na altura da linha divisória da composição.)
O estranho formato de elos vivos em movimento das nuvens na paisagem e a sobrecarga de tinta que as compõe destacando-as da superfície da tela, retiram-nas da densidade da fumaça e as colocam num irreal primeiro plano. Em número de três, pela liberdade de suas formas e pelo modo como estão dispostas na paisagem, estas nuvens aí parecem ter sido colocadas para contradizer a imponência das três chaminés, fazendo, ao menos formalmente, furos na densidade siderúrgica da paisagem. Instantes improváveis de luz contrapondo-se, sobrepondo-se ludicamente ao escuro do céu poluído.
Das construções da cena saem tortuosos caminhos que ligam umas às outras mas não permitem ir muito longe, pois quando não terminam nas portas das construções, interrompem-se subitamente no canto do quadrante II, sem permitir a saída da cena. (Só se sai desta cena como fumaça ou do quadro como nuvem.)
Por fim, as janelas das construções, feitas com manchas escuras sobre superfícies mais claras, sugerem o aspecto sombrio presente no interior das mesmas, lá mesmo onde estariam as pessoas, ausentes no deserto visível da paisagem (uma vez que as chaminés revelam que a siderúrgica não está abandonada).
Pelos elementos acima articulados podemos concluir que a dimensão poética de Imbiruçu 2 não advém da ordem do belo, mas da ordem do quente, seco e rude: um quase feio que faz denúncia mimética da imposição destrutiva da siderúrgica na paisagem destituída do referencial bucólico clássico. O figurativismo de Lamonier nesta obra se esclarece criticamente não como reprodução direta da realidade, mas como reconstrução da paisagem sob a força afetiva da memória transfigurada em onírica cena apocalíptica.
O poético, aqui, advém do forçar artisticamente o presente trágico e profético a partir do registro memorial.
Se algo deste quadro nos evoca distantemente o Campo de trigo com corvos, de Van Gogh, é porque a perturbação onírica que ele propõe nos alcança enquanto verdade recalcada da paisagem.
CXXXI
O estreitamento da relação entre a política e a figura do exterminador já foi usado na Califórnia por Arnold Schwarzenegger. A função propagandística de seus filmes se torna suspeita quando sabemos de sua entrada, pelo casamento, na família de John Kennedy.
A presença do "exterminador" no Palácio dos Bandeirantes ocupado por João Doria e a patética imitação de herói de filme de guerra protagonizada por Witzel sob o ruído das hélices de um helicóptero - sem contar a versão faroeste da arminha com dedos da campanha de Bolsonaro -, mostram o quanto o imaginário político-social vem sendo preparado pela cultura de massas há anos.
Lembremos da frase do Geraldo Alckmin governador sobre ação da Rota em 2012: "quem não reagiu está vivo"; a frase de Witzel: "a polícia vai mirar na cabecinha e... fogo"; a frase de Doria: "bandido não vai para a delegacia, nem para a prisão, vai para o cemitério"; a frase de Schwarzenegger: "hasta la vista, baby".
CXXX
Um governador de Estado, num helicóptero, ao lado de sniperes da polícia civil, orgulhosamente filmando tudo, dizendo frases do tipo: "Vamos botar fim na bandidagem"...
É muito provável que ele tenha se sentido numa cena antológica do Apocalipse now, do Coppola, ao som da Cavalgada das Valquírias, de Wagner.
Porém, há poucas chances dele ter entendido a crítica à barbárie presente no filme.
"Horror. Ele tem um rosto. E você precisa fazer do horror seu amigo. Horror e terror moral são seus amigos. Assim eles não serão inimigos a serem temidos. [...] Você deve ter homens que são morais e ao mesmo tempo, capazes de utilizar seus instintos primários para matar sem remorso, sem paixão, sem julgamento, sem julgamento... porque é o julgamento o que nos derrota."
(Trechos do monólogo do coronel Kurtz, personagem de Marlon Brando.)
O Brasil contemporâneo tem em algumas instâncias do poder figuras identificadas ao coronel Kurtz, pessoas amigas do horror e inimigas do juízo e da razão.
A espetacularização da barbárie responde a um gozo fascista pelo horror, seu modo ilusório de dominá-lo mimeticamente. Gozo que só se encontra à vontade, de fato, mediante o extermínio de quaisquer sinais de juízo.
Por outro lado, porém, está muito claro que somente a razão e o juízo - condensados numa fílos sofia - podem derrotar o gozo pelo horror: uma espécie de fílos trómou.
CXXIX
En passant, um poema de Mário de Andrade. (Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, p. 142.)
Um poema do Losango Cáqui, de 1926, mas escrito em 22, quando realizou exercícios militares no Rio de Janeiro como reservista do Exército. Vale lembrar que, se o losango advém do traje do arlequim, o cáqui era a cor do uniforme militar desta época.
Como arguto crítico cultural da classe dominante paulistana que ali se estabelecia, Mário de Andrade soube buscar daquela os ícones europeus de ostentação, de um lado, e os maus gostos provincianos por outro.
Ao ressaltar neste poema todo o vibro de ignorâncias militares, o calcanhar direito que se levanta e o romper da marcha com a música infantil do soldado-raso (nalguns casos mais raso que soldado) com cabeça de papel, o poeta, sem saber, faz profética e irônica homenagem à forma mais caricata e medíocre de retomada do poder pelos atuais representantes morais da classe que ele viu se constituir no período da República Oligárquica, com os presidentes civis café com leite, a partir de 1894 até 1930.
Trata-se de uma classe que, de bom grado, faria o Brasil retroceder moral, cultural, social e politicamente ao primeiros anos do século passado, mas empunhando a ideologia propagada pelo SNI do General Golbery.
CXXVIII
Se o fascista refletisse por um único momento deparar-se-ia com o absurdo e a irracionalidade de seus argumentos. Para continuar a acreditar nos slogans que tenta converter em argumentos racionais o fascista deve impedir-se a reflexão. A repetição incansável dos slogans e ditados populares irrefletidos, tais como "bandido bom é bandido morto", está mais para um ritual de auto-convencimento do que para a afirmação aforismática conclusiva de um longo trabalho de reflexão.
A burrice que o fascista sustenta para si mesmo e no laço social é resultado de um considerável esforço repetitivo de negação da reflexão.
Porém, ainda assim devemos considerar:
- que haja fascistas que de fato creem nos slogans como declarações de verdade. Para estes, talvez tenha faltado e falte ainda instrumentos teóricos de leitura da realidade e especificamente de leitura de seu tempo e de sua sociedade.
- que haja fascistas convictos da falsidade dos slogans, mas que, mesmo assim, apresentam-nos como verdade inquestionável. Nestes, a cisão cínica e a falta de caráter alcançam níveis ainda inexplicavelmente grandes.
MAIO 2019
CXXVII
"Desde que César atacou os gauleses semi-selvagens com seu exército altamente treinado e explicou sua guerra de conquista como resultado de medidas de proteção absolutamente necessárias, a agressão militar tem sido chamada de defesa. Afinado intimamente com todos os padrões de conduta imperialistas, o fascismo foi o primeiro a adaptar esse expediente aos objetivos da política interna e até mesmo à construção ideológica destinada à ação individual. Há, porém, uma profunda implicação psicológica neste mecanismo. Espera-se que sirva de estímulo para a violência, não que seja levado a sério." (ADORNO, T.W. A técnica psicológica das palestras radiofônicas de Martin Luther Thomas, 1943. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/adorno/ano/mes/palestras.htm)
Uma característica notória do discurso ultra-conservador de hoje é a conversão do ataque em discurso de auto-defesa. Essa característica está presente como justificativa desde o armamento de capangas de proprietários rurais de terras improdutivas para protegê-las do terrorismo dos sem-terra até o contra-argumento raso e comum da intolerância dos argumentos da esquerda.
Dos sem-terra aos intelectuais, agora declaradamente inimigos, todos são colocados como perigosos e agressivos. É preciso, defensivamente, destruí-los para não ser destruídos ou doutrinados por eles.
(Não à toa, a Schützstaffel, a SS, terrível organização paramilitar nazista, tem por tradução "tropa de proteção".)
Retomemos um trecho do discurso de posse de Jair Bolsonaro em 1 de janeiro de 2019:
"Também é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares.
Nossa preocupação será com a segurança das pessoas de bem e a garantia do direito de propriedade e da legítima defesa, e o nosso compromisso é valorizar e dar respaldo ao trabalho de todas as forças de segurança."
É curioso observar num parágrafo a "urgência em acabar com" e no parágrafo seguinte "nossa preocupação será com a segurança [...] propriedade [...] legítima defesa [...] forças de segurança." A destrutividade urgente colocada no primeiro parágrafo, acompanhada da mistificação demonizante do inimigo, é logo convertida em auto-defesa no parágrafo seguinte. Como disse Adorno: "Espera-se que sirva de estímulo para a violência, não que seja levado a sério."
CXXVI
"Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro".(Jair Bolsonaro, 25/4/2019)
"As tardes do Brasil são mais douradas
Mulatas brotam cheias de calor
A mão de Deus abençoou
Eu vou ficar aqui, porque existe amor
No carnaval, os gringos querem vê-las
Num colossal desfile multicor
A mão de Deus abençoou
Em terras brasileiras vou plantar amor"
(Eu te amo meu Brasil. Dom & Ravel, 1970)
CXXV
"O rosto estava oculto, velado pela luz refletida pelos espelhos molhados nas paredes. Maitland subiu rapidamente as escadas, aproximando-se e o rosto da figura clareou por um momento...
-Judith!
Maitland inclinou-se para a frente na cadeira e buscou inutilmente o jarro de água sobre a mesa. Ele bateu na testa com a mão esquerda, tratando de afugentar a visão daquele espantoso demônio feminino." (BALLARD, J.G. A Gioconda do meio-dia crepuscular. Traduzido a partir de: https://epdf.tips/download/la-gioconda-del-mediodia-crepuscular.html).
Maitland, o personagem do conto Gioconda do meio-dia crepuscular, de J.G.Ballard, suspende os sentidos da visão após ter se deparado - com o olhar interior, enquanto teve um mês de olhos vendados por uma enfermidade - com uma feiticeira demoníaca em suas imagens hipnagógicas.
"Conhecendo agora a moradora, a figura vestida de verde que o mirava desde a escada, decidiu esperar pela luz da manhã. Os olhos que o chamavam, o pálido farol do sorriso, agora flutuavam diante dele." (idem, ibidem).
Em sua condição de alteridade fugidia, o enigma do sorriso da Gioconda de Maitland fê-lo saber que, para encontrar o Outro, é preciso livrar-se do tudo ver:
"Maitland foi rapidamente afastando os ramos de salgueiro e rumou para a costa. Um instante depois Judith ouvia seus gritos em meio à algazarra dos gritos das gaivotas. Parecia meio tomado de dor e meio soando triunfo. Ela desceu correndo até as árvores, porque não sabia se ele havia se ferido ou se descobrira alguma coisa de bonito. Então ela viu que ele estava de pé na costa, sua cabeça voltada para a luz do sol, o vermelho claro nas faces e nas mãos; um Édipo alegre, inquieto." (BALLARD, citado em HAN, BYUNG-CHUL. Agonia do Eros. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 71)
O Édipo de Ballard não se pune por ter matado o pai e casado com a mãe; seu cegar-se é metáfora da escolha da alteridade atópica e fugidia ao invés do tédio narcisista da sociedade consumidora de imagens.
CXXIV
"As Moças - Somente pensais no fresco vinho? Também seus vizinhos lá têm direito à festa! Ou são somente para vós a comida e a bebida?
Timoneiro - Tendes razão! Levai algo a esses pobres rapazes! Parecem estar morrendo de sede!
Marinheiros - Não se os ouve!
Timoneiro - Ei, olha somente! Nenhuma luz! Não há rastro da tripulação!
As Moças - (a ponto de irem a bordo do barco holandês) Ei, marinheiros! Rê! Quereis archotes? Onde estais? Nós não vos vemos!
Marinheiros - (rindo) Rárárá! Não os desperteis, ainda dormem!
As Moças (chamando, em direção do barco) Rê! Marinheiros! Rê! Respondei!
(grande silêncio)
Timoneiro e Marinheiros -Rárá! ( com gozação, com fingida pena) Com certeza estão mor- tos; não necessitam nem de comida nem de bebida!
As Moças - (como acima) Como assim, marinheiros? Já estais deitados, prazerosos? Hoje, para vós, também não é um dia de festa?
Marinheiros (como antes) Permanecem quietos em seu posto, custodiando seus tesouros como dragões.
As Moças - Ei, marinheiros! Não querem vinho fresco? Seguramente deveis estar sedentos!
Marinheiros - Não bebem, não cantam; em seu barco não arde nenhuma luz!
As Moças - Decidi! Não tendes nenhuma noiva em terra? Não quereis dançar nesta praia amistosa?
Marinheiros - Já são velhos e pálidos, e suas amadas já estão mortas!
As Moças - (chamando veementemente) Ei, marinheiros, despertai! Nós temos a oferecer para vós um montão de comida e bebida!
Marinheiros (acompanhando o chamado) - Ei, marinheiros, despertai! (largo silêncio)
As Moças - (surpreendidas e assustadas) Verdadeiramente, parecem mortos! Não necessitam nem de comida nem de bebida!
Marinheiros (alegremente) Conhecem a história do Holandês Errante? Vede aí seu barco!
As Moças - (como antes) Então não desperteis a tripulação! Juraríamos que são fantasmas!
Marinheiros (com crescente vivacidade) Quantos séculos faz que navegam? As tempestades e as rochas não os afetam?
As Moças - Não bebem, não cantam. Em seu barco não arde nenhuma luz
Marinheiros - Não tendes nenhuma carta, nenhuma encomenda para terra? Nós as entregarem- mos aos nossos bisavós!
As Moças - São velhos e pálidos, em vez de rosados! E suas amadas, ah, estão mortas.
Marinheiros - (ruidosamente) Ei, marinheiros! Desdobrai vossas velas e mostrai-nos como navega o Holandês Errante!" (WAGNER, R. O navio fantasma, terceiro ato. Libreto da ópera. Disponível em: https://www.agrandeopera.com.br/o-navio-fantasma/)
Não se os ouve. Nenhuma luz. Não há rastro da tripulação. Ainda dormem. Permanecem quietos em seu posto. Não cantam. Verdadeiramente, parecem mortos. Juraríamos que são fantasmas. As tempestades e as rochas não os afetam.
Sim: desdobramos nossas velas e estamos a mostrar ao mundo como navega o Holandês Errante.
Ao navio fantasma, brasileiros a bordo! E mais alguns anos à deriva sem poder aportar.
CXXIII
Quando tomada por ideais de fim de análise, uma instituição de psicanalistas torna-se uma comunidade de consumidores dos índices deste fim. Dar provas de um término de análise ao Outro passa a ser mais importante do que o próprio tratamento da neurose. Este "dar provas" produzindo sonhos, lapsos e atos prenhes dos significantes que circulam como índices de término não é queda da transferência, mas demonstração de sua força.
De outro lado há aqueles que se colocam como produtores e guardiões dos tais índices, a fazerem-se vitrine de garantias.
A produção, circulação e comércio de insígnias de fim de análise é grande contributo para que em tais instituições haja empoderados de psicanálise.
Por ter se fundado sobre a neurose de Freud e sua fantasia de totem e tabu, a psicanálise e suas instituições sofrem de um não saber ir além do pai.
CXXII
"Sem a sedução do outro atópico, que acende uma cupidez erótica no pensamento, esse se atrofia em mero trabalho, que reproduz sempre o igual. Falta ao pensamento calculista a negatividade da atopia. É trabalho no positivo. Não há nenhuma negatividade para lançá-lo para a inquietação." (HAN, BYUNG-CHUL. Agonia do Eros. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 84).
O sempre igual está para a totalidade e a afirmação do positivo assim como o não-idêntico está para o não-todo e a abertura ao negativo. A alteridade real negada no primeiro caso (em nome de uma imaginária mesmice egoica) tem função de causa - "inquietação" - no segundo.
"O pensamento é tocado 'mais fortemente', 'mais misteriosamente' pelo bater das asas de eros, no momento em que o outro atópico, inefável procura transpor-se para a linguagem." (id. ibid., p. 84).
O pensamento tocado por eros é aquele que, entregando-se ao esforço mimético, busca forçar o simbólico no real. Que algo novo nesse processo se constele, não é sem a abertura à alteridade sustentada por eros, que segue, como sustenta Han, agonizando em nossa sociedade narcisista atual.
CXXI
"Certo é que quem morrer, da Santa Igreja
em contumácia, e só ao fim penitente,
há de aguardar nesta encosta o que almeja,
trinta vezes o tempo que, intemente,
em vida transcorreu, salvo o prescrito
por boa prece encurtar, que o complemente."
(ALIGHIERI, D. A divina comédia - purgatório. São Paulo: Editora 34, 2010, Canto III, versos 136 a 141.)
Oremos pelos eleitores arrependidos para que esta encosta de purgatório chamada Brasil não tenha que esperar até trinta vezes os erros do seu des-temer.
CXX
"Era de tarde. Eu, num baloiço, algures no pomar. Sim, macieiras e não cerejeiras, não houve nódoas vermelhas no meu vestido, nem antes, nem depois. Sem memória de pessoas por perto. Apesar de tudo, a presença invisível dos meus, a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos e irmãs. E eu, no baloiço, cada vez mais livre, cada vez mais liberta da presença dos meus por uma outra presença. [...] Mas era de facto muito rápido. Cada vez mais rápido. E depois, subitamente, no momento do auge, um afrouxar repentino. Enquanto o baloiço, comigo lá sentada, continuava a baloiçar à mesma velocidade, pelo menos durante alguns longos, longos minutos, alguma coisa dentro de mim despertava, vivificava, graças a esse afrouxar repentino, depois, graças a uma brusca imobilidade, no meio de - como explicar? - esses círculos repetidos que eu desenhava com o baloiço, nascia, abria-se, desabrochava, depois explodia - criava-se ou era criada pela explosão. Eu tornava-me a coisa e a coisa tornava-se eu. Sim: foi uma história como mais nenhuma outra - ai, mas como contá-la?" (HANDKE, P. Os belos dias de Aranjuez: um diálogo de verão. Lisboa: Documenta, 2014, p. 10-1).
Na peça de Peter Handke a personagem assim narra ao parceiro de diálogo sua "primeira vez", a primeira experiência reconhecida de gozo sexual.
É curioso observar de que modo, assim como no trecho antes citado de Blanchot, revela-se uma experiência de gozo entre o alucinatório e o delirante. As referências temporais e espaciais são distorcidas em nome de uma descrição assintótica entre a hipervelocidade e a tendência à imobilidade que circunscrevem um nascimento, uma abertura, um desabrochar e uma explosão que nos sugerem a infinitude da alteridade fugidia, irreconciliável, que surge como "uma outra presença" a qual só se tem acesso quando ao se libertar da presença dos seus. Alteridade essa cuja dimensão de afetação do corpo traz um "como explicar?" E um "mas como contá-la?". Afetação do corpo que se produz em nome de uma indizível reconciliação mimética da qual só se sabe que "eu tornava-me a coisa e a coisa tornava-se eu".
Mas não deixa de ser uma história, embora como mais nenhuma outra.
A inescritibilidade de x (/Ex.F) faz da mimese a possibilidade da vivência sexual da alteridade e, ao mesmo tempo, a mimese como vivência sexual da alteridade, demonstra sua inescritibilidade. A experiência mimética do outro é reconciliação não-toda, por forçar um símbolo no real, sem reduzi-lo a qualquer identidade totalitária. Não é inclusão do infinito nas bordas do todo, nas destotalização do idêntico. Sua libertação da lógica atributiva de um Fx: equivale a escrever /Ax.Fx.
CXIX
"Eu era ainda uma criança, sete ou oito anos de idade, e me encontrava numa casa isolada, perto de uma janela fechada, olhando para fora - e num instante, não poderia ser mais repentino, era como se o céu se abrisse, abria-se infinitamente ao infinito, para, por meio desse momento avassalador da abertura, me convidar a reconhecer o infinito, mas o infinito infinitamente vazio. O resultado disso foi estranho. O vazio repentino e absoluto do céu, não visível, não escuro - vazio de Deus: isso era explícito e superava de muito a mera indicação ou referência ao divino - surpreendeu a criança com tamanho susto, e com tal alegria que foi tomado instantaneamente pelas lágrimas, e, preocupado com a verdade, acrescento - eram suas últimas lágrimas." (BLANCHOT, M. citado em: HAN, BYUNG-CHUL. Agonia do Eros. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 17-8.)
Por esta experiência de gozo, algo entre o alucinatório e o delirante, Blanchot nos mostra o que há de real na experiência mimética de reconciliação com a natureza, enquanto alteridade fugidia.
O infinito do céu para além da janela fechada da casa isolada, grau máximo do "fora" para quem vive num cômodo ao rés do chão, é experiência do não-todo quando não se o encaixota num todo regido por uma exceção.
O céu que convidou Blanchot para além da janela não tem Deus, não é divino, vai além da referência ao pai, supera quaisquer exceções demarcatórias, é abertura, é /Ex.F (não há x inscritível), como contradição verdadeira ao Ax.Fx (para todo x vale a função F).
Tentar fazer valer ali, da contingência que uma experiência destas implica, uma vivência mágica, mítica, religiosa ou estética, circunscrevê-la por meio de sinais quaisquer em busca de sua verdade (encantatória ou não, mas já esclarecedora em seu esforço), seria constelá-la, forçá-la num sentido possível, sempre possível, escrevê-la, de algum modo, ou aprisioná-la na repetição totalizante própria ao necessário modal por meio de um dogma qualquer.
Em contradição à radicalidade do não há x inscritível, isto é, ao impossível, o para todo x surge como forçamento inventivo; mas em relação à exceção do Ex./Fx, ao pai não castrado, posto como necessário, o para todo x se torna ajustamento dogmático.
Ao colocarmos um totem no lugar do vazio da impossibilidade de inscrição de x, formalizamos uma exceção a funcionar como lei, saímos da lógica do não-todo. Mas por que confundimos a exceção com o vazio? A exceção só se faz necessária numa lógica totalizante; para uma lógica não-totalizante basta-nos a impossibilidade da inscrição.
Se há uma dimensão humana que poderíamos chamar de estrutural, ela talvez seja a relação antropológica que há entre a impossibilidade de inscrição e o forçamento mimético do inscritível, ou seja, entre o não há x inscritível (a alteridade irreconciliável) e a possibilidade do não-todo escrever x (e/ou do escrever não-todo x) - uma dialética sem síntese, posto que jamais podemos esperar a total anulação do não inscritível.
Por decorrência, se a estrutura couber à lógica do não-todo, a lógica do todo, na qual o não inscritível é tamponado pela inscrição da exceção, não é outra coisa que um mito da inscrição total. Entre Ex./Fx e Ax.Fx tudo pode ser escrito. No campo desta contradição entre a escrita da exceção e a escrita da regra, a verdadeira contradição seria que algo não se escreve.
O chamado "lado homem" das fórmulas da sexuação é o mito freudiano da inscrição total, equivalente ao fazer passar o inconsciente à consciência. Chamá-lo de estrutural seria dar universalidade à neurose de Freud. O "lado homem" não é a estrutura, mas somente uma de suas vestimentas históricas.
CXVIII
A única burrice que se pode verdadeiramente chamar como tal é a burrice típica da elite brasileira. A burrice inculta por escolha, limitada por opção: ignorância cínica de quem coloca o poder e o dinheiro em oposição ao conhecimento e à fruição cultural.
Se "pensar é uma forma de castração", como lembra Umberto Eco (O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 48), esta burrice demonstra que a negação da castração, por inversão lógica, implica a negação do pensar.
Mas a burrice vence a razão a cada vez que, por insistir na sua condição (a da razão) de suspeita em um contexto tomado pelo fascismo, leva quem pensa a responder de modo apaixonado e irracional. O fascismo convoca à quebra do pacto social. E se há uma burrice e uma mediocridade explícita no fundamento desta convocação, não menos burrice é a aceitação dessa quebra por parte daqueles que pensam.
Aos pensantes da esquerda cumpre saber separar o que é a crítica da burrice, a defesa do pensamento, a resistência do pensar, da quebra fascista do pacto social. Há uma clara armadilha impregnante do fascismo neste levar o antifascista a responder pelo mesmo ódio: combater a burrice em si mesmo é um esforço a mais da razão em tempos de escalada fascista.
CXVII
Saída do armário para caçar intelectuais, a burrice, aquela que aprende História em mensagens de rede social e videos do YouTube, fecha o cerco dentro das rodas de amigos e dos círculos familiares.
Para ela, o argumento teórico é, em si mesmo, a expressão maior da arrogância, uma criminosa intolerância com o direito ao mais raso senso comum.
CXVI
Cada vez mais se torna difícil para muitas pessoas perceberem que há um sujeito mesmo ali onde elas não se reconhecem, mesmo ali onde o outro não usa ou não participa de suas insígnias de classe e de nicho cultural.
A destituição da subjetividade no outro, pelo simples fato dele não ser ou parecer igual a mim ou por ser ou parecer o que não quero em mim é destruição narcísica da alteridade.
É extremamente doloroso atravessarmos o próprio preconceito para deixarmo-nos afetar pelo que há de outro no outro, pois esse processo implica algo do poder separarmo-nos de nós mesmos. Não é por acaso que os raros encontros com a alteridade (concebida para além da diferença comparativa que só afirma a consistência do si mesmo e da distância do outro) implicam afetos de surpresa em relação ao campo do outro e de descompletude em relação ao campo próprio. No encontro entre a surpresa e a descompletude é possível reconhecermos uma paradoxal e radical identificação de singularidades entre eu e outro: assemelham-se ao serem igualmente únicos quando se permitem despir das insígnias totalizantes.
É preciso, portanto, que não saibamos o que é um sujeito para podermos encontrá-lo em nós mesmos e no outro para além de suas afirmações narcísicas, grupais, classistas. Reconhecemo-nos não por sermos igualmente sujeitos ou, pior ainda, por sermos sujeitos iguais. Encontramo-nos e nos reconhecemos ali onde sabemos o que não é um sujeito, ou seja, quando se nos revela a dimensão totalitária das amarras identitárias que cotidianamente vestimos.
CXV
"A letra que constitui rasura, distingue-se por ser ruptura, portanto, semblante, que dissolve o que constituía forma, fenômeno, meteoro. É isso, eu já lhes disse, que a ciência opera no começo, da maneira mais sensível, sobre formas perceptíveis. [...] A escrita, a letra, está no real, e o significante, no simbólico." (LACAN, J. Seminário 18. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 114).
Se entendermos a ruptura do semblante como a revelação de sua natureza mimética, então a escrita, enquanto constelação, é o processo de extração do que há de mimese na linguagem. Ao se constelar algo do inconsciente, desenha-se o litoral que separa saber e gozo, misturados no semblante que o discurso faz.
A experiência aurática do instante de constelar é índice afetivo do gozo que chove porque um saber real foi tocado ao romper-se o o semblante que se revela enquanto tal: mimese simbólico-imaginária do real.
CXIV
A psicanálise será verdadeiramente subversiva se, além de curar o sujeito do seu complexo de Édipo, puder levá-lo a interrogar ao máximo o patriarcalismo secular nele arraigado e que o constituiu no mencionado complexo.
CXIII
Na aula VI do Seminário 18 Lacan usou pra falar da relação sexual: /Ex.F = x não é inscritível.
Que x não seja inscritível não seria melhor que a exceção paterna?
Em que medida Ex./Fx, isto é, o pai-exceção, não vem tamponar o /Ex.F?
Ou seja: ao invés do não há x inscritível no lugar do pai, passa-se a: há um que não se escreve?
Noutros termos:
/Ex.F. /Ex./Fx
Ax.Fc. /Ax.Fx
A contradição entre "não há x inscritível" e "todo x é inscritível" parece-me mais radical que o "existe um x que não se inscreve" e "todo x se escreve".
Equivale a dizer: ao invés da escrita de um não castrado, o não inscritível do que seria não castração.
A contradição para todo x é castrado não precisa ser há um pai não castrado; pode ser: não há relação sexual.
Não há relação sexual versus para quaisquer x há sexuação. (Não precisa ter nada a ver com "homem".)
O que não existe não é a mulher, mas o pai. Mulheres, homens, gays, trans etc existem, porque entram na sexuação.
A diferença é entrar na sexuação de modo totalitário (como filho e fazendo um pai) ou de modo não totalitário (como homem, mulher, gay, trans etc, sem fazer pai).
Os dois lados das fórmulas da sexuação poderiam ser lidos: lado sexuação patriarcal e lado sexuação não patriarcal, a depender de se fazer o pai consistir ou não.
Consequência disso: quem fica do lado todo não sai do Édipo.
CXII
Quando um negro é morto "por engano" com 80 tiros, está em questão não o despreparo dos militares envolvidos, mas a aparência de seu preparo muito bem delimitado com o objetivo de extermínio de parte da população.
Somente sob a ideologia fascista da guerra permanente pode-se disparar 80 tiros em um "suspeito".
80 tiros jamais são endereçados a um suspeito ou a um criminoso. 80 tiros identificam do outro lado um inimigo.
CXI
Uma assemblage de Andrey Rossi, que chamei de livro-corpo, mostra um livro aberto dentro do qual localizamos dentes, um osso, parte de uma dentadura, um desenho catalogado (I-33.) de parte de um crânio e a imagem de um rosto com a boca aberta que não sabemos se está dormindo, gozando ou morto (este desenho jaz dentro do livro recortado como a fazer uma caixa. Fios desalinhados de cabelo sujo fazem um marcador de páginas. Sob os dentes consta à lápis que são "dentes por correspondência"; sob a dentadura, "dentadura do meu pai"; sob o osso, "o ideal jamais será o real, é apenas uma cortina fina e corroída que cobre aquilo que circula"; e ainda lemos a seguinte anotação: "não sou senhor do meu próprio pensamento, um escravo da ilusão, pois a verdade é efêmera".
Em volta do livro há ainda desenhos mórbidos de corpos estranhos e decompostos, recorte de um órgão, ossos, figuras ambíguas como como um crustáceo e um cogumelo. Filipetas marcando páginas trazem os seguintes temas: cura os doentes, transfiguração, filho muito amado, "estamos em silêncio, fique em silêncio, tenho medo do silêncio", a flagelação, mandei açoitá-lo, o poder de vida ou morte, gritavam exigindo a morte, flagelação, a ascensão e morte de cristo (rasurado), escarnecido, "ossos em mim, parte de mim", a admissão do doente, ROSTO a face que se desfaz, "ESPORULAÇÃO - Tipo de reprodução assexuada encontrada em vários protozoários", "cruéis torturas, pois a flagelação executada com açoites feitos de pedaços de ossos, quando não de ferro, reduziam o corpo do condenado a uma massa informe a sangrenta de carne dilacerada. Da cabeça aos pés, era uma só chaga.", controle, drama.
Estes objetos todos colocados dentro de uma caixa de madeira, uma espécie de altar, parecem constelar elementos de um delírio de sacrifício religioso como aqueles que, em filmes, mas não só, são encontrados espalhados nos quartos de serial killers ou psicóticos solitários (muitas vezes "heróis" forjados por ideologias extremistas). Este suposto alter ego do artista, um duplo, um Mister Hyde ao qual ele dá existência pelo que sugere o conteúdo da composição, põe voz e forma crítica à barbárie que se esconde cinicamente cindida em milhares de conservadores (Doctor Jekyll) altamente adaptados ao atual contexto social em que estamos. Assim, talvez não seja por acaso que as referências científicas do material escolhido façam alusão alegórica ao homem burguês retratado pelos personagens de Robert Louis Stevenson.
Um livro composto de fragmentos de corpo e deformidades já revela, pelo forçamento do imediato na escolha dos materiais da composição artística, a relação entre saber e arte na mimese daquilo que sobrevive sob recalque em tempos de exaltação da imagem narcísica: a verdade social e histórica do corpo como resto, como mutilação.
A desfiguração onírica de um suposto livro de medicina/biologia (cura os doentes, a admissão do doente, ROSTO a face que se desfaz, "ESPORULAÇÃO - Tipo de reprodução assexuada encontrada em vários protozoários"), acrescentando frases/palavras de contextos coletivos de violência (a flagelação, mandei açoitá-lo, o poder de vida ou morte, gritavam exigindo a morte, a ascensão e morte de xxxxxx, "cruéis torturas, pois a flagelação executada com açoites feitos de pedaços de ossos, quando não de ferro, reduziam o corpo do condenado a uma massa informe a sangrenta de carne dilacerada. Da cabeça aos pés, era uma só chaga") e um índice claro de censura totalitária ("estamos em silêncio, fique em silêncio, tenho medo do silêncio") colocam em relação direta a doença e a violência social. Não à toa a aparência de colagem delirante poder ser considerada como a sensibilidade psicótica de trazer não só o inconsciente, mas também a verdade social a céu aberto.
Este livro-corpo, mais parecido com um lixo de restos do que com um objeto aurático, é o oposto real dos livros de auto-ajuda e best-sellers rasos cuja função maior é jogar mais bugiganga ideológica sobre a condição de sobrevivência de milhões de seres sub-humanizados pela lógica imanente da sociedade de produção e consumo. O didatismo brechtiano da frase presente na obra diz por si só: "o ideal jamais será o real, é apenas uma cortina fina e corroída que cobre aquilo que circula".
"Não sou senhor do meu próprio pensamento, um escravo da ilusão, pois a verdade é efêmera". Por esta frase podemos ler a concepção de arte do próprio artista, ao apagar-se como tal em sua obra e suportá-la como um acontecimento simbólico-imaginário que o atravessa (escravo da ilusão) para mimetizar aquilo que é negado pela sociedade sem afirmá-lo (por isso, toda arte é ilusão), revelando, no entanto, de modo efêmero, como experiência estética, a sua verdade como determinação objetiva.
CX
"[...] o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra se devem a uma invidia penis permanente." (ECO, U. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 55.)
De modo muito inteligente Umberto Eco faz um uso original do conceito freudiano de inveja do pênis ao devolvê-lo ao seu machismo de origem. É uma interpretação sagaz da sociedade patriarcal: a inveja do pênis como resposta masculina à angústia de castração.
CIX
Quanto mais a cruzada bolsonarista vai mostrando sua verdade brancaloenística, mais seu séquito revela-se, também, sem sua máscara heróico-salvacionista.
Os xerifes de bairro, com uniformes ouro-oliva, estão a recuperar o peso de suas mediocridades cotidianas.
Mas ainda é esta a mediocridade que está no poder e ainda é ela que não suporta o pensamento crítico: "Da declaração atribuída a Goebbels ('Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola') ao uso frequente de expressões como 'porcos intelectuais', 'cabeças-ocas', 'esnobes radicais', 'As universidades são um ninho de comunistas', a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo." (ECO, U. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 49.)
O ódio ao intelectual se explica, em parte, pelo fato de sua teoria não ter cumprido suas promessas. Uma contra-teorização da realidade, ao invés de se materializar criticamente em novas e opostas teorizações, se faz na forma da negação pura e simples de qualquer esforço teórico. O pragmatismo cego, a mediocrização das instituições, a youtuberização do conhecimento e a sacralização do senso comum como "direito de opinião e pensamento", já são, em si mesmos, sintomas fascistas.
Do ponto de vista cultural, o fascismo é a chegada da mediocridade ao poder, como resposta ou vingança aos fracassos das elites intelectuais. Mas isso só se dá porque o capitalismo, a sociedade de consumo e de massas, infantiliza os indivíduos. A produção de indivíduos imbecilizados coloca necessariamente o fascismo no horizonte, uma vez que reproduz a mediocridade vingativa das camadas que fazem a crítica da mediocrização como interesse do capitalismo.
CVIII
Ecoa nos atos e na política externa do governo Bolsonaro o desejo claro de ser um cruzado medieval.
O efeito da revelação deste desejo secreto no século XXI não é o de lhe dar nobreza, mas o humorístico-vexaminoso.
As referências ao incrível exército de Brancaleone, de Mario Monicelli, são muito apropriadas a este governo, ainda que se deva resguardar que essa comparação não desmereça a obra cinematográfica em questão.
CVII
Uma sociedade que enfrenta o enfraquecimento político de ideologias movido por frustrações históricas corre o risco da fragmentação de sentidos e de identidades. Uma resposta à suspensão de sentidos e utopias é o apego infantil às tradições e a adesão irrefletida a retóricas paternalistas. O cruzamento do apelo ao passado e da carência de pai parece ser o terreno fértil e mais perigoso para os fanatismos bélico-religiosos ou bélico-eugênicos/xenofóbicos a depender dos lugares da religião e da ciência/tecnologia na sociedade em questão.
Um inimigo comum, geralmente eleito pelo conservadorismo tradicionalista local, recoloca no horizonte um campo de sentidos e promessas de purificação messiânico-científica capaz de reunificar e dar identidade ao fragmentário anterior.
Uma sociedade parece preferir um sentido forjado às pressas e claramente mentiroso ao enfrentamento da ausência ou suspensão dos sentidos. A que se deve essa urgência de um sentido qualquer diante da angústia da queda de ideologias/utopias? Não vemos nisso ainda o retorno pela porta dos fundos de mil anos de dogmatismos teológicos?
Há que se pensar em que medida os totalitarismos de direita, por serem mais claramente condensados em torno da figura de um pai, não são a repetição mimética da consolidação do monoteísmo.
ABRIL 2019
CVI
"Estas ativistas estão começando uma conversa em que as mulheres não são mais mercadorias sexuais, mas consumidoras sexuais. Está na hora da revolução do prazer." (WALKER, S. Viva o prazer [The Observer]. In Carta Capital, ano XXIV, n. 1048, de 3 de abril de 2019, p. 61.)
Assim termina Sharon Walker seu artigo para o jornal The Observer, do Reino Unido, e que Carta Capital traduziu sob o tema neofeminismo.
A ideia da recuperação da revolução sexual pela transformação da mulher em consumidora revela o quão ingênuo um pensamento pode ser quando não se associa à crítica ao capitalismo.
A secularização do patriarcado machista está na própria lógica da produção e do consumo. Entender que aquele que se transforma em consumidor não se torna menos objeto para a fome sem fim do mercado, seria necessário, antes de chamar isso de caminho para a revolução.
Colocar a saída da condição de objeto na libertação do prazer tem sua importância e sua história, mas atrelar este prazer à produção de mercadorias sexuais para as mulheres talvez não seja efetivamente libertá-lo, mas condicioná-lo de um modo ainda mais heterônomo ao consumismo massificado. Sabemos o quanto os proprietários das empresas dos artigos sexuais para o consumo feminino, que vão de robôs a filmes pornôs, terão o poder de ditar o que é e o que não é moda no tocante ao prazer sexual. É bastante rasa, portanto, a ideia de um revolução sexual consumidora. O corpo que consome mercadorias de massa é um corpo assujeitado. E o prazer deste corpo será dele na medida em que a propaganda assim o ditar. Aliás, o próprio artigo em questão parece se prestar mais à propaganda comercial do que à crítica feminista.
CV
"Deklamieren [declamar] significa literalmente falar alto sem prestar atenção ao que se diz. Vociferar. O estilo obrigatório para todos era berrar como um agitador berra na multidão. [...] A LTI só se prestava à invocação." (KLEMPERER, V. LTI. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 65.)
Tomado pela ideologia da guerra, o estilo do fascista é o da convocação dos iguais e o do insulto aos diferentes. Da TV ao Twitter, passando pelos grupos familiares de WhatsApp, a monotonia do estilo é gritante.
A única riqueza do vocabulário fascista diz respeito à variedade de insultos.
Mergulhado no senso comum, é imperativo ao fascismo a destruição de qualquer forma cultural capaz minimamente de dialetizar a aparência. O senso comum, erigido a uma espécie de Constituição paralela a orientar o laço social, faz do argumento crítico uma intolerância para com o pensamento raso da maioria, invertendo, assim, falaciosamente, os lugares do censurador e do censurado.
Expressões empobrecidas por suas generalizações e indeterminações, como o "mudar tudo isso que tá aí", transformam-se em proposições aceitas e repetidas em contextos institucionais e formais, como linguagem válida. Mas, junto com ela, valida-se também sua pobreza lógica e comunicativa. Ao pouco ou nada dizer, esta linguagem não serve a outra coisa que não o apelo, a invocação, a convocação ao ódio: "mudar tudo isso que tá aí" passa a ser equivalente a "destruir tudo aquilo com o que não concordo", e isso basta e é alçado a único sentido possível.
CIV
"O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio das palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente." (KLEMPERER, V. LTI. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 55.)
O fascismo não é feito de linguagem refletida, mas de linguagem encarnada. O pensamento que se torna câncer no corpo social. Espalha-se como metástase pelos órgãos e instituições. Não pode se pensar, pois deixa de ser pensamento ao tentar reconciliar-se com a natureza por meio da eliminação das mediações (em oposição máxima à arte).
Por se alimentar do ódio, o pensamento-carne do fascismo tem certezas delirantes (e autodestrutivas). O sentido de suas proposições não é um sentido possível, mas necessário. Não há lugar para a contingência. O que em sua repetição não encontra lugar, jamais serve para interrogá-lo, pois é antecipadamente e necessariamente dado por falso. Antes, o que dele se apresenta como alteridade é transformado em aberrante comprovação de sua verdade. Assim, não é uma linguagem que se possa tomar numa comunicação, pois serve apenas na forma do ritual, como mimese de si mesma.
CIII
Enquanto secularização da sociedade patriarcal, as fórmulas lacanianas são verdadeiras ao menos nesta interpretação: quanto maior a presença, de um lado, do ao menos um que não seja castrado, do outro lado, menos a mulher poderá existir.
CII
"A analogia do corpo e da mente do judeu e o corpo e a mente da mulher era natural para a virada do século. Na alta cultura alemã, essa imagem da natureza da mulher já estava presente. Todo o vocabulário médico aplicado ao corpo da mulher enfatizava sua inferioridade física e mental em relação ao homem. E os termos utilizados eram precisamente paralelos àqueles usados no discurso sobre os judeus." (GILMAN, apud MARQUES, O. H. D. Contribuições para a compreensão do nazismo: a psicanálise e Erich Fromm. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017, p. 70).
As relações do antissemitismo com o machismo na Alemanha pré-nazista e nazista são muito claras, a ponto de terem participado notoriamente do delírio de emasculação de Daniel Paul Schreber (embora Freud não tenha feito menção a isso).
A relação do fascismo com a misoginia, manifestada atualmente de modo mais violento pelos chans de incels (involuntary celibates), revela a sustentação desesperada do patriarcado sob a forma da secular encarnação sofrida e odienta, em sua forma "heróica", dos filhos do clã totêmico sobre os quais pesaria uma interdição paterna às mulheres.
O patriarcalismo misógino que vem à tona como segunda natureza nos crimes dos incels revela que, de fato, no clã totêmico a vítima do assassinato não é o pai, mas a mulher.
CI
Uma questão sobre a tragédia de Brumadinho: será que vão procurar todos os corpos com a mesma gana com que se procuram minérios?
C
Em Santo André, uma ocupação do MTST iniciada em 2012 resultou em moradia para 910 famílias.
Pouco se divulga na mídia os frutos da luta popular.
Em 2013, segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional quantitativo no Brasil era de 6.940.691 famílias e o número de imóveis permanentemente desocupados era de 6.052.000. (Dados retirados de BOULOS, G. Por que ocupamos? São Paulo: Autonomia Literária, 2015.)
A luta de classes no Brasil segue com toda a sua força na lógica da periferização e despejo de trabalhadores em nome da especulação imobiliária versus ocupação de terras e de imóveis que não cumprem sua função social em nome do direito à moradia digna (artigo 6o da Constituição Federal).
Na raiz da colonização portuguesa escreveu-se em nossa história um princípio de expropriação de terras dos povos em prol dos poderosos. Um país fundado na grilagem transformada em ideologia da propriedade privada.
Em seu desejo de luta, os movimentos do MST e do MTST trazem ecos das vozes de milhões de índios.
O erro maior é menos o de saber de quem é a terra do que de tomá-la como mercadoria.
A história da grilagem no Brasil vai das Capitanias Hereditárias à venda do pré-sal.
XCIX
Uma Terceira Guerra Mundial já está em curso. Se não na forma do combate entre exércitos formais, de modo fragmentário entre milícias e terroristas espalhados pelo mundo. A ideologia de guerra já se encontra instituída em diversos países; é gigantesca a quantidade de expatriados a perambular pelo mundo; há guerras civis na Síria, no Iêmen, no Sudão do Sul, no Iraque, no Afeganistão e na Líbia; os conflitos na Nigéria com o Boko Haram, na Somália com o Al-Shabab e na Turquia com os curdos; os conflitos entre Israel e Palestina, entre Rússia e Ucrânia, entre Índia e Paquistão e entre as Coreias (sem incluir aqui os impasses resultantes da asfixia da Venezuela); no Brasil: o extermínio cada vez mais autorizado e oficial de pessoas pretas e pobres.
A tendência à ultradireita que estamos assistindo em nossos dias não vem sem a disseminação virulenta de uma ideologia de guerra, até mesmo, e principalmente, nas trocas de ofensas nas redes sociais.
Cada vez menos encontramos um debate que não seja atravessado, nalgum momento, pela intolerância e pela queda dos debatedores no lugar do inimigo.
XCVIII
Um senador da República, Major Olímpio, representante de São Paulo, sobre o massacre na escola Raul Brasil, de Suzano, afirmou publicamente que, "se tivesse um cidadão com arma regular dentro da escola, professor, servente, um policial militar aposentado, ele poderia ter minimizado o tamanho da tragédia."
Não bastasse o tamanho da violência real ali ocorrida, uma fala dessas massacra simbolicamente a própria natureza do ensino e da experiência escolar.
A finalidade civilizatória - e por decorrência óbvia, anti-barbárie - outorgada a um sistema escolar para humanos tomados como seres em formação, tal como propôs o Iluminismo, é incapaz de sobreviver à ideia de que professores e funcionários de uma escola precisam estar armados e preparados para massacres eventuais.
Ares, cultuado em Esparta, e que teve morada maior no Olimpo, era o deus da guerra selvagem, imprevisível e sangrenta. Não à toa, os símbolos deste deus - um elmo e uma lança ou um escudo e uma espada (na sua versão latina com deus Marte) - deram origem ao ícone do masculino.
Os helenos, entretanto, não deram muita confiança a Ares, preferindo sua meia irmã - Atena.
Ares ainda estaria no vaso de bronze em que foi aprisionado pelos irmãos gigantes Aloídas - Oto e Efialtes -, não fosse Eriboea ter caguetado a Hermes o feito de seus enteados.
Mas ponderemos o seguinte: se Ares tivesse frequentado uma escola capaz de verdadeiramente tocar-lhe o espírito, sequer precisaríamos de vasos de bronze...
Mas, talvez, Ares ainda esteja entre nós, a inspirar de heróis de comunidades da deep web a senadores da República Federativa do Brasil.
XCVII
"Quando, no começo da guerra [Primeira Guerra Mundial], o idealismo lhes era fornecido pelo Estado e o governo, as tropas dependiam cada vez mais da sua requisição. O seu heroísmo foi se tornando cada vez mais sinistro, mortal, cinzento como o aço, cada vez mais distante e nebulosa a esfera de onde acenavam a glória e o ideal, cada vez mais hirta a postura daqueles que se sentiam menos como tropas de uma guerra mundial do que como executores do pós-guerra." (BENJAMIN, W. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 117).
Terminada a guerra e esvaziada a ideologia que a sustentou, o herói guerreiro, sem os brilhos do glamour e idealização, passa a ser visto como um executor.
Logo depois da Segunda Guerra, ensinando jovens alemães, Victor Klemperer descreve o seguinte:
"Algo me levava a crer que uma luz iria clarear essas mentes bem-intencionadas - mas eis que, de maneira natural e óbvia, algum aluno se referia ao comportamento heroico, à resistência heroica ou ao heroísmo em geral. Quando conceitos assim vinham à tona, dissipava-se a lucidez imaginada. Voltávamos ao nebuloso pensamento nazista." (LTI, Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 39).
O esforço de combate à ideologia da guerra é árduo e parece implicar um trabalho de desmitologização. A prisão de Lula parece implicar, neste sentido, uma substituição mitológica: a queda de um herói da esquerda (um mito numa função messiânica e não guerreira, neste caso) para a ascensão de um novo herói - desta vez, da extrema direita.
Subjaz, na dança de mitos que temos acompanhado em nossa política, que nossas ideologias seguem pouco esclarecidas. Do presépio da esquerda (o "lá" do "Lula lá", onde brilha uma estrela - ainda que vermelha) ao escuro porão da ditadura (onde "brilhante" é somente um nome de torturador), regredimos tragicamente. Mas precisamos nos interrogar por que nossa política ainda se faz por ideologias tão claramente sustentadas no mito.
XCVI
Entre o ato de condecorar policiais e milicianos, comemorar o assassinato de uma vereadora de esquerda, registrar a quebra pública da placa com o nome da vereadora e planejar o assassinato de adolescentes numa escola pública há em comum o enaltecimento do heroísmo.
Por mais distância e horror que haja entre a quebra da placa e a morte de adolescentes, é importante que se aponte em ambos a presença ultraconservadora da valorização do herói de guerra. Foi neste lugar de herói que o Coronel Ustra, ex-chefe do DOI-CODI, foi lembrado pelo deputado Jair Bolsonaro no seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff. A ideologia da guerra e do herói foi, neste gesto, colocada como opção unificadora das insatisfações de camadas conservadoras da população. A alcunha de Mito para o Bolsonaro candidato a presidente precisa ser entendida em sua relação com essa ideologia e a concepção idealizada de heroísmo que ela carrega. Também o comportamento adolescente de criticar "inimigos" e retrucá-los com virulência pelas redes sociais decorre da "virilidade" esperada do suposto guerreiro herói.
A quantidade de militares presentes neste governo e a mudança das doutrinas do Itamaraty diante das tensões com a Venezuela são provas fortes de que a ideologia da guerra foi efetivamente instituída no Brasil.
Não menos relacionada à ideologia da guerra, infelizmente, é a convicção de que alguém se torna um mito por "limpar da face da terra" seus inimigos pretos, gays, esquerdistas etc.
Cito aqui uma passagem de Benjamin, de 1930, que muito precisamos fazer ecoar: "um jornalista liberal que há pouco tempo tentou definir esse novo nacionalismo com a expressão 'heroísmo do tédio' [...]." (O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 119).
XCV
Um outro Brasil possível não pode ser fundado na modernização da relação entre Casa Grande e Senzala, mas na ruptura com ela. Nossa história tem encontrado o avanço tecnológico da Casa Grande de um lado e o fortalecimento identitário dos descendentes da Senzala de outro lado. Porém, a dialética entre eles segue paralisada nas regras e condições pouco tocadas da relação de trabalho e da reforma agrária durante um governo que se pretendeu de esquerda.
Seria importante que as políticas de identidade pudessem entender os limites de seus esforços se as relações de produção, que assimilaram nossa herança escravocrata, não forem tocadas.
XCIV
Como "um profeta de olhos postos no passado" (Benjamin) estamos a tentar entender o que aconteceu com o Brasil "país do futuro" (Zweig). Onde erramos, em que momento perdemos o bonde daquela história de modernização que ali estava à nossa espera.
Ao menos num ponto erramos muito: fundamos um projeto de nação sob uma tentativa de reconciliação entre Casa Grande e Senzala. Jamais entraremos efetivamente noutra era enquanto carregarmos em todos nós as marcas dessa divisão que ainda nos força a uma divisão cultural e social (e não só econômica) entre senhores e escravos. O futuro não está na reconciliação, mas na superação desta divisão. Para isso, não há acordo de redistribuição econômica que se sustente enquanto não houver abalo nas estruturas de poder da Casa Grande. Enquanto houver Casa Grande, carregaremos o passado escravocrata aonde formos.
XCIII
"As formações políticas que se constituíram no fim da guerra, dubiamente colocadas entre confrarias baseadas na camaradagem e representações regulares do poder do Estado, não demoraram muito a consolidar-se em bandos independentes desvinculados do Estado, e os magnatas financeiros da inflação, para quem o Estado deixou de ser garante da sua riqueza, souberam apreciar a oferta de tais bandos, facilmente acessíveis, como o arroz ou os nabos, através de entidades privadas ou do Exército." (BENJAMIN, W. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 121).
Assim Benjamin, em 1930 (Teorias do fascismo alemão), descreveu historicamente a origem das milícias alemãs que resultariam na Alemanha nazista. Neste texto ele faz a citação do livro "Guerra e guerreiros", organizado por Ernst Jünger, com textos de ex-combatentes alemães da Primeira Guerra Mundial.
O elogio e o enaltecimento públicos do militarismo e das artes da guerra parecem ser características comuns, guardadas as distâncias históricas e sociais, da aproximação explícita entre as milícias e o poder econômico e político de um país.
XCII
"Os "fatores subindividuais e pré-individuais" que definem o indivíduo pertencem ao reino arcaico e biológico; mas não se trata de uma questão de natureza pura e sim de uma segunda natureza: de história que se solidificou e transformou-se em natureza. A distinção entre natureza e segunda natureza, se é estranha ao pensamento social, é contudo imprescindível para a teoria crítica. O que constitui a segunda natureza do indivíduo é história acumulada e sedimentada. É história durante tanto tempo não-liberada - história tão monotonamente opressiva - que congelou. A segunda natureza não é simplesmente natureza ou história, mas história congelada que aflora sob a forma de natureza." (JACOBY, R. Aminésia social: uma crítica à psicologia conformista, de Adler a Laing. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 46).
Precisamos nos interrogar de aquilo que o lacanismo tem por hábito justificar como "fato de estrutura" não corresponderia, talvez como fator supraindividual, ao que Jacoby na citação acima chamou de segunda natureza (numa referência à György Lukács).
Quando ouvimos que é um fato de estrutura que as pessoas procurem um mestre para amar, não percebemos aí a acumulação e a sedimentação históricas do patriarcalismo: segunda natureza.
Quando tomamos como um fato de estrutura que a libido é masculina e a mulher não existe, não ouvimos os ecos aí contidos de séculos e séculos de cristalização da violência de gênero: segunda natureza.
XCI
A cena do vídeo tuitado por Bolsonaro foi explicada pelos seus atores num texto intitulado Manifesto Golden Shower, cujo trecho diz o seguinte:
"Ao contrário do que disse o presidente da República, o vídeo que ele tuitou não era "um fervo imoral de carnaval". Era uma performance, ato de cunho artístico, planejado, com intuito de comunicar uma mensagem de artistas. Nossa performance, portanto, é ATO POLÍTICO. Um ato contra o conservadorismo e contra a COLONIZAÇÃO dos nossos corpos e nossas PRÁTICAS SEXUAIS.
Nós somos a EDIY, uma produtora pornográfica que trabalha a partir de corpos e desejos desviantes. O PORNOSHOW é uma prática de performance, dança e pornô contra a pornografia tradicional, que COLONIZA e encolhe nossa sexualidade. Nossos corpos e desejos dissidentes rompem com os papéis de gênero machistas e misóginos que enxergam os corpos feminilizados como buracos. Nós estamos ao lado da imoralidade de vidas ditas como irrelevantes e matáveis. Somos os corpos não docilizados da escatologia social. Nossos desejos NÃO DIALOGAM com o sistema sexo-produtivo do CIS-heterossexismo, masculino e branco. Em tempo: não somos homens, somos BIXAS."
Ao colocar-se como ato contra o conservadorismo e ao lado da imoralidade de vidas ditas como irrelevantes e matáveis, o manifesto inverte a ordem política proposta pela postagem presidencial: não se trata de clamar o exército conservador a lutar contra os excessos do carnaval, mas de mostrar o quanto os excessos do carnaval já são em si mesmos atos de luta contra o conservadorismo e sua pauta de domínio dos gozos.
A postagem de Bolsonaro com a presença do vídeo torna-se uma imagem que revela a dialética do momento histórico que vivemos: os fiscais de gozo versus os gozadores exibicionistas. O mais interessante nesta constelação é podermos ler o quanto ambos os lados deste tenso contraditório se satisfazem mutuamente: um lado procurando ferozmente o que o outro afrontosamente quer mostrar. Os opostos se encontram e se complementam na postagem palaciana revelando a promiscuidade que partes da esquerda e da direita oficiais compartilham há décadas no Brasil.
XC
"Agora estou viajando na Holanda. Tanto quanto posso julgar pelos jornais holandeses e franceses, a Alemanha está profundamente mergulhada na lama e vai afundar ainda mais. Asseguro-lhe, mesmo que não se tenha propriamente um sentimento de orgulho nacional, no entanto, tem-se um sentimento de vergonha nacional, mesmo na Holanda. O holandês mais insignificante ainda é cidadão em comparação com o maior alemão. [...] O manto do liberalismo foi descartado e o despotismo mais desagradável em toda a sua nudez é revelado aos olhos do mundo inteiro.
Isso, também, é uma revelação, embora seja de um tipo oposto. É uma verdade que, pelo menos, nos ensina a reconhecer o vazio do nosso patriotismo e a anormalidade do nosso sistema de Estado, e nos faz esconder a nossa face com vergonha. Você pode olhar para mim com um sorriso e perguntar: o que se ganha com isso? Nenhuma revolução é feita a partir da vergonha. Eu respondo: a vergonha já é um tipo de revolução; a vergonha é, na verdade, a vitória da Revolução Francesa sobre o patriotismo alemão que a derrotou em 1813. A vergonha é uma espécie de raiva que é virada para dentro. E se uma nação inteira realmente experimentou um sentimento de vergonha, seria como um leão, agachado pronto para a primavera. Eu admito que, na Alemanha, a vergonha não foi ainda sentida; pelo contrário, essas pessoas miseráveis ainda são patriotas. Mas qual sistema é capaz de derrubar o patriotismo deles se não este sistema ridículo do novo cavalheiro [Frederick William IV]? A comédia do despotismo que está sendo jogada conosco é tão perigosa para ele, como a tragédia já foi para os Stuarts e Bourbons.
[...] Um navio cheio de tolos talvez pudesse ser driblado por um bom tempo à mercê do vento, mas teria sido levado a encontrar seu destino precisamente porque os tolos não acreditariam nisso. Esse destino é a revolução iminente."
LXXXIX
Sem conseguir escapar à sedução mimética própria daquilo que mais se quer evitar - e não são poucos os relatos sobre o quanto os nazistas imitavam debochadamente traços miméticos considerados judeus - um presidente da República pode quebrar o decoro enquanto repudia a obscenidade. Na própria dimensão pública do ato de repúdio, a obscenidade repudiada é metaforicamente reproduzida. O que a pessoa do presidente ali expôs de si mesmo, enquanto falta de limites e produção de vergonha, não é, em relação à cena divulgada, tão divergente quanto ele gostaria que fosse.
LXXXVIII
Um presidente eleito por uma pauta conservadora, moralista e cristã viralizar um vídeo obsceno do carnaval é uma daquelas contradições que muito dizem sobre os estranhos caminhos que a verdade percorre na subjetividade humana.
LXXXVII
"As coisas não se passam como se o passado lançasse a sua luz sobre o presente, ou o presente sobre o passado; a imagem é o lugar em que o passado converge com o presente para formarem uma constelação. Enquanto a relação do outrora com o agora é (contínua) puramente temporal, a do passado com o presente é dialética, descontínua e irregular." (BENJAMIN, W. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 188).
Não são poucas as ocasiões em uma análise em que o relâmpago da recordação de uma cena faz passado e presente convergirem para os elementos estruturais nesta cena constelados. Em sua forma súbita, como retorno do recalcado, a cena revela da história do sujeito em questão os pontos de cristalização resistentes à mera continuidade temporal: a história que ali não se desdobrou e se condensou como monumento de gozo.
Os monumentos de gozo que carregamos no corpo compõem um diário secreto daquilo que nos excedeu a razão e sobre o qual tentamos alguma forma ancestral de domínio por meio da mimese e da repetição.
Se a linguagem é o material para o qual a mimese se deslocou na história da humanidade, lá onde a linguagem falha na sua capacidade de circunscrição simbólica do excedente, a mimese novamente se destaca como meio corpóreo de assimilação do objeto estranho.
Os monumentos de gozo, nos quais passado e presente convergem, compõem um mosaico histórico fora da linha do tempo. Somente o forçamento de suas circunscrições simbólicas pode dissolvê-los na temporalidade contínua que diferencia o outrora e o agora.
LXXXVI
Num primeiro relato de separação do objeto (seja da mãe como objeto, seja do Hans como objeto do Outro materno), correspondente a um sonho de angústia, o pequeno Hans relata o seguinte: "Quando eu estava dormindo, pensei que você tinha ido embora e eu ficava sem a Mamãe para mimarmos juntos." (FREUD, S. Obras completas, Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. X, p. 30).
Como imagem indizível de separação que é, Hans fixou no corpo esta imagem tendo por resposta a angústia. Poderíamos dizer que a angústia aí fez nó (se escreveu) como nomeação ao real da separação.
Num segundo momento, em que Hans, num diálogo com o pai, relata o instante do início de sua fobia (bobagem), podemos ler o seguinte: "Quando o cavalo do ônibus caiu, levei um susto de verdade! Foi então que eu fiquei com a bobagem." (FREUD, idem, p. 51).
A queda do cavalo, que mais tarde será associada à queda do cocô ou à queda do bebê - diferentes modos da separação do objeto - faz nova imagem que se grava no corpo, agora fazendo a fobia de cavalos (uma homotopia, podemos supor, entre a angústia como elo e o simbólico (significante cavalo), que depois se desdobrará para veículos (por causa do [wegen] cavalo e Wagen [veículos])). Encontramos aqui um exemplo freudiano do que dissemos ser um encontro tenso entre a plasticidade pulsional e o fluxo inconsciente de significantes.
Podemos ler em imagens de quedas (separações do objeto) que se fixam ao longo da pequena história de Hans o que nele se constela como descontinuidade a gritar por meio de suas angústias e sintomas. Resta-nos saber o que isto teria a dizer sobre o sofrimento de seus antepassados.
LXXXV
"Se quisermos olhar a história como um texto, aplica-se a ela o que um autor recente diz dos textos literários: em ambos o passado depositou imagens comparáveis às que foram fixadas numa chapa sensível à luz." (BENJAMIN, W. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, p. 184).
O que vale, segundo Benjamin, à história e à literatura, vale também, segundo a experiência que a clínica psicanalítica permite, à sujeito falante. Quando se põe a falar autenticamente de sua história, não é difícil surgirem imagens passadas depositadas no corpo tomado como chapa sensível à linguagem. Em comum nessas imagens há sempre a redução de um corpo à condição de objeto. Por sua condição de depósito, tais imagens são antes escritas do que não coube no contínuo da história desse sujeito e ali ficou como um instante de descontinuidade que se suspende e se cristaliza. Na superfície do que essas imagens revelam um psicanalista pode ler as constelações dos elementos passados e o esforço subjetivo de lhes fazer caber num contínuo.
Neste descontínuo podemos ler a história dos oprimidos: "A tradição é o descontínuo do que já foi, por contraste com a história enquanto contínuo de acontecimentos. [...] A história dos oprimidos é um descontínuo. - A tarefa da história é apoderar-se da tradição dos oprimidos." (BENJAMIN, idem, p. 182).
MARÇO 2019
LXXXIV
O encontro tenso entre a plasticidade pulsional e o fluxo inconsciente de significantes, ambos interdependentes, pode produzir uma súbita suspensão capaz de constelar um estado de elementos e relações que, cristalizado, se apresenta como sintoma, fantasia, neurose, etc, conforme o nível micro ou macroestrutural com que o consideremos.
É esperado do psicanalista o saber ler esta constelação na superfície do material que até ele chega e forçar a retomada da dialética entre a plasticidade da pulsão e o fluxo de significantes, o que equivale a fazer a história ali paralisada reencontrar-se com suas possibilidades.
De Lacan recebemos alguns recursos para escrevermos esta constelação. O nó borromeu, por exemplo, constela por meio do enodamento de registros clínicos. E este recurso só nos vale se sua manipulação fizer falar esta história que se cala e se esconde entre sons, letras e furos.
LXXXIII
Como secularização das esferas mágica e sacral, a arte delas herdou a transcendência, mas como aparência, no que chamamos de aura.
Algumas manifestações do inconsciente em análise não são menos auráticas e guardam desta secularização a aparência também da revelação.
Neste sentido, talvez alguns fenômenos da clínica preservem o caráter de enigma "de toda arte que diz e não diz o que ela diz" (ADORNO, T.W. A arte e as artes e Primeira introdução à Teoria Estética. São Paulo, 2017, p. 48), numa condição mais próxima da faculdade mimética do que da ordem instrumental comunicativa.
Elementos conceituais emprestados da teoria estética talvez possam ajudar a psicanálise a avançar no entendimento destes fenômenos para que não resvalem ao campo do misticismo da religião.
A ideia filosófica de constelação, por exemplo, e de mimese - que Benjamin soube articular a uma teoria da linguagem - podem muito bem dar conta da aparência de revelação e magia presentes em algumas manifestações do inconsciente.
LXXXII
Em tempos em que pode haver, como disse Celso Amorim, "uma eventual ação armada sob a capa de intervenção humanitária", podemos supor também alguma espécie de ataque físico sob a capa de discussão verbal.
As tensões das fronteiras da Venezuela com Brasil e Colômbia, alimentada pela truculência do governo norte-americano, têm muito a ensinar sobre as tensões presentes atualmente nos laços sociais.
Nisso reside a hipótese monadológica de que podemos encontrar o universal no particular.
LXXXI
Em 1937 a exposição Arte Degenerada, organizada pelo presidente da Câmara de Artes Plásticas do Terceiro Reich, Adolf Ziegler, reuniu trabalhos de Picasso, Klee, Segall, Braque, Max Ernst e Matisse entre outros.
Em seu discurso para esta exposição, Hitler disse: "De agora em diante iremos empreender uma guerra implacável contra os últimos remanescentes da desintegração cultural. [...] Por tudo que nós apreciamos, esses bárbaros pré-históricos da Idade da Pedra podem retornar às cavernas de seus ancestrais e lá realizar os seus rabiscos primitivos internacionais."
(Citado em GROSSMANN, M e COELHO, T. Coleção MAC Collection. São Paulo: MAC-USP, 2003).
Em Adorno, numa referência muito clara a essa exposição, encontramos o seguinte comentário:
"No antagonismo entre a arte contemporânea avançada e o chamado grande público, esse processo desempenha, provavelmente, um papel considerável. Onde fronteiras são desrespeitadas, o medo reativo da confusão se faz facilmente sentir. O complexo externou-se de modo patogênico no culto nacional-socialista da raça pura e do xingamento do que é híbrido. O que não se atém à disciplina de uma zona uma vez estabelecida vale como imoral e decadente, apesar de aquelas zonas não possuírem origens naturais, e sim históricas [...]." (ADORNO, T. W. A arte e as artes e Primeira introdução à Teoria Estética. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017, p. 26).
Nosso equivalente atual é a rejeição da queer art em tempos de recrudescimentos machistas e patriarco-autoritários. Diante do culto ultra-direitista à heteronormatividade o cruzamento artístico das fronteiras assim estabelecidas é tratado também como imoral e decadente.
A exposição Queermuseu - cartografias da diferença na arte da brasileira, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, cancelada em 2017 no Santander Cultural de Porto Alegre, tinha entre os artistas nomes como Alfredo Volpi, Clóvis Graciano, Lygia Clark, Guignard, Farnese de Andrade, Leonilson e Adriana Varejão.
Desta vez, a guerra implacável contra os últimos remanescentes da desintegração cultural ficou a cargo do MBL.
Em sua nota oficial o Santander Cultural disse: "Ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana" (https://m.facebook.com/SantanderCultural/posts/732513686954201).
Ao ouvir as manifestações, o Santander Cultural assumiu, conforme sugere a nota, a visão heteronormativa e autoritária do mundo.
Não é difícil encontrarmos, neste trecho da nota oficial, ecos do que seria essa arte que não visa a elevação da condição humana. Se neste caso os rabiscos não foram acusados de primitivos, foram-no de depravados.
Se a elevação da condição humana estiver associada à censura do que cruza as fronteiras da heteronormatividade, então a ideologia do protofascismo verde-amarelo é alicerçada no machismo branco burguês, como equivalente da ideia de uma raça pura.
LXXX
Há pessoas que colocam o índio como exata antítese do empreendedor burguês. Esta compreensão esdrúxula só se sustenta numa concepção que reduz toda forma de existência econômica e social humana ao capitalismo. Ressoa sobre a forma de existência dos índios uma acusação que se pautaria na saída perversa da lógica do mercado (o índio vagabundo) ou uma desconfiança da sua não entrada nesta lógica (uma certa malandragem maliciosa). A concepção de que o modo de viver do índio é anterior e pode ou poderia ser exterior e independente do capitalismo não cabe para quem só tem olhos para o capitalismo.
Este pensar limitado consegue ver o mal que o índio causa ao capitalismo, mas nunca o mal que o capitalismo causa ao índio.
Se este pensador autocentrado pudesse enxergar o índio aprenderia muito sobre o modo de vida indígena, mas muito mais sobre si próprio e sobre o capitalismo.
LXXIX
Com a chegada da mediocridade ao poder vemos a inteligência ser reduzida a defeito pessoal: arrogância.
Quem hoje se dispõe à argumentação lógica e ao debate teoricamente fundamentado é chamado de arrogante e/ou intolerante, por querer "impor" suas ideias ou não aceitar a liberdade do outro pensar como quer.
O trabalho intelectual do debate de ideias parte da concepção de que a política é uma dialética entre posições particulares que aspiram à universalização. Neste processo, cumpre aos debatedores verificarem a sustentação de suas ideias diante do confronto com ideias discordantes. É esperado que, pela própria dialética em jogo, os debatedores envolvidos tenham, todos eles, suas teses afetadas pelo encontro de antíteses.
A redução de uma tese a traços da personalidade de seu emissor requer o entendimento não dialético de um debate. O debate fica mesmo reduzido ao seu escopo psicologizante, diante do qual o conteúdo político da ideia se perde por trás de supostos mecanismos de defesa. Consequência: os debatedores precisariam de tratamento (leia-se: ajustamento, quando não disciplina) ao invés de mais razão e reflexão.
Também é estranha a acusação de que uma discordância equivale à imposição da ideia opositora. A relação de discordância entre ideias perde sua dialética para ser entendida pela lógica do extermínio: uma discordância equivaleria, no horizonte, à eliminação de um modo de pensar. Um debate deixou de ser um encontro de ideias (ideias que, ora vão ao encontro, ora vão de encontro umas das outras) para ser um confronto de inimigos.
Se há um movimento no sentido da liberação do armamento pessoal, este movimento (e mesmo um contramovimento) já começou pela redução da crítica ao ataque. A palavra usada como arma faz do argumento algo equivalente ao insulto: não raro as discussões passam das ideias aos palavrões sem que se perceba claramente o ponto em que o debate virou briga. Talvez os debates já estejam se iniciando como brigas mascaradas.
A forma hater de reação nas redes sociais gerou uma regressão do comentário ao insulto. Em nome da liberdade de expressão afetiva e intelectual, sem a sustentação da dialética política das ideias, a confrontação presente no laço social ruiu em benefício da catarse irracional. A liberdade de expressão, sem a mediação política e o esforço intelectual, é a redução da própria expressão à reação reflexa. Quando não nos curvamos ao árduo trabalho próprio da reflexão, deixamos que o pensar se submeta ao imediatismo do arco-reflexo.
LXXVIII
A atribuição, aos índios, da condição de sujeitos sem trabalho que usam da proteção do Estado como forma de não ingressarem na vida de trabalhador formal, revela do atribuidor uma ignorância radical quanto a realidades históricas e culturais diferentes das suas.
Esta dificuldade de sair de si talvez nos revele algo de um bloqueio mimético, na forma da apatia ou mesmo da antipatia.
Se o amor, enquanto perder-se no Outro, é um modo extremo de mimetização, o ódio parece impossibilitar qualquer leitura do outro, submetendo-o violentamente aos paradigmas próprios.
Os primitivos sabiam ler nas estrelas. Muitos homens contemporâneos sequer olham para o céu.
LXXVII
"O emblema do partido nacional fascista na Itália era o fascio littorio. Fascio, palavra italiana, se refere a um feixe de varetas em torno de uma estaca que sustenta uma machadinha, um símbolo do poder que desde o Império Romano fez parte das armas do soldado de escolta das autoridades, chamado de lictor. O número de lictores dependia do posto em questão.
Estes lictores, oriundos da plebe e que serviam de guarda do poder, resumem bem o que é o fascismo: uma força recrutada nas camadas plebeias a serviço de um poder extremado dos ricos que impõe a ordem em uma sociedade desigual.
As formações paramilitares que se formatam após a Primeira Guerra Mundial na Itália e que levaram Mussolini ao poder se chamaram fascio di combatimento, ou 'feixes de combate'.
Em 1922, quarenta mil 'camisas negras', que era como se uniformizavam essas milícias, cercaram Roma e tomaram o poder num golpe que impôs a nomeação de Mussolini como chefe do governo, do qual só sairia preso, 23 anos depois." (CARNEIRO, H. Introdução: as raizes do neofascismo no século XXI, in: TROTSKY, L. Como esmagar o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018, p. 10-1).
Entre as diversas características do fascismo que vemos rondar pelo Brasil atual, não podemos desprezar a aproximação cada vez maior das milícias com o poder.
LXXVI
Seguem as pessoas da esquerda burguesa falando em ir embora, em sem saída, em o que fazer, em suicídio, em depressão. O golpe das últimas eleições forjadas produziu movimentos subjetivos de fuga ou recolhimento.
Quem olha em volta de si mesmo hoje de maneira crítico-reflexiva vê poucos índices de transformação. E vê muitos sinais de aproximação da barbárie.
Muitos retomam as atividades falando em luta e resistência, mas entre amigos e aos analistas confidenciam a desesperança.
Na ausência clara de um amanhã, vamos ter, talvez, como resposta, o crescimento do tédio e das relações efêmeras. O consumismo autodestrutivo e a experiência do sem sentido da vida, que se multiplicaram em movimentos que surgiram na primeira década do pós-guerra, talvez reapareçam se nenhuma proposta, capaz de recolocar no horizonte uma transformação possível, surgir rapidamente.
A unificação internacional das esquerdas ganha aqui a importância de evitar que a melancolização da política produza a fragmentação de forças sociais da esquerda em movimentos autodestrutivos de contracultura.
LXXV
Na mesma proporção em que uma criança pode ser o sintoma dos pais uma pessoa pode ser o sintoma de gerações de antepassados. E como todo sintoma é feito de um querer dizer, a pessoa-sintoma dos antepassados, em sua "doença", carrega destes o silêncio derrotado à espera de uma voz.
A morte de Marielle Franco, o exílio de Jean Wyllys, o suicídio de Sabrina Bittencourt têm em comum o silenciamento secular da voz dos derrotados. Eles são exemplos claros de como um sintoma é a encarnação irrequieta do querer dizer de gerações. Algo do que neles se apresenta de modo tão claro, explícito e evidente cabe a um psicanalista buscar e ouvir nas pessoas que até ele ali vão falar. Dar voz ao sintoma é fazer emergir em cada um algo destas figuras politicamente emblemáticas que tentam enfrentar e superar a resignação, a censura, o recalque, as ameaças.
Cabe, porém, destacar que o destino de Marielle, Jean e Sabrina são avessos ao do sintoma numa análise. Se o sintoma vence suas mordaças para passar de monumento de um trauma à voz, nossos três heróis políticos recentes, diferentemente amordaçados, perdem a voz para virar monumentos de um trauma. Quando alguém diz "Marielle presente" revela sua condição de portador de uma voz silenciada.
Nossa clínica está repleta de pessoas que, cotidianamente, e sem perceber, muitas vezes enunciam "Marielle presente", "João presente", "Maria presente", "Sebastião presente ", "Inácia presente" etc, portadoras que são de antepassados amordaçados. Quantos são os heróis presentes nos monumentos linguísticos que dão forma aos sintomas?
LXXIV
Jovens pobres e negros morrendo em contêineres num clube de futebol da maior torcida do país no primeiro mês de um governo indiferente às questões sociais. Uma tragédia. E um sinal para quem sabe ler o todo no particular.
LXXIII
É muito difícil, neste momento do país, evitar a associação direta das imagens do mar de lama da trágica ruptura da barragem de rejeitos em Brumadinho com a ruptura da barragem política que mantinha em estado de latência a violenta mediocridade e ignorância sob a qual a extrema-direita está afundando o Brasil.
São muitas as vítimas do descaso da Vale; serão muitas também as vítimas do descaso do governo.
O peso e a gravidade do incêndio do Museu Nacional e da ruptura da barragem da Vale são traumas intensamente articulados às mudanças dos rumos do país. São notórios os modos reais como retorna aquilo que é violentado pelo discurso político.
Nestas duas tragédias há algo de alegoricamente real do que vive a cultura, a memória e o próprio país.
FEVEREIRO 2019
LXXII
O romantismo brasileiro fez mal aos índios. Ao colocá-los como pessoas em paz e equilíbrio com a natureza, fez deles humanos sem história num ambiente sem capitalismo. Expropriados e destruídos, muitas vezes impedidos de falar a própria língua até perdê-la para sempre, muitos índios vivem em trechos inóspitos de terra.
Muitos dos índios Xakriabás, sem língua, sem água, sem chuva, se alcoolizam e se suicidam.
O esforço de alguns deles para recuperar e fazer ali uma identidade comum é um trabalho de buscar nas tradições perdidas ou quase esquecidas um sentido de vida por meio de um conjunto possível de significantes mestres.
Sem isso, algumas aldeias se fecham em si mesmas como um caracol na concha, agarrando-se desesperadamente nos S1 ofertados pela religião.
Assim como o Peruaçú, com seus dez centímetros de profundidade, já foi um rio de escavar cavernas, os índios da região já foram tribos de preencher pedras com desenhos de natureza. Hoje, ambos são o que resta após a chegada da dominação capitalista.
Se o romantismo pôde ler a dimensão mimética do índio com a natureza, faltou-lhe ver o que as civilizações ditas desenvolvidas fazem com a natureza e, por decorrência desta mimese ancestral, o peso da história sobre a paz e o equilíbrio indígena com uma natureza desequilibrada.
JANEIRO 2019
LXXI
"[o comunismo] É a destotalização geral e não a socialização de tudo." (Comitê invisível, agora, p. 184)
Nesta breve frase há uma pista gigantesca para pensarmos os equívocos e os caminhos do comunismo entre as lógicas do todo e do não todo.
LXX
"Assim, não há outra escolha senão desenvolver uma arte da conversa entre mundos que cruelmente falta, e que é o único lugar de onde pode emanar, no contato com uma situação, a decisão justa. Um estado de debate como este só pode ganhar o centro desde a periferia, onde no momento está confinado, por meio de uma ofensiva por parte da sensibilidade, no plano das percepções, e não do discurso. Nós falamos de dirigir-se aos corpos e não só à cabeça." (comitê invisível, agora, p. 188)
Nestas linhas, com as quais o comitê invisível termina seu panfleto, lemos a importância de que qualquer debate que a esquerda possa desenvolver, além de precisar vir da periferia para o centro, não pode deixar de se pautar pelas experiências que atravessam o corpo. O discurso de convencimento político que se sustenta na institucionalização ou na teorização sem buscar seus ecos na mutilação cotidiana da população, não toca na experiência de vida e se sustenta mais pela dominação cultural ou pelo messianismo do que pelo saber em sua dimensão materialista.
Sem que seja mediado pelo corpo de quem ouve, o discurso da esquerda é idealista e metafísico: promessa da terra prometida e não levante de dominados. Ao repetir-se deste modo separado da sensibilidade e do plano das percepções, o discurso da esquerda iguala-se ao da direita.
LXIX
O encontro de uma configuração contingente de elementos não previamente combinados com uma determinada necessidade é o que faz com que algo se constitua de modo constelar.
Neste sentido, uma constelação, embora contingente, não é obra do puro acaso, pois uma necessidade age como pano de fundo para o trabalho combinatório que ali se dá.
Que o que se deu de modo contingente venha a se fazer necessário talvez só seja possível por ser resposta a alguma coisa.
LXVIII
"Dante diz expressamente que ele não escrevia para os letrados, que só se interessavam por dinheiro e prestígio, e tinham feito da literatura uma rameira. Ele escreve em italiano porque não deseja servir a italianos cultos ou a estrangeiros versados em latim, mais aos iletrados da Itália, capazes de nobres aspirações e grandemente necessitados de instrução superior" (AUERBACH, Dante, poeta do mundo secular. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p.100).
Estas considerações de Auerbach somadas ao fato de Dante ter optado escrever seu poema em dialeto toscano (vernáculo) ao invés do latim normalmente usado pelos eruditos de seu tempo, revelam as intenções do autor de que sua obra alcançasse mesmo a mentalidade do homem do povo, mencionada por Gramsci, com o intuito moralizador, segundo comentadores.
Interessante pensar que uma das mais importantes obras poéticas da história tenha tido um intuito panfletário e moralizador num momento de convulsões políticas da República Florentina, da traição do Papa Bonifácio VIII e da condenação e exílio de Dante.
Algo muito semelhante se deu com o Lost Paradise de Milton três séculos e meio mais tarde (inspirado, aliás, pelo próprio Dante).
E ainda mais tarde, com o Canto Geral, de Neruda.
E quantos outros.
A relação da poesia com a derrota e o exílio políticos é secular. Seus objetivos em relação ao alcance e à transmissão de algo para as pessoas do povo, também.
Mais do que expressão de um lugar de fala hipostasiado, por sua história a própria poesia faz ex-sistir, como efeito, um lugar de fala. Menos um lugar de fala faz poesia do que a poesia pode fazer um lugar de fala. O poeta, aqui, seja medieval, renascentista, erudito ou da periferia, resulta do alcance que sua poesia encontra no laço social por sua realização como obra de arte. Se a poesia não se realiza como obra de arte, o lugar de fala não coincide com o do poeta.
LXVII
Referindo-se à leitura que Morello faz do Canto X do Inferno de Dante, Gramsci escreve o seguinte entre 1930-32: "Estamos diante da mentalidade do homem do povo que, quando acaba de ler um romance, quer saber o que fizeram depois todos os personagens (daí o êxito das aventuras em série): é a mesma mentalidade de Rosini, que escreve A monja de Monza, ou a de todos os escrevinhadores que escrevem as continuações de obras famosas ou desenvolvem e ampliam seus episódios parciais." (Cadernos do cárcere, vol. 6, p. 24).
Ler a realidade de um personagem no contexto de uma obra de arte é diferente de forçar uma obra de arte no contexto da realidade. Os limites de uma obra são necessariamente diferentes dos limites da realidade, uma vez que a obra se concretiza em sua relação não afirmativa com a realidade. As obras seriadas, na medida em que deslocam seus limites, sempre mais além, rompem em certa medida com esta diferença: arte e realidade se confundem na permeabilidade dos limites. Mas o resultado disso nem faz da realidade, arte, nem da arte, realidade. O resultado é a obra de entretenimento que, em sua ambivalência, sustenta-se na mimese empobrecida do artístico e no mascaramento da realidade. Quando não se pode localizar o ponto onde arte e realidade colidem, ambos se nublam num objeto cuja dimensão crítica fica ameaçada.
O comentário de Gramsci parece defender a leitura da obra de arte em seus próprios limites como material determinado, mas autônomo em relação à realidade.
O Farinata do Canto X do Inferno É E NÃO É o Farinata da realidade, inimigo de Dante. Não ler sua realidade artística, alegórica e metafórica, seria próprio da mentalidade do homem do povo, a quem faltaria os códigos da leitura culta. Quanto menos valor dermos a estes códigos, quanto menos metaforizarmos, mais uma obra como a Comédia será lida como obra de entretenimento ou, pela ausência de referência à realidade atual, nem será lida.
Por outro lado, vemos em nossos dias a proliferação das aventuras em série. Por orientar-se mais nos desdobramentos cotidianos do personagem do que no conceito de obra de arte, os seriados apelam aos cortes de suspensão do enredo, que não se configuram necessariamente em reviravoltas (Περιπέτεια = periécia), posto que as tensões se resolvem em geral de modo a trazer os personagens centrais aos mesmos lugares (sem inversões dos sucessos narrativos). São aventuras, em geral, de perturbação e recuperação de um estado e não de revolução ou superação do mesmo.
Uma obra de arte permite constelar o que está negado pela realidade, uma obra de entretenimento afirma, de modo lúdico ou dramatizado, o cotidiano massacrante que a realidade repete e naturaliza. Talvez esteja aí o interesse atual em fundar uma aventura em episódios parciais e não na obra como um todo que se constela.
LXVI
A forma virtual das perseguições, ameaças e ataques contemporâneos, sustentados, em grande parte, por machistas mimados, ilusoriamente separa a violência verbal da violência física. O hater não entra imediatamente com o corpo. É somente vociferação, muitas vezes escrita. Mas a vociferação visa reduzir a vítima ao dejeto: à merda, ao resto, à porcaria, à coisa. A voz do Outro agressor pode afetar, portanto, o corpo da vítima ao reduzi-lo a objeto ao invés de o tomar como interlocutor.
É possível, pode-se argumentar, livrar-se da ameaça hater desligando o computador e não atendendo o telefone. No entanto, isto implica o silenciamento e a invisibilidade da vítima, isto é, a destruição do sujeito: objetivo final das ameaças, seja pela redução à coisa ou pelo auto-apagamento.
O gueto político de nosso momento histórico pressupõe algo da camuflagem social: conter-se diante do comentário machista na fila do mercado, ouvir em silêncio a piada racista no elevador, silenciar à manifestação de ódio do taxista.
O ódio reverbera no mundo virtual e no mundo físico e se apresenta também cotidianamente em gestos naturalizados como modos de olhar (ou mesmo o não ver), tom de voz, tônus muscular, distância física, expressões faciais das mais sutis.
Mas é quando o hater não precisa identificar-se que o ódio vem como fúria expressa. Como palavra sem rosto que pode ser da boca de qualquer estranho ou mesmo conhecido que cruzamos na rua.
A voz do hater sem identidade é imediatamente assimilável à dimensão real do supereu: séculos de opressão objetiva que foi interiorizada por dezenas de gerações. O supereu é, subjetivamente, sedimentação de uma história de opressão.
E os haters, com ou sem corpo, são seus fantoches boçais.
LXV
"O primeiro abusador foi às vias de fato. Fui estuprada por dois anos. Ele dizia que eu era 'enxerida', que a culpa era minha e que, se falasse, meu pai morreria [..] Falar sobre isso me dói. Me expor custa demais. Mas entendo que preciso passar a mensagem de que sobrevivi."
Este relato emocionado de Damares Alves, futura ministra de Mulheres, Família e Direitos Humanos, mostra de fato a condição histórica de sobrevivência de muitas mulheres neste país. Mas cabe interrogar a ministra sobre o que é possível fazer para barrar o agressor, indo além da criação de condições de sobrevivência.
Em plenária da Câmara, em 9/12/2014, o deputado Jair Bolsonaro disse à colega Maria do Rosário: "Não saia, não, Maria do Rosário, fique aí. Fique aí, Maria do Rosário. Há poucos dias você me chamou de estuprador no Salão Verde e eu falei que eu não estuprava você porque você não merece. Fique aqui para ouvir."
Uma vez que ele sustenta este tipo de discurso, que mensagem podemos supor ao presidente eleito, depois desta exposição pública de sua nomeada para o Ministério das Mulheres?
A contradição entre as posições de Damares e Bolsonaro colocam a violência do estupro entre a lógica da sobrevivência e a do merecimento, a primeira envolta numa esfera místico-subjetiva, a segunda, numa esfera machista-odienta-truculenta, mas parece pairar um silêncio no que diz respeito à dimensão do crime aí implicado. E mais uma vez retorna a público a estrutura da cena à qual Bolsonaro nos remeteu a todos ao homenagear um torturador quando do golpe de Estado contra uma presidenta que foi torturada.
No relato de Damares, a repetição de um trauma que se nacionalizou por um golpe e segue em vias de se institucionalizar após uma eleição questionável.
LXIV
"Basicamente são homens ressentidos, de 30 a 40 anos, ligados a grupos de extrema direita, neonazistas e incels (celibatários involuntários que atrelam o fracasso de suas vidas amorosas a uma suposta banalização das relações sexuais). Enxergam a ascensão de mulheres e LGBTs como afronta à masculinidade e não costumam deixar rastros nem indícios de uma célula de articulação do movimento." (https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/15/politica/1544829470_991854.html)
Estas são as conclusões da antropóloga Debora Diniz sobre o perfil dos haters que a perseguem e a ameaçam de morte (ela que foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo federal e aconselhada a deixar o país).
É notória a relação da regressão ideológica da nossa sociedade com o questionamento dos pilares da sociedade machista-patriarcal. O bolsonarismo, em última instância, pode ser reconhecido também como um movimento de restauração de um poder machista que se viu ameaçado, uma espécie de contra-revolução.
As ameaças a Diniz, como também a Jean Wyllys e a Marcelo Freixo, e o assassinato de Marielle Franco, revelam uma nova forma miliciana de perseguição política, diferente da repressão institucionalizada do DOI-CODI da ditadura militar.
O novo carcará não é um militar fardado, mas um machinho ressentido de rede social.
LXIII
Como é comum acontecer nos EUA, aqui também vão atribuir a causa da tragédia de Campinas somente aos problemas mentais do criminoso. As determinações objetivas destes fenômenos são recalcadas, com o preço da repetição sintomática.
LXII
A colagem de um Brasil armamentista com o pior dos EUA, via o clã dos Bolsonaro, não demorará a trazer para cá estranhos sintomas sociais, tais como os atiradores suicidas de lugares públicos. Talvez o atirador da catedral de Campinas seja já uma terrível e triste manifestação disto.
Precisamos pensar sobre isso e interrogar também o porquê nos EUA o alvo principal seja a Escola e aqui tenha sido a Igreja.
(Será também por acaso que o atentado tenha sido no interior de São Paulo, berço natal dos valores bolsonaristas?)
LXI
Assim como é pertinente pensarmos o uso político da poesia, não é menos pertinente pensarmos o uso poético do lugar de fala. Mas é equivocado concordar com o curto-circuito que faria passar automaticamente uma fala do político ao poético somente por estar fundada num lugar de luta. Muito deste curto-circuito se dá pelo forçamento identificatório entre a função emotiva e a função poética da linguagem: o pendor para o emissor, sua intenção de convencer o interlocutor, e o pendor para a mensagem, a preocupação com a palavra e sua sonoridade, nem sempre encontram uma relação de equilíbrio. Por isso encontramos nas competições de slam uma oscilação entre o panfleto e o poema.
LX
Ainda que consideremos a riqueza e a atualidade sócio-política do conceito de lugar de fala, a poesia, para que seja arte e não panfleto ou discurso político, precisa dialetizar este lugar.
O poeta pode não abrir mão de seu lugar de fala, mas na medida em que isto não retire do poema seu lugar de objeto artístico. Quando o lugar do poeta se torna maior que o do objeto artístico, a arte ali objetificada perde sua necessária autonomia mediada e se reifica sob outras intenções de seu autor (intenções cuja validade e legitimidade podem ser, entretanto, reconhecidas).
O lugar de fala, portanto, pode ser meio para a produção da arte - e nisto, inclusive, incide parte de sua determinação; mas a arte que se conforma à função de meio para um lugar de fala já abriu mão de sua independência mediada para se tornar instrumento de auto-afirmação social (e, neste caso, é imprescindível não perder de vista que o lugar de fala também é determinado objetivamente e precisa da auto-crítica para escapar da reificação).
Por outro lado, é esperado da função histórica do poeta que ele possa cantar os gritos e os silêncios de seu povo e seu tempo para além de si próprio, rompendo ou alargando o lugar de fala até o limite avesso da subjetivação da alteridade.
Falando de si ou de outro, como um eu ou como um outro, o poeta nunca fala somente por si mesmo, posto que se deixa, enquanto parte, ser atravessado pelo todo.
O lugar de fala de uma minoria ganha voz poética quando consegue se realizar enquanto objeto artístico (uma vez que expressa esteticamente o que é social e historicamente negado). Algo deste lugar de fala se perde enquanto particular para se reencontrar mediado lá onde alcança o Outro por meio do objeto. Quando não pode se deixar perder, o lugar de fala do poeta se cristaliza em isolamento reificado e não alcança aquilo do universal e da mediação que faria dele objeto artístico. O resultado não é um poema, mas um panfleto político como caricatura da arte.
LIX
No país que elege um presidente que defende a tortura, a comoção e a viralização da cena de espancamento de uma cachorrinha não pode ficar sem reflexão.
Para além dos psicologismos que colocam os deslocamentos da compaixão ou a representação da pureza na figura da cachorra sem linguagem e sem defesa, há que se pensar no estranho gozo e nas diferentes razões que levaram ao compartilhamento e a tantos olhares sobrepostos a esta cena.
Há, certamente, quem viu a cena e se horrorizou por estar em evidente risco de proximidade - em função das ameaças machistas, racistas, lgbtifóbicas, antipetistas etc - ao lugar da cachorra; mas também há quem, escondendo ou não a excitação, assistiu a cena desde o lugar do agressor.
O discurso de Bolsonaro no voto pelo impeachment da Dilma criou uma marca na comunidade brasileira que encontra na viralização do vídeo da cachorrinha do Carrefour o índice de uma repetição.
LVIII
Se contada de modo satírico, a história recente do Brasil, com seus personagens grosseiros e boçais, daria uma ótima peça para o teatro de fantoches renascentista, época em que, liberada já pela Igreja, esta modalidade artística era utilizada nas feiras para transmitir os dramas históricos ao público comum.
Miniaturizados em bonecos de pano e madeira, a encenação de certos momentos do nosso presidente, vice, guru econômico e intelectual, alguns ministros e apoiadores como Magno Malta, relevaria muito mais facilmente aquilo que a esquerda tanto penou e não conseguiu transmitir para grande parte da população.
Assim como o teatro de bonecos construiu o imaginário histórico no século XVII, a própria História, no século XXI, se realiza como uma peça de mambembes de feira livre. Se no primeiro momento a grandiosidade do que estava sendo transmitido se escondia por trás do ridículo das miniaturas, hoje é o ridículo das miniaturas que tenta se ocultar com a moldura da grandiosidade do momento histórico.
LVII
Em época em que os laços sociais estão tomados pelo ódio, a ambiguidade acre das brincadeiras transborda em violência gratuita.
DEZEMBRO 2018
LVI
"Quem ama não faz contas." (Agora, comitê invisível, p. 129)
Na sociedade em que cada eu é uma empresa, também os laços amorosos e sexuais se tornam administráveis e calculáveis. A multiplicação de aplicativos de oferta e procura de parceiros, a construção de sempre novos algoritmos para o cruzamento de pares ideais, o desenvolvimento de ambientes festivos - verdadeiras feiras de negociações sexuais - de auto-exposição e barganhas afetivas de curto prazo etc, são demonstrações da dimensão consumista que dominou os laços sexuais e amorosos. É preciso experimentar diferentes parceiros como quem degusta diferentes sabores; provar todos, avaliá-los e escolher a marca preferida; enfrentar a angústia da promessa do mercado de que sempre e em breve surgirá um produto novo, uma novidade que todos vão querer; enfrentar a frustração de que todo produto enjoa com o tempo e tem sua data de validade. A existência de outras relações possíveis, a própria presença deste possível, já põe em movimento o desejo consumista, desejo sem lugar para a contingência, desejo condenado a vagar pela metonímia da lógica capitalista: o gozo pleno estará no próximo objeto, sempre.
Relações fundadas no imprevisível encontro, na incalculável surpresa, na contingência, na metáfora capaz de inventar um objeto fora da lógica consumista, são relações hoje consideradas caretas, ultrapassadas, démodé, ou impossíveis justamente por não caberem na lógica consumista. Mas é importante destacar que, por se constituir e se sustentar fora da dimensão mercadológica, o encontro amoroso se revela subversivo em nossos dias. Daí talvez a rapidez com que muitas vezes é atacado ou negado em nome de uma modernidade que tem levado grande parte de uma geração ao vazio e ao tédio.
LV
Estamos num momento histórico propício para se estudar as semelhanças formais entre os agitadores fascistas e os media intellectualis.
LIV
Os intelectuais da mídia ou os media intellectualis, tornaram-se empresas pessoais: suas aparições em eventos, no Twitter, no YouTube, suas postagens e publicações seguem uma lógica administrativa; preocupam-se com a velocidade da produção, distribuição e venda de tal modo que não dá tempo de reflexões e aprofundamentos. É preciso alimentar o consumidor ofertando-lhe sempre algo que aparente novidade e sabedoria, ainda que sob o risco de se falar sobre o que não se entende. São intelectuais mais ocupados com a lógica do mercado do que, de fato, com a crítica desta.
(A audiência, geralmente, é avaliada pelo número de likes e visualizações.)
LIII
É difícil pensar o papel atual do intelectual burguês diante da mediação capitalista das redes sociais. Assistimos hoje intelectuais que alimentam as redes com o claro propósito de produção de valor em torno da própria imagem. A dimensão formal desta troca coloca que, o que verdadeiramente importa, não é o conteúdo da crítica apresentada, mas a imagem do crítico como produto. Isto parece afetar o papel de intelectual de tal modo que podemos interrogar se o que ele assim consegue é o esclarecimento ou a plateia, o interlocutor ou o seguidor, o companheiro de partido ou o fiel.
Difícil acreditar que o consumismo que esta oferta da imagem coloca em movimento possa se opor à sociedade atual: o que o conteúdo destes intelectuais nega é afirmado pela forma que utilizam.
LII
"O conforto, que embota as percepções, alimenta-se repetindo palavras que esvazia de sentido e prefere nada saber, é seu verdadeiro inimigo, seu inimigo interior." (Agora, comitê invisível, p. 106)
O conforto é o principal inimigo político do intelectual burguês. Quando mergulhado no conforto, o intelectual é um capitalista convicto. Seu ativismo raras vezes vai além das margens de sua zona de conforto. E cabe mesmo interrogar se na hora de uma transformação real das condições sociais ele de fato cruzaria esta margem ou pensaria em voltar atrás.
No conforto reside, ao mesmo tempo, a contradição ética e a cisão cínica do intelectual burguês. Seria preciso dar ao conforto o estatuto de conceito político para que o debate sobre as amarras destes intelectuais possa avançar. Isto seria tirar o próprio conforto, enquanto conceito, de sua zona de conforto, pois ele corresponde a um ponto cego no discurso de todo intelectual burguês.
LI
"Arrasar em combate, subjugar
Nações, depois voltar com os despojos
De chacinas sem fim será da glória
Humana o apogeu, e feita a glória
De conquistas, ser tido por magnífico
Conquistador, patrono de homens, deus,
Ou filho de um, alcunhas para algozes."
(John Milton, Paraíso Perdido, Livro XI, versos 691-7.)
Encontrar hoje, em 2018, estes versos publicados em 1667, só nos faz pensar quão antiga é a lamentação crítica de quem viu um golpe autoritário acabar com seus sonhos republicanos.
(Vale lembrar que Milton era um defensor árduo da República, funcionário público de Oliver Cromwell, e começou a escrever Paraíso Perdido depois da restauração da monarquia.)
Mais um trecho do Livro XII:
"E a destra do Pai trono tomará,
E um nome sobre todo o nome. E quando
Apodrecer o mundo sazonado,
Em glória voltará p'ra julgar vivos
E mirtos, p'ra julgar infiéis de entre estes,
E fiéis recompensá-los, recebendo-os
Na ventura do Céu ou terra, que outra
Será o paraíso então, feliz
Mais que o Éden, em mais felizes dias.
Assim falou [o anjo] Miguel, depois deteve-se,
Como a um ponto final de grande mundo.
Tornou-lhe o nosso pai [Adão] alegre e atônito.
Oh bondade infinita, oh bem imenso!
Que resulte do mal tamanho bem,
E esse mude em bem. Mais admirável
Do que o que à criação primeiro trouxe
A luz às trevas! Cheio estou de dúvidas,
Se me arrependa agora do pecado
Que cometi e trouxe, ou mais me alegre,
Que um bem bem melhor vem daqui, e a Deus
Mais glória, e de Deus boa vontade
Aos homens mais, mais graça sobre a cólera."
(Versos 457-78)
Que resulte do mal tamanho bem: será a felix culpa a tônica do novo discurso das esquerdas expulsas do paraíso?
Enquanto a esquerda estiver às voltas com as promessas do pai, não terá condições de ouvir o desamparo real do povo. Precisamos caminhar no sentido da lida com o desamparo real e não no sentido do amparo imaginário. Ao ser humano de nosso tempo, ainda tão atravessado pela sociedade patriarcal e pelo imaginário monoteísta, é quase impossível pensar amanhãs sem paraísos ou terras prometidas.
L
Imaginarmos hoje que, daqui a 150 anos, um quinto da população mundial atual terá sido exterminada por doenças e guerras, parece-nos paranoico e delirante. Mas não foi assim para a população nativa das Américas. Um índio jamais poderia imaginar tal situação até 1491 (ano anterior à invasão europeia do chamado Mundo Novo).
Ao longo dos séculos XVI e XVII cerca de um quinto da população do planeta foi dizimada durante o processo de colonização das Américas. (Informações colhidas via Pelbart: necropolítica tropical.)
A história contada por Colombos e Cabrais é bem diferente da que atravessa os 896.917 (IBGE - censo 2010) índios brasileiros.
A História de uma escola sem partido equivale, na perspectiva real do recalque que ela propõe, a um Brasil definitivamente sem índios.
Ingênuo pensar que um projeto como o escola sem partido implicará somente (e isto não quer dizer que seja pouco) os livros e discursos de esquerda. Quando levado às últimas consequências, o apagamento dos documentos atinge o corpo, locus primeiro e último da História.
XLIX
A história do Brasil que nos importa realmente não está, como se costuma pensar, por exemplo, no pergaminho de couro de ovelha e cabra sobre o qual foi redigida a Lei Áurea (e que sobreviveu ao incêndio do Museu Nacional).
A história se escreveu (e ainda se escreve) sobre a pele de mulheres negras e de homens negros. Esta lei, escrita com ferro e não com pena de ouro, tão assimilada e naturalizada, é muito difícil de ler. Esta, por mais que se tente, não se pode queimar, pois ela ainda grita diariamente.
Tirar a esquerda das escolas e aumentar o açoite nas periferias não é outra coisa que escancarar a mais antiga lei de silêncio e de execução deste país.
XLVIII
Os estereótipos têm a função de burocratizar, tecnologizar e facilitar o pensamento, na medida em que permitem a padronização das coisas do mundo e a circulação por entre elas. Os estereótipos não deixam de ser relações formalmente cristalizadas para facilitar a orientação num mundo dado por previamente sabido, seguro e sem ambivalências.
A reflexão permanente, enquanto meio de romper com estereotipias e enfrentar a complexidade permanente de um mundo repleto de coisas e ideias atravessados de mediações sociais, culturais e históricas, requer um trabalho também permanente de reflexão e interrogação da experiência e dos afetos.
Um exemplo da facilitação estereotipada da orientação no laço social é aquela que, entre psicanalistas, divide o mundo entre analisados e não analisados. Os critérios tomados para isso são frágeis, pois supõem uma experiência de fim de análise em condições de fazer escola. Mas em geral os analistas se negam a perceber que não é a escola que se faz em função de uma proposta de fim de análise, mas sim que se faz uma proposta de fim de análise para que uma escola se sustente. Há modos logicamente sofisticados de se construir narrativas domesticadas com vistas a dizer quais são os escolhidos e quais não são.
Se eu julgar os analisados de minha escola de psicanálise pelos textos que produzem, vou dizer que são extremamente rigorosos e transmitem muito da experiência psicanalítica do real.
Mas se julgá-los pelo narcisismo, cinismo, moralismo, individualismo, autoritarismo e infantilidade que apresentam, vou colocar em questão não somente a escola, mas a própria psicanálise.
A personagem que os analisados defendem no laço com os colegas é tão caricata que basta uma tarde no convívio com os mesmos fora das paredes da instituição para sabermos que são pessoas tão social e neuroticamente complexas e determinadas quanto aqueles que dizem ter sido antes da referida análise.
A mediação social e histórica da personalidade dos mesmos não se limita a estereótipos construídos e sustentados pelo discurso analítico. É necessário um esforço crítico e dialético para romper com estes estereótipos e buscar suas mediações para além da cortina que a psicanálise coloca na forma desobjetivada de pensar o mundo.
XLVII
Ao propor e sustentar a existência de um pai eterno, onipotente é onipresente, as igrejas são as mais antigas produtoras de fake news de nossa sociedade.
A quantidade de adeptos que ela consegue ter há séculos demonstra o quanto que a coletividade é capaz de transformar uma crença em verdade.
XLVI
Se tomarmos os pichadores como representantes da periferia paulistana, teremos que considerar extremamente significativo que espalhem seus nomes pelos lugares mais inusitados da cidade.
São assinaturas altamente estilizadas, icônicas, quase ideogramas, que só são reconhecidas por outros pichadores. Uma rede social a céu aberto que vigias e tinta branca não conseguem evitar.
Um modo, talvez, de ocupar e marcar simbolicamente a cidade que os exclui. Mas também um jeito de mostrar o deslugar do jovem da periferia. (E cabe ressaltar que, apesar da variedade dos lugares pichados, invariavelmente a pichação está "do lado de fora".)
Talvez seja simplista e óbvio demais tomar o ato de pichação somente como vingança. Não que não haja o elemento da revolta neste ato. Mas há também algo que o remete seja ao desenhar na caverna, seja ao fincar uma bandeira na lua: um certo tomar posse humana. (Lamentável que muitos só vejam nisso vandalismo. Mas estes talvez concordem com a destruição de um sítio arqueológico para a construção de uma rodovia.)
O desafio dos lugares altos e difíceis e a subversão para com o espaço público e a propriedade privada dão voz às peripécias cotidiana da sobrevivência e ao protesto contra o Estado excludente e o sistema capitalista.
Para quem lida diariamente com o preconceito, a polícia, a precariedade e o descaso social, escalar um prédio de 12 andares é uma aventura juvenil, não um risco de vida.
A poesia concreta da periferia está aí: páginas e páginas de concreto desenhado. Por que a burguesia não a lê? Por que a considera sujeira, vandalismo e não um grito?
(A pichação é tão voz social de nosso tempo que a parede branca deveria ser lida como censura.)
As dificuldades que temos de enxergar as pichações na paisagem urbana equivalem à dificuldade que temos em dar ouvidos a estes jovens; e quando enxergamos uma pichação, o nosso esforço para decifrar as letras e ler o nome do pichador também é equivalente ao esforço para entendermos o que dizem e a identidade de cidadão que querem sustentar nesta sociedade.
Entre a tinta preta do pichador e a tinta branca do proprietário há uma dialética social que muitas vezes é e promete ser resolvida, cada vez mais, pela bala da milícia ou do Estado.
(Em termos estruturais, a troca de textos entre os intelectuais burgueses pelas redes sociais e blogs tem a mesma forma que a troca que acontece entre os pichadores. Mas só notamos isso quando nos deparamos também com a ameaça da tinta branca...)
XLV
"Os supostos novos senhores do mundo, em sua caça pelo decrescente poder de compra global e pela rentabilidade, podem apenas se devorar mutuamente e, desse modo, destruir as "sobrecapacidades" econômicas reais, fazendo desaparecer deste mundo os últimos vestígios da "normalidade" capitalista."
Ao terminar assim seu artigo Kurz destaca sua aposta de que a transnacionalidade do capitalismo não é uma modernização do mesmo, mas sua destruição, tendo em vista que o Estado-nação, necessário para sua sustentação estrutural, está entrando em falência.
Neste sentido é estranho pensar, numa aproximação rasa, que as esquerdas que ainda brigam por fortalecimento político e econômico do Estado, visando a proteção de sua riqueza cultural e social, brigam, na verdade, pelas condições de adiamento da superação do capitalismo. Mais uma vez, aqui, seria o caso de pensar na transnacionalização da esquerda como modo de entender e orientar a superação vindoura deste sistema, se Kurz estiver certo.
XLIV
A própria noção de periferia precisa ser interrogada como um campo de refugiados interno, isto é, lugar pertencente à fronteira do Estado-nação, mas no qual o Estado não chega. A periferia é, neste sentido, um território infranacional.
Decorre da cisão entre sujeito burguês e sujeito cidadão que, quanto mais um governo se alia e se endereça ao burguês, menos espaços terá o cidadão. Verdadeira também é a inversa, que foi golpeada, no entanto, com o patrocínio dos agentes transnacionais.
Por causa disso, se desde o golpe de 2016 temos visto o mercado ditar os rumos das decisões governamentais brasileiras, é esperado que desde esta época os lugares de cidadania venham diminuindo. Uma periferização crescente do Brasil que, num ritmo acelerado, mais próximo fica de um duty-free-shop para os agentes transnacionais e também mais se transforma num grande campo de refugiados para seu próprio povo.
É muito difícil que se possa negar, a considerar estes argumentos, a implosão da soberania nacional com a consequente falência da democracia.
XLIII
Uma prova cabal de como a transnacionalização do capitalismo se reflete na destruição de fronteiras e das políticas sociais é o aumento vertiginoso, nos últimos anos, dos campos de refugiados. Equivalente avesso do duty-free, os campos de refugiados são deslugares espalhados pelo mundo. Na cosmologia do capitalismo contemporâneo, enquanto os duty-free-shops são paraísos de isenção de impostos (atenciosos ao sujeito burguês), os campos de refugiados são infernos de isenção ou suspensão de cidadania (negativização, portanto, do sujeito cidadão).
XLII
David Harvey localiza o deslocamento da luta de classes para as disputas pela ocupação dos espaços da cidade. Os rolezinhos de adolescentes de periferia em shopping centers de áreas nobres de São Paulo são um exemplo desta disputa e ocupação.
O sujeito que se expressa nesses rolezinhos pode ser concretamente situado pelos vetores de identidade, localização, classe social e história. É a dimensão cidadã do sujeito apontado na cisão por Kurz.
Dimensão marcada pela referência de Estado-nação que a transnacionalidade coloca em segundo plano em nome da dimensão burguesa deste sujeito, sujeito da concorrência global (vulgo "Mercado") e tão virtual quanto o capital financeiro que o determina.
Enquanto a esquerda busca dar ouvidos ao sujeito cidadão e se deixa engolir pelo sujeito burguês, a direita é toda ouvidos ao segundo, cuspindo, por consequência, o primeiro.
XLI
"O sujeito burguês, em si mesmo esquizofrênico, que é constituído, por princípio, na forma contraditória do "burgeois" (burguês) e do "citoyen" (cidadão), não pode mais, por fim, integrar sua contraditória identidade de Doutor Jekyll e Senhor Hyde em uma "pessoa total" razoavelmente viável. O indivíduo totalmente abstrato é "socialmente incapaz", e o "burguês" transnacional não é mais mediado pelo "citoyen" estatal-nacional. A "cisão da personalidade" da ratio capitalista manifesta uma nova qualidade, que não pode encontrar qualquer saída nas formas capitalistas." (Robert Kurz: https://jornalggn.com.br/blog/wilton-cardoso-moreira/o-fim-do-estado-nacional-por-robert-kurz)
Esta citação de Kurz faz lembrar a tese de Pierre Bruno de que o discurso capitalista produz uma cisão entre $ pulsão (Sr Hyde) e S2 inconsciente (Dr Jekyll).
"Naturalmente, situarei Jekyll em S2 e Hyde do lado do $. Jekyll é um doutor, um homem de saber, como Fausto. De modo contrário o doutor Fausto triunfa ali onde o doutor Jekyll sucumbe. Para assegurar o diagnóstico deveríamos dizer que Jekyll e Hyde são um esquizofrênico. Mas o que importa é que, nesta história, no momento mesmo em que se pode considerar que o processo de constituição do indivíduo chegou ao seu ponto máximo, e que caducou, então, a metáfora do corpo social orgânico, se descobre um indivíduo cindido em si mesmo, muito precisamente sob a forma de um sujeito isolado de seu inconsciente $ // S2. Esta é uma das chaves de sua leitura: Jekyll é o inconsciente forcluído de Hyde. Dito de outro modo, devemos considerar Hyde como o herói, e a sua incapacidade para saber o que quer que seja de seu inconsciente o defeito trágico que constitui o nervo, e a novidade, da história. O acesso ao inconsciente está radicalmente fechado porque a barreira do gozo foi eliminada. Assim o inconsciente vai trabalhar, como se diz frequentemente, por sua conta e risco. Se o inconsciente está em S2, como Jekyll, quer dizer que, contrariamente às ideias psicanalíticas correntemente aceitas que fazem de Hyde o inconsciente de Jekyll, é Jekyll o inconsciente de Hyde. Porque Jekyll é o inconsciente de Hyde e que este inconsciente está, pela estrutura do discurso capitalista, fechado, Hyde não é o inconsciente, senão a pulsão. O Dr. Jekyll e o Sr. Hyde são as figuras emblemáticas da cisão." (p. 88-9)
Há, certamente, diversas possibilidades de dialetizar estas duas citações.
XL
Com a consolidação das empresas transnacionais e da economia decorrente de sua força política, o Estado-nação perdeu poder e mesmo necessidade de existir como protetor da concorrência de empresas e mercados nacionais. Se a política entre os Estados visava a criação de condições econômicas para as empresas locais, agora que as empresas se tornaram independentes da força política de sua localidade, podem elas próprias entrar neste jogo por si mesmas.
Os monopólios empresariais transnacionais dão hoje as cartas do jogo, o que observamos cada vez mais com a multiplicação de guerras híbridas e a subida ao poder dos Estados de chefes-administradores dispostos a dissolverem os filtros de proteção dos seus respectivos Estados às entradas mais agressivas das grandes empresas.
Todo e qualquer projeto ou filtro de proteção social interno será destruído se fizer barreira ao avanço capitalista destas super empresas.
Mesmo o endurecimento de Estados e fronteiras e rupturas de acordos econômicos só se justificam hoje paradoxalmente pela regulamentação de interesses ou por conflitos econômicos supra-nacionais.
O sujeito histórico tradicionalmente pautado por direitos sociais conta nesta realidade econômica atual tanto quanto uma pequena empresa local: relegados à condição de sobrevivência.
O que podem, neste contexto, os partidos de esquerda ocupados com suas questões sociais internas?
A frente ampla que a esquerda precisa organizar em alguns países que guinaram à direita terá a médio prazo poucas condições de resistência se não se tornarem, também por sua vez, transnacionais.
É ilusório pensar que uma força política nacional terá condições de combater um jogo político que se transnacionalizou.
XXXIX
A "cultura" do armamento, perpetrada pelo discurso do atual presidente e seus adesos, deixa evidente que a sociedade que se pretende não é da igualdade de direitos, mas sim aquela da lei do mais forte.
XXXVIII
Acostumados à dimensão icônica da manchete jornalística e ao apelo sentimental dos slogans de publicidade, boa parte da população absorveu as fake news em suas mentes de modo equivalente ao do fumante que, sabendo do mal que o cigarro faz, prefere o prazer dos efeitos da nicotina em seu sangue. Muitos, ainda, estiveram submetidos a estas notícias como fumantes passivos.
Além disso, o mecanismo afetivo dessas falsificações tem o poder de se fixar nas mentes como slogans bem sucedidos. O kit gay, por exemplo, por sua extenuante repetição, já não carece de conteúdo e de confirmação: ficará em nossa memória como enigmática marca de um tempo, como Kolynos (AH!) e Coca-Cola é isso aí. Kit gay virou um sintagma pegajoso: um achado poético-publicitário que permanecerá colado em Haddad por sua força sonora, independentemente de seu juízo de verdade.
Quando uma notícia (verdadeira ou falsa) impregna o corpo sem a mediação da razão, perde-se a capacidade de usá-la como argumento; seu uso passa a ser próximo ao da resposta reflexa: para um dado estímulo aferente, uma certa notícia eferente.
A mesma condição de divisão input e output encontramos nas respostas que dividem o mundo entre pessoas de bem x pessoas de esquerda: se às primeiras cabe o valor A, logicamente - e independentemente de qualquer verificação - às segundas caberá não-A.
Muito da racionalidade tecnológica que domina os raciocínios não mediados pela crítica funciona repressivamente como um organismo isolado de qualquer contexto histórico e social.
O ataque contundente a todas as propostas de formação social e história do cidadão, em nome da não-doutrinação, pretende, consciente ou inconscientemente, reduzir todos os indivíduos à mesma naturalização lógica do organismo.
Sem história e sem sociedade, somos mesmo organismos reagindo na natureza hostil.
Não há dialética na natureza: sem dialética, o humano perde a humanidade.
Não há poesia sem dialética: sem dialética a linguagem vira código.
A velocidade com que as notícias circularam no segundo turno destas eleições revela uma suposição de que o ser humano está mais próximo de um processador de informações do que de um ser crítico.
Um processador de informações tem em comum com a ameba (como exemplo tosco de um organismo que age por reflexos) a incapacidade de pensar dialética e criticamente.
O ritmo de bombardeamento de fake news supõe um sujeito entre o processador e a ameba, mas certamente não supõe um sujeito realmente capaz de crítica.
XXXVII
A cisão com que muitas vezes nos deparamos na clínica e fora dela não corresponderia a uma defesa diante da divisão do sujeito? Esta divisão, própria do sujeito falante se concordarmos com Lacan, não é explicitada a cada vez que nos deparamos com a injustiça e a mutilação cotidianas? Não seria a cisão um modo de não querer saber de nada disso que, quando não claramente cínico, estruturalmente se equivale ao cinismo? (Entenda-se o cinismo aqui não como doutrina filosófica, mas como descaso por questões sociais.)
A cisão corresponde à manutenção do discurso da feliz apatia, enquanto a consciência da mutilação e injustiça segue resguardada como parcela do eu que não se pode visitar com frequência (e muito menos em contextos e reuniões burgueses). A cisão aqui considerada é regida pela lógica da exclusão da contradição: ou a feliz apatia, ou a consciência social.
Na dimensão política (e não somente psicanalítica) aqui considerada da divisão, que por sua vez é dialética, a cisão não se sustenta e a presença simultânea e contraditória da feliz apatia com a consciência social, ambas verdadeiras, resultam na angústia e no horror.
Para as minorias violentadas, no entanto, o que se vê não é a cisão e nem a divisão: é a devastação.
Dar ouvidos a estes já seria minimamente chamá-los à divisão, seja pelo reconhecimento de que há ali um sujeito, seja pela ocasião de saída da posição de objeto do gozo do Outro materializado nos agentes agressores. As políticas de identidades, embora fragmentem a classe dominada, tem uma importante função quando permitem um S1 (um nome, uma identidade) e um conjunto possível a quem, sem isso, talvez fique sem recursos de se contrapor à devastação.
XXXVI
O ódio à política, por sua vez, é uma concepção falaciosa, na medida em que faz supor a política como reduto específico, circunscrito e separado da vida cotidiana. O ódio à política, formulado como recusa a ser governado pelas formas tradicionais da política, esquece que a política não se reduz às instituições e aos políticos, mas atravessa a experiência cotidiana de quem se realiza numa pólis.
O espaço que a esquerda precisa recuperar enquanto sustentação da comunicação política, não se limita, por sua vez, a explanações de programas partidários, a promessas de campanha ou a levantamentos de necessidades materiais e sociais básicas. Sustentar a comunicação política é comunicar-se, mas na medida em que a comunicação não seja um esvaziamento político. Buscar o político na comunicação cotidiana é evitar o cotidiano da comunicação apolítica. Muitos recursos de comunicação cotidiana de nossos dias estão aí postos para nos desviar e nos distrair do que há de político a nossa volta. E é revoltante sim ficar atento cotidianamente às injustiças e mutilações. É angustiante ver que a micropolítica que nos cerca escancara a irracionalidade bárbara desta sociedade e nossa impotência diante dela. Mais fácil é odiar a dimensão política da vida e vivê-la na feliz apatia à qual as redes sociais nos convida. A política esvaziada da política que a extrema-direita nos apresenta reproduz na sociedade como um todo, mas para seus adesos, o vazio feliz e apático das redes sociais.
Para as minorias violentadas, no entanto, não há como se distrair ou desviar da política cotidiana. São estas que podem nos fazer acordar da feliz apatia, se lhes dermos ouvidos sem paredes.
XXXV
Dar ouvidos ao ressentimento e ao ódio para melhor entendê-los e pensar o que é possível fazer diante deles e pensar também como fazer a crítica à totalitarização contemporânea da racionalidade tecnológico-administrativa são tarefas tão complexas quanto óbvias para os próximos anos.
Ao mesmo tempo, urge construir, organizar e institucionalizar espaços de resistência democrática ao fascismo, como propôs Chauí na aula aberta que deu na USP.
Mas o principal objetivo para a esquerda talvez seja convencer-se de que ainda é possível superar historicamente o capitalismo. Desde que as utopias da esquerda caíram, os esforços reformistas de inclusão social têm produzido bons resultados numéricos (que não se sustentam a longo prazo, muitas vezes), mas nenhum sujeito histórico. Diante desse contexto a esquerda se vê cada vez mais acuada a uma agenda de autopreservação.
XXXIV
Qualquer que seja a configuração que a esquerda venha a ter a partir de agora terá que lidar com uma parte da população que está ressentida, com ódio ao debate político e conformada ao gerenciamento administrativo das próprias vidas. Se não encontrar meios de chegar a estas pessoas continuará falando somente para dentro da própria bolha.
XXXIII
As manifestações de junho de 2013 refletiram a recusa a ser governado. Em lugar surgiu o pedido para ser administrado. O ódio que ali emergiu revelou que as formas políticas tradicionais não estão mais conseguindo sustentar suficientemente o pacto social numa sociedade na qual o capitalismo transformou a tudo e a todos segundo a lógica empresarial. O que se espera, neste contexto, é mais da ordem do choque de gestão do que da assembleia ou debate políticos e democráticos. O clamor por resultados, na forma do jargão "tem que mudar isso aí", demonstra a falta de lugar para a conversa.
XXXII
A campanha de Bolsonaro, baseada na pulverização de notícias falsas de impacto afetivo por meio de redes convergentes de alta velocidade, revela o esvaziamento do debate político. Esta forma se apresenta como black bloc da comunicação política. A despolitização da política é característica do e, ao mesmo tempo, terreno fértil ao fascismo.
Não é estranho que, neste contexto, Bolsonaro tenha fugido dos debates. Mas, por outro lado, é assustador que não tenha precisado deles.
Aprendemos com isso que estamos num momento em que o conteúdo que ganha votos não precisa ser verdadeiro, basta que ofereça uma satisfação afetiva capaz de encontrar ecos na população. Neste caso, a satisfação que encontrou ressonância e virou votos foi o ódio à política.
XXXI
"Se Donald Trump é efetivamente uma figura do ódio, é que é primeiro uma figura do ódio à política. E é esse ódio que o levou ao poder."
Esta conclusão do comitê invisível (Agora - Maintenant, p. 72) nos indica que, se isto é válido também para o Brasil, muito da irracionalidade do antipetismo se deve não ao fato do PT representar a corrupção, mas sim ao fato da esquerda como tal se colocar como guardiã do debate político.
O ódio e a ameaça de extermínio da esquerda é a própria vingança de uma parte grande da população ressentida com a própria política.
Uma comprovação deste ódio à política nós temos quando colocamos como marco inicial do movimento fascista que hoje assistimos as manifestações de junho de 2013. Naquela ocasião a dimensão de ressentimento e revolta contra os partidos políticos foi claramente mencionada.
Silenciadas as manifestações, a direita juntamente com os mass media souberam canalizar este ódio à política ao PT.
Hoje, na medida em que a esquerda busca seu renascimento em torno do significante "resistência", se reafirma como guardiã do debate político e terá que enfrentar o ódio e o ressentimento na sua forma antidemocrática atual.
XXX
Alguns analistas têm colocado em questão as análises dos colegas por causa dos afetos e paranoias que estão apresentando neste momento político.
Os exercícios de desautorização entre os psicanalistas é a prova de que as análises levam, muitas vezes, às cristalizações de posições fálicas e a institucionalização de comunidades iniciáticas.
Mas reduzir as sensibilidades políticas diante da ameaça fascista que estamos vivendo à paranoia, não é outra coisa que psicologismo raso.
(Se a Alemanha tivesse ouvido o conteúdo político do delírio do Daniel Paul Schreber, quanta gente não teria sido salva?)
XXIX
Wilson Ferreira deixa clara uma diferença de extrema importância entre as estratégias comunicativas da esquerda e da direita. Enquanto a esquerda busca uma comunicação mais propositiva e conteudista, a direita se dedica à exploração tecnológica da forma. Ao usar redes de comunicação convergentes e de extrema velocidade, a direita veicula o impactante, apoiando-se no instantâneo mais do que na mediação. A linguagem é reduzida a mero instrumento, perdendo a riqueza de sua dimensão formativa.
Do ponto de vista lógico, estas estratégias comunicativas instantâneas apoiam-se na racionalidade tecnológica, pois não são outra coisa que administração da relação meios-fim. Não há qualquer lugar para a dialética que, importante que não se esqueça, é imanente à própria teoria do significante.
A direita utiliza uma forma de comunicação na qual não há lugar para o inconsciente e para a verdade. Há apenas lugar para a eficiência.
Resta saber para onde vão inconsciente e verdade por ela negados.
XXVIII
Muito se tem dito das estratégias de Bolsonaro: são técnicas militares de produção de dissonância cognitiva (Paulo Guedes e Mourão dizem algo impopular para posterior desmentido do líder que aparece, então, como pai restaurador e garantidor da ordem); ou técnicas evangélicas de desvalorização das controvérsias midiáticas para a afirmação da palavra verdadeira do pai (Bolsonaro espalha boatos nos mass media e depois desmente em suas lives, como forma de indicar que não se pode dar ouvidos ao que se diz lá fora e que somente ele e seus canais sustentam a mensagem verdadeira). Ainda que tais técnicas sejam notórias, não podemos, com isso, atribuir ao fascismo uma inteligência que ele não tem. É sobre a ignorância e a desinformação que tais técnicas alcançam eficácia e não pela suposta genialidade de manipuladores de gabinete. Se a esquerda tivesse feito o mínimo para formar pensadores ao invés de consumidores estas técnicas provocariam risos.
XXVII
Entre os elementos do mea culpa que a esquerda precisa fazer está o ter transformado sua vitória, para muitos, em ganho narcísico, mais do que em oportunidade de dar voz aos vencidos. Para parte da intelectualidade de esquerda a imagem de vencedor se sobrepôs à voz dos vencidos cujo espaço deveriam assegurar. O narcisismo e a arrogância são traços de intelectuais da nossa esquerda que servem mais à disputa fálica com o inimigo e à sedução de seguidores do que à escuta dos excluídos. Na verdade, são traços que reproduzem a sociedade patriarcal e, por isso apenas, já reproduzem a exclusão contra a qual pretendem lutar. Apesar da diferença nos conteúdos, nada mais parecido com as tradições da direita do que as formas sustentadas por um intelectual de esquerda narcisista.
XXVI
Foram muitas as conquistas democráticas nas políticas de identidade bancadas pela esquerda nos últimos anos. Mas cabe pensar o quanto estas conquistas, além de fragmentarem a militância, não ocuparam o lugar do trabalhador nas pautas do PT, ao menos.
Os ataques fascistas que estamos presenciando recaem, predominantemente, sobre membros destas minorias identitárias. A necropolítica que aí se coloca como discurso - isto é, a decisão política instituída de quem pode/merece e quem não pode/não merece viver - não deixa de ser um levante macabro contra as conquistas acolhidas pelo partido colocado como inimigo comum.
XXV
Quando um fascista bate no peito e grita o nome próprio em nome de uma arrogante e vociferante autonomia, revela o paradoxo da mais crassa cegueira sobre sua determinação e submissão social.
NOVEMBRO 2018
XXIV
Em seu discurso de ódio o fascista bate no peito e grita o nome próprio completo. Seu argumento é a moral e não a razão: mata-se em nome de. E seu gesto mimetiza um gorila que urra pra afastar o inimigo do seu território. Sem a mediação da razão, a moral regride ao tabu e o nome ao totem.
XXIII
Estamos a ouvir, de um lado, declarações fascistas de que a história é cruel, e de outro, da população excluída, o pedido de socorro na crença num mítico salvador. Enquanto num reverbera nomes e feitos das ditaduras vencedoras, noutra, o silêncio faz falar a massa dos vencidos. Enquanto não pudermos ouvir a dialética que há entre o tempo que se expande na vociferação fascista e o tempo que se contrai no silêncio sem socorro, ambos se encontrarão no autoritarismo.
XXII
Recebi o vídeo de um fascista numa sala de aulas em que a presença de câmeras oprime quem ali daria aula (e que não é filmado pela câmera cujo vídeo recebi).
Enquanto alguns filmavam quem representava a razão, uma câmera, ao menos, filmava o representante da força física que violentamente gritava: "qual é o receio que você tem?".
Chama a atenção que os dois nomes mencionados pelo fascista é o próprio e o de Pinochet: "viva Pinochet! Que matou quem devia matar! A história é pra profissional, não é pra amador! Nós matamos os índios! A história é cruel!"
As frases deste fascista nos ensinam muito. A história profissional é a história dos vencedores. Esta não é mesmo para amadores. Neste caso, a história é outra. (E cabe notar que não é mera coincidência o fascista ter deixado para o vencido o lugar do amador, posto que não se possa esperar que haja amor no lado do carrasco.)
Não há fascista que não faça referência ao nome do pai cruel. Seja ele Ustra ou Pinochet (e, agora, Bolsonaro). Como não há fascista que não revele intimamente sua mais estranha atração pelo objeto que destrói. O levante do agressor é quase o inteiro avesso de sua confissão de fascínio. Destruir o amador, não sem filmá-lo com o mais perverso desejo.
XXI
A política de nosso tempo já não se faz mais com base nos fatos. Em plena razão cínica a política é assumidamente administração de discursos, invenção de narrativas que mais atendam ao gosto do consumidor. O discurso que viralizar mais ou a narrativa que conseguir mais likes vence. A verdade não é necessária à contenda política. Vende-se uma ideologia qualquer a partir do estudo da psicologia do consumidor médio de um país. A lógica do mercado assumiu sem disfarces a cena política. Não há mais interesse em ouvir o eleitor em sua mutilação cotidiana, mas sim de pesquisar o seus sonhos de consumo. Não mais interessa denunciar a opressão, mas sim explorar a infantilização dos afetos. Em nossos dias, o discurso da transformação social não alcança o mesmo sucesso da propaganda que promete mais gozo, ainda que seja o gozo da vingança. A razão crítica faliu e a administração dos afetos sem mediação tomou o espaço político deixado vago pelos bordões arcaicos da conscientização de classe. A crítica precisa se renovar rapidamente. O materialismo dialético talvez resista à derrota total se puder buscar no corpo que trabalha as marcas que já não alcançam quaisquer discursos e narrativas envelhecidas. Dar voz e mediação a estas marcas talvez seja um modo de tentar recolocar a verdade, como experiência singular, no laço social. Forçar o dizer destas marcas pode ser também um meio de interrogar o porquê da adesão tão rápida à satisfação infantilizada.
Quando afirmamos que, contra a barbárie, mais razão, não nos referimos à conscientização clássica. Esta não pode mais se furtar a ser mais uma narrativa no balcão de negócios da política. Referimo-nos à razão capaz de buscar no particular o que nele é história cristalizada e negada.
XX
Em tabus sobre a profissão de ensinar Adorno nos lembra que o professor é o representante maior da ideia de que a humanidade se constitui pela substituição da força física pela razão como meio de estar e agir no mundo. Não é de se estranhar, portanto, que movimentos fascistas, adeptos declarados da força física como método de controle do mundo, comecem pela perseguição de professores. No domingo 28, Bolsonaro foi eleito; na segunda-feira 29, Ana Caroline Campagnolo, eleita deputada estadual pelo PSL de Santa Catarina, lança uma campanha de denúncia anônima de manifestações político-partidárias de professores; na terça-feira 30, a ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior) realizou reunião extraordinária para pedir ajuda ao Ministério Público Federal para conter "ações e atitudes incompatíveis com o mundo civilizado"; na quarta-feira 31 será votado na Comissão Especial da Câmara o PL 7180/2014, conhecido com Escola Sem Partido.
A barbárie ataca a razão de diversas formas: anonimamente, por ameaças, pela ação intolerante, de modo institucional.
Contra esta barbárie: mais razão.
XIX
Uma pergunta, cuja resposta se tornou urgente após a ascensão do nazismo, volta hoje em nosso contexto particular: como é possível a massa votar contra seus interesses verdadeiros? Mas, façamos a inversão que os teóricos críticos propuseram: como é possível a massa votar a favor daquilo que as oprime?
Esta mudança é fundamental para nos deslocarmos da sustentação de questionáveis "interesses verdadeiros" numa sociedade e num momento histórico em que não encontramos mais uma "consciência de classe". O que nos cabe como intelectuais é menos a tarefa de uma pretensiosa "conscientização" da massa do que ouvi-la para interrogá-la em suas experiências de opressão e a subjetividade que aí se constitui. Não é como arautos da verdade que conseguiremos romper o muro que separa intelectuais da massa, mas sim como escuta que busca a verdade que lá se contrai e se cristaliza como silêncio e mutilação cotidiana. Fazer esta verdade falar desde as ruínas do laço social contemporâneo é muito diferente de levar a verdade na forma de palavras sagradas, sejam religiosas ou partidárias.
Comecemos, então, por ouvir o Mano Brown, que foi vaiado pela esquerda. Ao dizer: "Eu vim aqui representar a mim mesmo, certo?", ele representou uma massa de pessoas que não foram ouvidas nos últimos anos: "Não gosto do clima de festa. O que mata a gente é a cegueira e o fanatismo. Deixou de entender o povão, já era. Se somos o Partido dos Trabalhadores, o partido do povo, tem de entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar saber. Minha ideia é essa."
Na dureza e seriedade de seu discurso, no meio do clima festivo de uma suposta virada, o rapper rompeu o semblante discursivo e forçou o aparecimento da verdade histórica de uma população ainda silenciada, desde os tempo das senzalas. Nas faces de quem estava no palco puderam-se ver expressões de perplexidade de uma esquerda publicamente interpretada em seu paternalismo político.
XVIII
Em nosso exercício semanal pelo bairro passamos correndo por um grupo de vigias das ruas que conversa e um deles grita alto: "votaria em Bolsonaro de novo!". Seguimos correndo. Mas a questão foi conosco: foi para nós? Como ele soube que somos contra o fascismo? Nossos trajes, nossa aparência, nosso jeito de correr revelaria nossa posição ideológica? (Pode ter sido simplesmente uma resposta a um dos participantes da conversa, nada tendo a ver conosco.)
Tivesse ele gritado em 1998: "votaria em FHC de novo!", despertaria, talvez, despeitada raiva ou um ressentimento passageiro, mas em tempos de democracia em queda livre, os sentimentos são de medos e cuidados. Em nossa garganta aperta a voz de um sujeito político coletivo que ressurge quando é calado. E é a este sujeito político que um grito como este, de reafirmação de votos de aniquilação odienta, visa.
Quantas minorias ouvem diretamente e diariamente agressões deste tipo e outras muito piores.
O caldo fascista que nos é tão antigo em sua expressão preconceituosa e autoritária, agora instituído, nos reúne a todos como inimigos comuns. O ataque instituído e o medo unificado reinventam um sujeito político que, talvez, tenha se fragmentado nas políticas de identidades da democracia. Democratas "versus" fascistas: talvez a luta de classes tenha reencontrado nesta atual formulação do conflito o seu respiro dialético. Resta saber se vamos conseguir alimentá-lo.
XVII
Pesa ainda, sobre muitas famílias, o silêncio político como herança da ditadura militar. A ideia, facilmente assimilada e sem perceber, de que religião, futebol e política não se discute, é um dos modos de perpetuar as condições do autoritarismo vivido por tantos anos. Estas condições, presentes ainda nas famílias nas quais a discussão política é uma ameaça, revelam o quanto as raízes do fascismo estão plantadas há tempos nas famílias de todos nós.
Famílias que saíram silenciosas da ditadura, sem espaços para reflexão política, são responsáveis, sim, pela fragilidade da democracia que nasceu e corre riscos de morrer jovem. Famílias inteiras que do autoritarismo saíram em silêncio e em silêncio a ele vão retornar, sem ter praticado em si mesmas a democracia.
XVI
Muitos eleitores do fascismo se colocam como personagens centrais na trama da tragédia política: perceberão, no desfecho da encenação, as armadilhas que o destino lhes colocou e todos os sinais que ele deixou pelo caminho. A peripécia trágica é o único recurso para fazer ver quem, como Édipo, só pôde ver depois que perdeu os olhos.
XV
Os mínimos gestos revelam em si, muitas vezes, o todo que se tenta negar num discurso falseado. O corpo não sabe mentir inteiramente. No riso do carrasco algo escapa de sua covardia e da consciência de sua pequenez. No modo como um homem pega um livro na frente das câmeras muito se transmite de sua pouca intimidade com este objeto e, por decorrência, o embotamento de sua razão. Pode-se, sem perceber, pegar um livro com nojo; levantá-lo até a metade, como se ele pesasse cinco vezes seu peso; mostrá-lo aos telespectadores como quem mostra o boletim ao pai. Um homem que despreza a razão pode pegar um livro com o mesmo estranhamento e repugnância com que um professor pegaria uma arma.
Um gesto para com um objeto não é nunca natural e imediato. A história e a linguagem ali se fazem presentes como mediação inevitável.
Não se pode pegar o livro de uma constituição sem dizer a verdade.
XIV
A palavra fascista ainda tem peso. E é muito importante que tenha. Quando usada em referência ao outro, ela carrega mais do que seu
significado. Leva o peso de uma história e uma memória que faz ecoar muito mais
do que um vocábulo político. É preciso que se a use sem retirar ou esvaziar dela
esta massa de significados dizíveis e indizíveis que ela tem. E quando
encontramos ou encontrarmos seu uso esvaziado na boca de alguém, cabe
interrogarmos se estamos diante de quem ainda a desconhece (e neste caso, é
urgente fazê-la conhecida), ou de quem, assim como o uso que fez da palavra, se
encontra esvaziado, mas, neste caso, de humanidade.
XIII
XII
A sentido da ruptura entre familiares e amigos nesta eleição
vai além da dimensão apaixonada do confronto de utopias e críticas. As rupturas
se dão porque os laços não suportam o que, para cada lado, é posto como limite
ético e não como opção partidária: de um lado, o limite posto pela "roubalheira
do PT"; de outro, o limite posto pelo apoio ao fascismo. Cabe destacar, no
entanto, que o uso fascista do argumento da "roubalheira do PT" se assemelha à
função que o judeu teve na formulação e propagação do inimigo comum necessário
ao nazismo (e aqui não estou negando que o PT tenha de fato roubado, mas não se
furtou às investigações e às punições, justas ou não); porém, é ingênuo pensar
que a esquerda brasileira esteja construindo e espalhando a ideia de um complô
fascista - a URSAL -com objetivos espúrios de internacionalizar e perpetuar a
"roubalheira do PT". Tal ingenuidade elevada a limite ético parece revelar que
a falácia de um complô petista já atinge em profundidade diferentes camadas da
população - pessoas explicitamente fascistas ou não, mas cedentes ao argumento
fascista do complô petista. Do lado da esquerda não é preciso ir longe para
demonstrar que o fascismo em questão não é imaginação: basta abrir os ouvidos
aos discursos de Bolsonaro por poucos minutos deixando em suspensão as certezas
movidas pelo ódio ao inimigo comum. Mas é esta suspensão, justamente, que se
faz impossível, uma vez que o complô petista aí seja posto exatamente para
justificar e legitimar tais discursos. Em certa medida, a oposição civilização
X barbárie concorre com a oposição força jurídico-policial X corrupção
generalizada para as rupturas mencionadas. Mas disso decorre uma retificação,
pois, as rupturas não são da mesma espécie: a civilização se apoia na ética,
mas a força jurídico-policial se apoia, muitas vezes, na moral, sendo
dogmática, portanto. (Consideremos que no argumento da corrupção generalizada,
ainda que verdadeiro, não se coloca nenhum projeto de extermínio ou violência
física, mas o caos, cujo modelo atualmente mais ventilado é atribuído à Venezuela,
cujo IDH de 0,761 está acima do IDH brasileiro: 0,759.)
XI
A paranoia antifascista, que prega a certeza da ampliação em
larga escala do pior que aí já temos, não por ser paranoia não é menos
verdadeira, posto que se ancora na História e em sua convicção de que o
fascismo não é desvio histórico do capitalismo, mas o seu destino, caso ele não
se deixe superar e se transformar em outra estrutura socioeconômica. É
paradoxal que o fascismo que cresce com a finalidade de destruir as raízes
marxianas da nossa esquerda é a prova material e concreta de que esta mesma
esquerda acertou, não no que diz respeito à consagração de seus ideais, mas sim
no que se refere à sua destruição. São marxianas as teorias que previram o
fascismo e que por ele correm o risco de ser censuradas. Se Bolsonaro é o pai
severo que as religiões esperavam, seus verdadeiros profetas, no entanto, estão
entre os vermelhos que ele quer matar.
X
A participação extremamente ativa das diversas igrejas e suas
divisões no convencimento do voto nestas eleições nos ensina que não somente o
Estado não é laico, como também a estrutura política que temos é religiosa,
posto que fundada numa disputa pelo melhor pai: Lula ou Bolsonaro. O lulismo,
embora não fascista, não é menos religioso, em sua estrutura patriarcal, que o
bolsonarismo. Está para nascer uma esquerda que não se alimente da necessidade
do pai e da ideologia salvífica. Talvez mesmo uma certa soteriologia seja, de
fato, imanente às ideologias de esquerda.
IX
Muitos eleitores não fascistas do Bolsonaro dizem não
acreditar em seu discurso de ódio e autoritarismo, argumentam que é "o jeito"
dele, que "fala da boca pra fora", mas não é o que pensa de fato. Neste ponto,
os eleitores fascistas estão mais perto da verdade do que estes não fascistas,
pois, sabem que o que seu líder afirma é o seu mais puro desejo de ser um
ditador assassino. Sabem, por reconhecerem lá o próprio desejo, coisa que os
não fascistas não conseguem, não podem ou não querem reconhecer. Parte destes
eleitores não fascistas do Bolsonaro se identifica com os fascistas no
antipetismo, mas não são capazes de se identificar com o desejo do líder.
Embarcam no fascismo como caronas, não como motoristas.
VIII
VII
VI
Os olhares que antes revelavam o fascínio e a condenação
moral por parte do preconceituoso, agora é o olhar que não desvia e que, fria e
prazerosamente, odeia.
V
IV
III
As escatologias bíblicas seguem sendo o material do enredo da
dimensão trágica dos dramas políticos da sociedade capitalista. Se no Brasil
recente tivemos a promessa da terra prometida com o pai dos pobres da esquerda
petista, agora esta promessa, não cumprida pela esquerda, passou a ser a
esperança alienada de quem adere ao pai severo da ultradireita bolsonarista. Em
contrapartida, parcela da população que viu ruir suas utopias de esquerda, vive
agora a chegada de seu apocalipse.
II
I