Primavera de 2018

MARIELLE


     um mar 


Elle... 

  Elle... 

    Elle...

punhos 

   PRESENTE (s)

Quem são eles?

quando a morte parece vir antes de qualquer futuro possível,

os olhos miram um espelho retalhado

às costas, o passado em desterro, sem morada, sem costura, faz-se velado sem consentimento

o pulo do tempo crava o envelhecer sem sequer haver nascido

para o abismo não se salta

já se está

enterro

O gelo da pedra do peito diz:
"Amanheceu.
Pega teu dia e o põe nos ombros.
Vai-te."


Saio pra trabalhar
Em silêncio 

correm os dias
nos iguais do tempo
mesmerinos
sem asas e sem remos


pesam em minhas pálpebras
os quilos lentos do cansaço
os cinzas velhos da cidade
o ruído contínuo dos carros

agarro-me a alguns livros
para não cair vazio
no poço seco
do marasmo

o dia deságua seu peso
no toque monótono do despertador
metais azuis do sol nascente
invadem frestas


mal fechadas persianas


sobreviventes pelo caminho
almas cabisbaixas
guardados os sonhos


nas gargantas
punhais de palavras
e flores envelhecidas


carros seguem seu curso diário
automático e repetitivo
como se amanhã não houvesse
e os dias fossem um mesmo hoje
cansado e programado


nos vidros dos prédios as nuvens
novamente as nuvens


(em seu tédio de nuvem
em seu ser nuvem novamente)


nada sugerem em suas formas
na paisagem opressiva
da pressa


chegar no horário
é o que interessa


no rádio uma canção
não sei se é de amor


(não me lembro de ter ligado o rádio)


mas ouço a canção
e um vento me atravessa


memória de quando?


o barro pisado com pés descalços
talvez


conversa perdida no meio do dia


sereno e lua


o farol abre e o mundo
o mundo buzina
Business


(desligo o rádio)

Na estrada apagada de nosso tempo,

um caminho que não é de festa
ou de sonho.
A tarde silenciosa recolhe o dia.
No varal a roupa seca sem vento.
Uma boca de gosto amargo parece restar
na cara de cada um que cruzo. Dorme


o cão do tédio na soleira com a mesma
inércia do poente lento. Poeirento é o chão.
E a imensidão de uma nuvem que não chove,
pesa sobre a paisagem feito saudade
de coisa boa
perdida pra sempre.

passos largos, multidão
largo lotado
tamanho passo, nacional
múltiplos não passam
ao largo
ecos de uma palavra,
que, qual enlace,
não larga tantas outras,
e
de mãos dadas,
enrolam-se
encadeiam-se
incendeiam
gritam em livros
ainda por
serem escritos


na contramão
de um desgoverno
varão


EDUCAÇÃO


verão cadernos
cabeças, mãos, corpos, entornos
estado de atenção
lápis, flores, forças, giros
variações e variações
de pensada
ação

a burrice

reina qual pontífice 

em épocas glórias 

seculares

sustenta medievas crendices

faz de qualquer pensar, tolice

infante retumbante 

vocifera

triunfante:

não ouses dizer saberes

prefiro a parca ignorância

dos que velam pela destruição


da história

da memória

das vidas já mal vividas

dos que, no frio, se cobrem

sem couro, sem ouro

sem outro

colisão entre o dentro e o fora


dentro todos com dentes
dourados, finos, bons vinhos, 

invisíveis restos, músicas de 

protesto


fora o bamba cambeia
sem meias, sem meios,
testa ao vento, relento,


Releio : a verdade não rima


gélido aço, pele de ímã


puxam o estraçalhar da poesia,


como o adentrar do mundo afora
terrível choque com seu contrário

quiçá,


a própria forra
da
metáfora 

sombrios
tempos
sem brios 

ultra
ustra 
man


us

ao menos um que não 

Pai dos burros


Dicionário de bolso
Bolso dicionário
Bolsonaro

olhos se voltam para o cu

do mundo

cúmulo do extravio 

impávido colosso deposto

impostos os propósitos óbvios

ululantes

de fazer lotadas as catacumbas

depósito de mortos 

aos montes, 

seus ossos

véu da vela, seu rei, reinando

patético dono do imundo

goza-se todo com armas, 

capitão almanaque

das fanfarras de sangue

(em)conjunto
para Sabrina Bittencourt


vulgo vulva viúva
da boca, das bordas,
dos lábios, cálidos
desolados
semi-abertos
e hordas
encobertas
cordas suicidadas
árido cerrado
mato pouco, pernas em penas
semi-serradas
sangrias de tantas
vagantes errantes
aos montes, perfuradas
infantes, sem levantes
no mísero instante
em que


uma sólida voz
se
cala

(in)conjunto
(para Sabrina Bittencourt)


vulgo vulva viúva
da boca, das bordas,
dos lábios, cálidos
desolados
semi-abertos
e hordas
encobertas
cordas suicidadas
árido cerrado
mato pouco, pernas em penas
semi-serradas
sangrias de tantas
vagantes errantes
aos montes, perfuradas
infantes, sem levantes
no mísero instante
em que


uma sólida voz
se
cala 

furor desalmado que me geram

do pálido, sangrias
das vistas, cegas, as retinas
das bocas, moucas vaginas
fúrias sem furos, imagens
adiante somente imaginas
buracos domados
tapadas viragens
andanças Megeras
as feras, às feras...
que assim da goela
possa passar o que gela
a soleira
e a porta, entre-aberta
do inferno
inverna as quase não têmporas
temporais para mais
e mais
que as cristãs, as garras e as presas
animais,
cantarolem do cântico novo
a voz
em cristais

nobody 

knows

her body

no body

his body

knows 

Borra 
         RACHA


                      apaga 

e os cravos que lá do azar fizeram novo sal, novos mares
poderiam até aqui navegar?
aprenderíamos com outros, embora quem sejam?
sem lona,
a palavra sai do circo
e em flor
pode fazer calar
a
metralhadora 

Tem que mudar isso daí
Tem que mudar
Tem que
Tem que
Isso daí
Mudar
Isso daí
Mudar isso
Isso
Mudar isso
Que mudar
Mudar isso
Isso
Mudar
Tem
Que mudar isso
Tem
Daí
Que mudar
Que mudar
Que
Daí
Que

lusas línguas lambuzaram nossas matas 

mataram, chicotearam,

devastaram

semearam à sêmens grossos até os ossos 

desses e daqueles que ali já 

passaram

porém,

o que fazer com os poemas de lá?

lusíadas apenas escarram os colonos?

se em solo gentil armas e barões assinalaram e escravos empilharam 

como tecer história com outras oratórias? 

do humanos que também somos

não somem as somas das sombras, ausência fria

como ouvir a lira?

leituras tantas de outrora que hoje quase não encanta 

fariam mais mascada a goma que se estica e se espia em um pedaço fraseado, inspirado

 podemos não lhes negar as letras?

as lentas 

as frentes outras 

pra quem enfrenta? 

resilienciada carne 

seus buracos 

marcados no chão

vermelhidão em negro corpo 

Fêmeo?

pedaço morto, fundos cravados

colchão estrelado, arcaicos armados,

mais fuzis


silenciada manhã

seguinte

trapos rasgados

esvoaçantes

voando em vento fumaça

mero instante, dia comum

e ainda, as mesmas luas difamadas

mais uma, mais um

Efêmero, quase pouco

para quem?

Não dizer
(Para M. A. Pina)


No não dizer da poesia
Colho cravos, colho cravos
E com eles calo minhas armas.

Para além do dizer que digo
Um cemitério de palavras.
E em muitas casas
Os retratos em seus altares.

Não há viver que não vibre
Do vil tempo tortuoso
As curvas mudas do passado
De onde extraio do vazio
Os mil versos do meu fado.

De onde estou vejo voarem as aves

Sempre mais além

Sempre mais além

E sempre


Atrás delas eu vou
Nas asas ralas
Da poesia

Mas o tormento do dia
Põe pés de chumbo
Em meus versos

E eu me despeço do céu
Como
Ácida
Chuva
Em noite
Fria

in-continências provincianas
desvarios de devastados parcos pátrios bolsos, sérios servos severos, cegos de tanto voltado, ao feérico brilho do outro lado

angulosa estreitura 
do que arquiteta a amargura
finura da glote, em um gole, o que não se engole
atribulado desgosto, dissaboroso bolor
bicolor desconsolo 
que faz do cinza, tortura
tinturas por dias, fragmentos infindos
polidas carnes, ouvidos
labirintos em tontura
diafragmática fissura 

troço que troça as gentes
trança tripas e tropas
gema trépida
gemidos tétricos
tiroteios tinteiro trôpego
tropeço em gomos,
estrondos trilhos
trombadas, trombadas
tramóias sem métrica
gangorras sem troco
tráfegos trágicos
trapos translúcidos
transe, transe, transe
terras, tronos em trajes
ultrajantes tratos
vermelhos 

a vida
não é
nada 

no silvo vil 
da víbora
a primeira fake news 

uma dor da voz pula

e embrulha as notas, as lutas

cala a escala,

oitava acima

cisma em sina, desafina

desalinha a retina, as narinas

fareja os pelos, as franjas,

as entranhas

o pó do escarro, o sarro

inescrutável escuta, alado ralo

abaixo

insondável som,

aspirado sufocado ar,

de caquético dom

pouco a pouco

dos tronos, os ourives

somem,

rateiam os homens,

e os reinos ondulam,

trituram

fecham as cortinas

e cravam

pasmos entalhes,

detalhes de vidro

nesses moucos

ouvidos

Bonsai


Soneto
Minguado
Jogado
Ao vento

Quimera
Perdida
Urdida
Na espera

No escuro
Medonho
Presente

Dormente
Um sonho
Futuro

parvos perversos, impossíveis versos, o mesmo crivo cristão

parvoalhos de apoucada razão

habitam e orbitam cada grão,

solo sem pés no chão, oh!

desmesurada abstração!

escrevem crentes uma vírgula lição, com soberba adesão 

par anóxico
desafinadas conversas
soldados versos
paranoicos

Primavera V (2018)


Cintila no teu canto
A luz do teu ouro vermelho


Vesúvio

Tambores pulsam
No horizonte
Tuas palavras de couro

Os cravos
Que herdamos
Não deixemos morrer

Sobre leito ruge de pétalas
Fecundaremos o amanhã
Mordendo de pavor os lábios

Vai poeta
E sonha
Um horizonte

Um cais
Uma primavera mais

Da carne de tantos mortos
A fonte
E um sangrar florido em versos

No magma destes dias
Escreve em pedra
Tua lida

E da boca carmim da criança
As quadras de uma ciranda
Celebrarão o dia

Desgênesis

E viu Deus que sua obra ia mal e resolveu findar
Tudo que humano fosse e que de humano não era mais;

Que tivesse reinado sobre os peixes do mar ou sobre
As aves do céu ou ainda sobre os animais da terra;

Ainda que tivesse ele reinado sobre toda a terra
E sobre todos os répteis que se arrastam sobre ela;

Mas resolveu o homem reinar sobre o homem e ali reinar
Como se o homem o peixe, a ave, o animal, o réptil fosse;

Arpoá-lo, engaiolá-lo, capturá-lo, torturá-lo
À imagem e semelhança do pior dos piores dos deuses;

Deus disse: eis que não mais vos dou a erva que semente dá
Sobre a Terra e não mais da frutífera árvore o fruto;

E Deus viu o quanto isto era ruim e'inda assim o certo a fazer
Sobreveio a tarde e a manhã: assim foi o primeiro dia;

E fim aos monstros marinhos e às multidões que enchem as águas
E caiam as aves na terra sob o céu firmamento;

Poluam águas segundo a espécie a massa de seres mortos
E Deus viu o quanto isto não era bom, mas quis assim fazer;

E os animais domésticos e os selvagens sobre a terra
E os que sobre ela se arrastam não multiplicai-vos mais;

E num estalar de dedos por Deus isto assim se fez
Sobreveio a tarde e a manhã: assim foi o segundo dia;

Não mais de alimento os seres vivos segundo a sua espécie
Nenhum mais nas águas, nenhum na terra e nenhum no ar;

E assim se fez e o homem de fome ruiu em sua casa
Sobreveio a tarde e a manhã: assim foi o terceiro dia;

Para que luzeiros a postos no firmamento dos céus
Perguntou-se Deus: para que o dia da noite separar?

E cegou o luzeiro menor que ali presidia a noite
E soprou o luzeiro maior que o dia ali presidia;

Os tempos, os dias e os anos não mais ali valiam
E estrelas a separar luz das trevas se despediram;

E Deus viu que isto era ruim mas mesmo assim isso se fez
Sobreveio a tarde e a manhã: assim foi o quarto dia;

E Deus pediu que as águas se reunissem cobrindo o árido
Afogadas as plantas, as ervas, as árvores todas;

Não se separem o árido elemento chamado Terra
E o ajuntamento no espaço das águas chamado Mar;

Barulhem, oh ondas, ventos em guerra, terras em cismo!
Quis o verbo que tudo findasse em ruidosa discórdia;

Deus viu que isto era ruim, mas mesmo assim, assim mesmo fez
Sobreveio a tarde e a manhã: assim foi o quinto dia;

Desfaça-se um firmamento entre as águas, juntem-se todas:
As águas que estavam debaixo do firmamento àquelas que acima estavam;

E que a luz se desfaça, escuro só, puro breu trevado
E em queda o firmamento já não mais firme se viu bambo;

Desfeitos os cimos não mais Dia se chamar a luz
Não mais Noite se chamar as trevas, nem mais Céus e Terra;

Fogo, água, terra, ar e o éter quintessência do Universo
Engolindo-se a si mesmos em implosão divinal;

No informe e vazio lançados os destinos da criação
No deserto póstumo o igual silêncio das priscas eras;

No abismo coberto de trevas o Espírito de Deus
Paira sobre as águas em melancólicos finfinais;

E a si mesmo ordena extinção exausto de tantos erros
E assim se fez e então mais nada sobreveio ao tempo último.

Moro
em um país
Sem justiça 

fascínio
fácil hino
hiperbólico clórico
coléricos vistos
bólido vício
desde o início


a passos rápidos
faixas fascistas
fixam-se às nossas vistas
e varrem qual boa faxina
as cores, amores, atores


espalham as dores,


espelham horrores


empilham seus seguidores


armados crentes
entoam seus cantos
seus dentes, seus dentes
abolem encantos
dementes, dementes
proferem seus mantos


fiéis sem espanto
doentes, ferventes


jardins à míngua
corpos com ínguas
expulsos os pulsos
os pulos, as línguas


muros erguidos
punhos cernidos
cativeiros cavados
aguardam, aguardam


cães à espreita
farejam seus bichos,
seus nichos, seus lixos
sinistros
suspeitas eleitas
das sestras não (a)ceitas

Escuto vozes!


Hoje ouvi um senhor falar que o que se estuda nos livros sobre a ditadura é um conjunto de mentiras! "As conjunturas"! E que quem a experimentou sabe que não houve tortura e que os torturados eram terroristas da maior envergadura. Da revolução de 64 e de seus heróis, apenas o recolhimento de lisura!


Ontem ouvi uma senhora dizer que a esquerda está inteiramente alinhada ao tráfico de drogas e ao desmonte do poder. O gosto do mito pelo império de armas não é, entretanto, de estarrecer. 


Anteontem um rapaz bradou que os gays são de tremer, as lésbicas de bater e as travestis ou trans, então, são de morrer. Higienismo é bom, sim! Não é ruim! É como selecionar quem entra na festa, pura ação, afinal: imprescindível para o avanço da civilização. Um viva à beleza, disse o petiz, com ares de realeza!

Semana passada ouvi que negros escravizaram negros. Aquela velha história segundo a qual Portugal nunca pisou na África continental. Ouvi, igualmente, da mesma boca com muitos dentes, que o regime de cotas é COITadismo! E os negros e os índios, dementes.

Há um mês, parece que ouvi que algumas mulheres não merecem ser estupradas! E que nunca houve esse problema de feminicídio no Brasil. Nessa hora, um zunido surgiu, ficou assim ecoando um Mi Mi Mi...

Faz um ano, alguém desmentiu que esse país é o que mais mata LGBTIs no mundo. Fake news. Ufa, ainda disseram, não nos farão reféns! Somos gente do bem! amém!...

Há uma década ouvi uma mãe dizer que os esquerdistas são pedófilos e que doutrinam as crianças com Kit Gays. No entanto, um soldado burguês, ao segurar uma menininha no colo e fazer com sua pequena maõzinha uma arma de fogo, ah! dizem em coro: faz parte do jogo! Afinal, a violência não estupra. Partido político?!... não! Sou supra!...

Duas décadas atrás ouvi rumores de que os movimentos sociais provocam horrores. Exterminá-los seria, não um ato extremo... e gritaram: acabemos com esses sanguinários.

Há cinco décadas vociferaram que arte e cultura eram coisas de degenerados. De invertebrados. De veados. Marxistas barbados, que corram para o outro lado! Seus destinos serão aqueles dos fuzilados.

Fizeram uma escola sem partido. As vozes, para traz, ficaram sombreadas, os sons irrefletidos. Em 1933, ao que parece, um chanceler qualquer, que não oferecia perigo a ninguém, que não fecharia congresso, nem... nem... também voava como gente de bem, assumiu para quem? O povo, inadvertido, viveu uns anos de guerra, como a vida erra... quem havia se abstido? Sem história, isso não fica mais tão nítido.

E amanhã? Escutarei? O quê?

Primavera IV (2018)


Os cães da primavera
Saudaram as primeiras flores
Com dentes de ferro

Uma noite de cristal
Brilhante
No horizonte

Lustra
Uma lua fria
Um palhaço ébrio
Uma rua em chamas

verão,
sufocante tempo,
cegos          verão

guerrilha
aguerrida poesia
fervilha
ervas, ervilhas
sementes, um grão
um vão
um não
vozes em coro
colorem
 o cinza das cinzas
do ódio 

No céu as estrelas
Em festa de brilhos
Nada delas se escuta


Mas sem elas
Navegar não é preciso

A luz do silêncio
A palavra que busco
Num horizonte de riscos

Sangraram as águas do mau tempo
Por mares turvos

Restou-me a vela da poesia
E o singrar
Em busca de um porto

Contra o muro
Lançamos palavras

Lágrimas tintas
Tempo vindouro

Tão logo veio
Foi-se

Num estouro

De gritos ourolivares
Pelouros

A perfurarem nosso couro

Cegos e moucos
Nossos muros de hoje

E o silêncio
Águas sem escoadouro

Primavera III (2018)


O medo
Deserto da palavra

Frio de chumbo no coração da pedra

Para onde vão os nortes
Quando ficamos sem pátria?

Cantaremos tudo de novo
E novamente acenderemos as velas

Buscaremos as palavras
E dentro delas uma primavera

Onde as sementes possam
Enfrentar o éolo
Fecundar o chão

E adormecer

Tranquilas

Até que raízes fundas possam dizer:
Que venha o dia!

Pétalas caídas, santinhos no chão,
Cheiro de sangue derramado.
(Despojos da primavera)

pathódio

sem paródia 

ódios paridos, pus,

pruridos

partidos, penas pulgas

pungente pistola

plantões de pedras

pugilistas 

pelotões 

párias pistolas

pelos pelados

pontiagudo pai, pútrido 

pregador de penitências

sem quaisquer reticências

...

Primavera II (2018)


Ainda ardem do verão as memórias
Mas é fria a primavera

Um vasto pasto seco
Aguarda rebanhos famintos
E espirais de urubus no meu céu
Alam a espera

Detrás da colina ficaram
A fonte e o regato
Poucas são hoje as árvores
E os frutos
E as mãos para alcançá-los

As sementes não mais se entregam ao vento
E caem
No oco solitário da pedra
Ou no silêncio profundo do mar

Primavera (2018)


Do crepúsculo o vento frio

Um gosto de pedra

Aqui e acolá abrem-se flores
Alheias a tudo

Um vazio de ideias nas mãos
Nos olhos uma dor de poeta
E no peito o sol posto de um novo mundo


Nunca do sabiá
O canto
Havia doído
Essa dor
De incerteza

Da árvore em que ecoa
Ele não sabe
Em solo de que país
Ela finca raízes

Canta sabiá e voa
Que eu contigo canto
Limpando das minhas asas
As cicatrizes

natimorto

olhos cerrados

ouvidos estritos

artigos estranhos

entranhas antigas

orifícios trôpegos

boca entre-aberta

Nú, quase grito

ungido em alerta

desperto não vivo

ardor sem crivo

incêndios, incêndios

idênticos

fúrias furor infrutos 

furtos dos húmus, dos sumos

futuros incertos

certos rebentos

Oh! Ódio em pátria!

a bala de prata

que arrebenta o ventre

sangra os entres

qual bola pútrida

pele sem tinta

saída das águas,

gélida esfera,

sem vida

Elegia (setembro 2018)


No chão da espera eu sento
Na areia molhada
Não canto porque faltam
Aos versos morada
Estrelas inseguras
No céu ainda brilham
Mas ode aos poetas se ouve
Inflamados cantos
Se amanhã o sol não sair
Haverá ressaca
Ondas levando os sonhos
Da minha jornada
E esta elegia enfim
Não será mais nada
Que um verbo no passado
Que não diz mais nada

aves, mares cheios, as garças
senhas, alvoroço
benditos a sós, vozes milhares
bem-te-vis seus frutos, ossos sem ventre
Já em cruz
cantada ária, meses em véus
rasgados nós, às pencas as dores
hora após hora ódio e morte
Amem!

Museu Nacional

(incêndios)

imponderada ruína

a mil vozes rumina

calados em chamas 

restos de história, 

entranhas 

trançadas trancadas vísceras

descobrem em corte

o vil,

a morte, a cera que escorre

mais, ainda, mais,

cais 

que a corte recobre 

e a pele desenha, desdenha

desfeitos perfeitos

solenes peitos

papéis e pleitos

reinados leitos

pretora negros rostos fios

pávido pavio 

em folhas próximo, 

queima as ramas

atola a terra lama

intempérie em série

insere

um grão qualquer que da 

chuva em queda

nada hasteia ou arvora

pletora canto grito

sequer ouvido

húmus banido

descabido ungido

quão varrido acervo

temido

serenos tremidos 

afogados idos, 

outrora mares

cristas, ares,

ovacionados eunucos 

incultos antanho em vulto

vaporosos pólens 

porosos d'arte

destarte escolta 

revolta

solta e volta

ao pó 

imponderados defeitos 

acordados das cócegas de frio
nas entranhas em tranças 

tacanhas vísceras
descobre em corte

o vil,
a cera que escorre
mais e mais, 

mas a corte recobre 

a pele desenha desdenha

os desfeitos perfeitos
solenes peitos
pretora pretos fios
pávido pavio 

em folhas próximo, 

queima as ramas
atola a terra lama
intempérie em série
insere
um grão qualquer que da 

chuva em queda
hasteia, arvora
pletora