genus quaestiones

Psicanálise, política e feminismo

trans-bordar

o

corpo



XXX

Não há norma sexual

Proponho que façamos uma diferenciação entre o aforismo: não há relação sexual e o que podemos criticamente designar como o binarismo lacaniano.

Freud nos havia colocado que não há inscrição inconsciente da diferença sexual. Também, postulara que a libido não seria masculina nem feminina. Lacan extraiu do dizer de Freud o: "não há norma sexual".

Verificamos que Lacan partira do não inscritível do sexual e do "não há relação sexual" para escrever a sexuação. Dizemos: não há o que escreva a sexuação, portanto, cada um que invente a sua. Mais ainda, os corpos, no encontro amoroso/sexual (que se dá por acaso, é da ordem do dizer, do acontecimento, da contingência), não fazem Um. Não há complemento. Não se faz Todo entre corpos. Se não fazem Um, tampouco fazem dois (porque não é do 1 + 1 que se trata).

Também vimos que aula de na aula de 17 de março de 1971 do seminário 18, ao iniciar a construção de suas fórmulas da sexuação, Lacan propôs uma interessante escrita que bem nos serviria como ponto de partida, qual seja: ⌐ⱻx.F, que diz que o x não é inscritível ou que não existe x inscritível na função.

Pois bem, é justamente em torno disso que se articula o que acontece com a relação sexual [...] A questão é o que não se pode escrever na função F(x), a partir do momento em que a função F(x) existe ela mesma para não se escrever [...] ela é, propriamente falando, o que se chama ilegível (Lacan, 1971/2009, p.104)

Caso possamos partir do "não há x inscritível na função", sob o argumento que tal função existe ela mesma para não se escrever, pois se trata do impossível, do que não cessa de não se escrever da sexuação, - e igualmente de suas derivações: "há o não inscritível", "há o ilegível", há o inaudível - nos será possível pensar a sexuação como o que articula algo do Real.

O não-inscritível como a Particular Negativa que funda conjunto abre espaço para as invenções singulares dos seres falantes. Isso parece bastante coerente com outras asserções lacanianas:

No seminário 21, Lacan diz:

"O ser sexuado não se autoriza senão por ele mesmo [...] Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros" (Lacan, Aula de 9 de abril de 1974)

No mesmo seminário Lacan falava sobre o sentido sexual que se define por não poder se escrever. O sentido sexual é non-sense. Há uma articulação entre o sexual e a cifra, mais propriamente, o ciframento: este enigma, este ponto que aponta o Real.

Ou, na Declaração à France-Culture, por ocasião do 28º congresso internacional de psicanálise, em 1974, diz Lacan:

É absolutamente fabuloso que ninguém tenha articulado isso antes de Freud, ao passo que é a vida mesma dos seres falantes; o perder-se na relação sexual é evidente, é massivo, sempre foi assim e, depois de tudo, até certo ponto, poder-se-ia dizer que isso não faz mais que continuar. Se Freud centrou as coisas na sexualidade, é na medida em que, na sexualidade, o ser falante crepita/balbucia [...] Existem normas sociais na ausência de qualquer norma sexual, isso foi o que disse Freud. [tradução e negrito meus]. (https://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Declaration_a_france_culture_1973.pdf)

Pontuemos, outrossim, que para pensar a lógica relativa ao não há, próprio à sexuação, Lacan (com Freud) precisou derrogar princípios da lógica clássica:

Encontramos, no seminário 21:

Mas isso quer, simplesmente, dizer que sua racionalidade está para se construir, e mesmo que o princípio de contradição, o sim e o não, não desempenham aí o papel que se crê na lógica clássica, não é? Como a lógica clássica é ultrapassada há muito tempo, neste momento, bem, é necessário construir uma outra. (Lacan, aula de 20 de novembro de 1973)

Lacan falava sobre o inconsciente. Sobre uma racionalidade a ser construída. Com a lógica paraconsistente podemos pensar a possibilidade de derrogarmos o princípio da contradição da lógica clássica. Por essa via, seguiríamos com a afirmativa que o inconsciente não conhece a contradição.

Sim. O inconsciente não conhece a contradição. E podemos avançar dizendo que, em termos da sexuação, há algo de suspensivo em jogo. Duas asserções opostas podem ser igualmente falsas. Podemos encontrar o que seja nem isso nem não isso. Desta feita, nos é possível dizer que se por um lado podemos derrogar o princípio da contradição, por outro, pelo não-todo, e em certas circunstâncias, prescindiríamos do princípio do terceiro excluído.

Não obstante tantos e importantes desdobramentos acerca do "não há" - não há relação sexual, não há norma sexual, não há x inscritível na função, Lacan sobremaneira manteve-se nos limites do binarismo, nos limites do masculino e do feminino. Voltemos à citação sobre o autorizar-se de si mesmo, referente ao ser sexuado:

O ser sexuado não se autoriza senão por ele mesmo. É nesse sentido que, que há escolha, quero dizer que aquilo a que a gente se limita, enfim, para classifica-los masculino ou feminino, no estado civil, enfim, isso, isso não impede que haja escolha. Isto, certamente todo mundo sabe. Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros [sublinhado meu] (Lacan, Aula de 9 de abril de 1974)

Lacan segue se interrogando nos limites (lembremos que essa é uma noção da matemática que Lacan lança mão para falar sobre os sexos) do que designa por homem e mulher / ou masculino e feminino / ou macho e fêmea. Sigamos:

[...] quando um homem encontra uma mulher [...] isso faz dois ou três? - Vocês se lembram talvez, enfim, os que estavam aí - então, eu o modifico ligeiramente: que efeito isso lhes faz se eu o enuncio " tu amarás tua próxima como a ti mesmo "? Isso faz mesmo sentir alguma coisa, hein, é o que este preceito funda, a abolição da diferença de sexos. Quando eu lhes disse que não há relação sexual, o que é que isso queria dizer? É importante situar [...], não há relação sexual [...] eu disse que não há iniciação. É a mesma coisa de dizer que não a relação sexual. O que não quer dizer que a iniciação seja a relação sexual, porque não basta que duas coisas não existam para que elas sejam as mesmas! [...] É claro que o amor, em suma [...] É mesmo um fato, que se chama assim, a relação complexa-é o mínimo que se pode dizer-de um homem e uma mulher [negrito meu] (Lacan, seminário 21, aula de 18 de dezembro de 1973).

Podemos dizer, com isso, que o aforismo "não há relação sexual" não desmancha o problema da diferença sexual em Lacan. Como ele mesmo disse, o fato de não haver relação sexual (e ter feito disso um axioma) não significa que eles, os sexos, sejam os mesmos. Não significa abolir a diferença dos sexos. Ou seja, Lacan mantém a diferença sexual sob a equivocada justificativa segundo a qual a ruptura com a diferença sexual redundaria no Mesmo (e não na diferença absoluta, radical).

Penso que a confusão entre os termos Homem e Mulher e o aforismo "não há relação sexual" faz com que muitos leitores de Lacan o defendam da crítica ao binarismo. Para Lacan a diferença sexual está mantida (mesmo que pequena, mesmo que por vezes irrisória). Que entre Um e Outro não se faça Um ou que não se encontre o dois do par (deles dois), ou seja, que não exista relação sexual, isso, para Lacan, não nos retira dos limites do masculino e do feminino.

O não há relação sexual e a necessidade do três para haver algo do dois (não ordenável) foi o que propiciou a Lacan o início da construção da teoria dos nós (muito embora o três tenha sido criticado por ele mesmo posteriormente):

O que o três faz do um, se não há o dois? Será que, simplesmente, nisso que ele tenha aí três, o aleph zero [o inumerável] já existia? É certo que, se enuncio que de dois não há, é porque isso seria escrever, no mesmo golpe do Real a possibilidade da relação tal como ela se funda da relação sexual. Não será que senão pelo três, e como escrevi de outra vez no quadro, pela diferença de um a três que procede a esse dois, será que,- tudo isso nos faz colocar a questão- isso foi preciso, para que déssemos esse passo, que o aleph zero tenha cessado de não se escrever? Dito de outro modo, que é a contingência, é o acontecimento desse dizer de Cantor que nos permite ter somente uma percepção sobre isso que ele é, não o número, mas disso que constitui em sua ternaridade a relação do simbólico, do imaginário e do real [colchetes meus]. (Lacan, seminário 21, aula de 8 de janeiro de 1974).

Lacan, com Cantor, toma o Um por seu aspecto cardinal (e não por ordenação). O Um como um Um. Convocando uma nodalidade ao invés da ordem, do ordenamento, pretende, com três não contáveis por ordem, fazer nó. O nó do falasser.

Lacan corta o Um de qualquer ordenação e aponta o aleph zero, o inumerável, como princípio da não relação sexual e do enodamento.

Sobre essa questão do um Um, encontramos igualmente o argumento de que se trata, na sexuação, deste Um que jamais encontrará o dois. O Um fálico não encontra o dois, não encontra o Héteros. A justificativa segundo a qual não se encontra o Outro seguiria sobremodo interessante caso deixássemos de vestir o um Um com o falo-Homem e o suposto dois com a Mulher não-toda. Ou seja, ao não abrir mão dos "significantes" Homem e Mulher, tal argumento, ao invés de desfazer o par, apela para um essencialismo, para substancialismos e segue reproduzindo, aí sim, o mesmo.

Poderíamos manter, com o enodamento, uma estrutura (Real) do falasser, que escreveria a não relação sexual, sem precisarmos escrever Homem e Mulher?

O que restaria das fórmulas da sexuação? A escrita da PN inicial: ⌐ⱻx.F, os apontamentos lógicos (das lógicas não clássicas, da lógica modal e a noção de compacidade) e a noção ético-política-poética de não-todo (enquanto não-absoluto e não mais como não-todo-fálico - deixemos o falo como uma possibilidade de sexuação...)?

{Apenas pontuemos que o três, resposta inicial de Lacan para justificar o nó (Real, Simbólico, Imaginário) mais tarde será igualmente criticado pelo apelo que guarda à santíssima trindade (Lacan precisará inventar o nó generalizado para romper com a verdadeira religião)}.

XXIX

Forçamento e ativismo

Sendo o vazio indiscernível enquanto termo (pois é não-um), sua ocorrência inaugural é puro ato de nomeação. Esse nome não pode ser específico, não pode classificar o vazio no que quer que seja que o subsuma (BADIOU, 1996, p.55)

Lembremos[1], mais uma vez, o tantas vezes citado trecho do sem 24 de Lacan:

Se vocês são psicanalistas, vocês verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido (...) O sentido, isso tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética [chinesa] vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica [negrito e inserção meus] (LACAN, 1976-77, inédito, aula de 18 de abril de 1977)

Lacan articulava o forçamento-interpretação à poesia chinesa.

Pontuemos, não obstante, que um pouco antes da referência ao forcing como o que permite "ressoar outra coisa que o sentido", ele havia proposto que o forçamento estaria entre S1 e S2. Ele disse, textualmente, que a ligação entre S1 e S2 é puro forçamento.

Lacan falava sobre o equívoco significante, no caso, entre "os-nomes-do-pai" e "os não-tolos-erram" (equivocação acerca do título de seu seminário 21) e afirmava que ali, nos dois "termos", estava o mesmo saber. Mesmo saber por ser o inconsciente um saber no qual o sujeito pode se decifrar (lembrando que a decifração mantém o enigma). "Ele o decifra, aquele que por ser falante está em posição de proceder essa operação que é mesmo até um certo ponto, forçada, até que se atinja um sentido" (LACAN, aula de 13 de novembro de 1973, inédito).

Podemos pensar na ligação entre S1 e S2 no Discurso do Mestre.


A operação forçada, que forma sintoma, decorre justamente dos termos que portam o mesmo valor de saber (via equívoco significante) sustentarem o paradoxo, ou seja, a contradição. Isso provoca, contingencialmente, a formação de um sintoma (fazendo então algum sentido). É assim que a neurose opera: isso e aquilo como tendo o mesmo valor de saber. Mesmo valor e conflito, colisão. Pela contradição, sentidos se desenrolam (não importando o valor semântico, os termos podem ser contraditórios). E sabemos o quanto a neurose é profícua em relação aos sentidos.

De outra feita, a operação forçada entre S1 e S2 no Discurso do Analista, que escreve a não relação sexual, não apontaria o possível do fazer ressoar outra coisa? Apontaria, portanto, o que suspende o sentido fixo e hegemônico. O mesmo saber, por aqui, refere o além ou o fora do campo do sentido. Ou, ainda, o não-todo-sentido.


Pois, vejamos. O forçamento[2].

Suponhamos uma Situação base (S) fundamental e enumerável (infinita). Conforme propõe Badiou (1996), se uma situação é enumerável (conjunto contável - de mesma cardinalidade de um subconjunto qualquer de números naturais - neste caso, relativo ao infinito contável), existe uma parte genérica: qual seja, aquilo que não se deixa discernir. Em princípio, esta está incluída na situação (é parte dela), mas não lhe pertence[3]. Porém, é possível forçarmos uma nova situação (uma extensão genérica) à qual a parte genérica passa a pertencer. Badiou afirma, ainda, que tal procedimento genérico produz (tem como efeito), sempre, o indiscernível. A parte genérica, uma vez pertencente, permanece indiscernível:

A parte genérica, que é desconhecida na situação, é, em contrapartida, um elemento da extensão genérica. Inexistente e indiscernível na situação, ela existe, portanto, na extensão genérica. Permanece, contudo, indiscernível nela. Podemos dizer que a extensão genérica resulta da adjunção à situação de um indiscernível dessa situação (BADIOU, 1996, p.334)

A parte genérica, muito embora indiscernível, passa a elemento de uma extensão (conjunto) genérica, o que pode ser "obtido pela fixação de um valor referencial para todos os nomes que pertencem à situação. Assim, embora desconhecidos, os elementos da extensão genérica são nomeados" (Ibid., p.333). Muito interessante pensarmos, nesse sentido, que esses nomes podem ser vazios.

Com o forçamento, constatamos que a extensão genérica tem toda sorte de propriedades que já eram da Situação (S). Estava ali contida, mas não pertencia ao conjunto. É preciso forçar seu pertencimento. Desta feita, será com a pertença do indiscernível que tornar-se-á possível expandir um conjunto.

Podemos forçar igualdades (equivalências) e negações.

Badiou afirma não ser evidente o modo como uma condição pode forçar, por sua pertença a uma parte genérica, dois nomes w1 e w2 a terem o mesmo valor referencial numa extensão genérica. Algumas igualdades seriam forçáveis, outras não. Outras, ainda, seriam parcialmente forçáveis. Ele fala sobre esses três casos (forçável, não-forçável, parcialmente forçavel):

Esses três casos desenham, entre suas margens, um campo aleatório, no qual podemos forçar certas veridicidades, sem que elas sejam absolutas, ou seja, somente a pertença de tal ou qual condição à descrição acarreta essas veridicidades nas extensões genéricas correspondentes. É nesse ponto que os enunciados y da teoria dos conjuntos vão se revelar indecidíveis (Ibid., p.324)

Ele se referia ao forçamento de igualdades (ou equivalências). Poderíamos colocar em outras palavras: há algo da contingência no apontar veridicidades não absolutas (não plenamente calculáveis - verdade não-toda), o que revelaria o indecidível[4]. Sob certas condições, torna-se possível a abertura para o não-todo.

Falar sobre a contingência posta no ponto em que S1 e S2 passam a ter o mesmo valor referencial em uma extensão genérica parece equivalente a pensar sobre termos (com o mesmo saber) que, por contradição (equívoco), enodam contingencialmente um sintoma. Sintoma que se faz, então, necessário (necessário modal). Produz-se, então, sentidos (todo). Assim, se do conflito entre termos (S1 - S2) uma neurose desencadeia (forma) sintomas, contando com a consubstancial produção de consistências necessárias, em um desamarrar sintomático verificamos o necessário mostrar-se efetivamente contingente e os termos (nomes) revelarem-se vazios (S1, S1, S1). O enodamento, fora, em princípio, fruto do encontro contraditório que fez algo cessar de não se escrever (contingência). A inclusão da contingência revelada pode esvaziar sentidos coesos - por serem potencialmente vazios em predicações/ significados, abrem o não-absoluto (não-todo).

A neurose e sua busca pelo todo (pelo absoluto) parece fazer do forcing entre S1 e S2 sentidos fixos e necessários. Muito embora tal esforço cotidiano, o revelar da contingência na equivalência (igualdade) entre termos/nomes vazios, fura o todo na partida. Os nomes-vazios, forçados em equivalência, rompem espaços coesos.

Como forçar, entretanto, uma negação? Ainda com Badiou, verificamos que a questão que se abre se coloca por uma não-necessidade da afirmação. Forçar uma negação não implica uma afirmação, não implica, portanto, sentido: "O conceito da negação, no forçamento, tem alguma coisa de modal: é possível negar desde que não se seja obrigado a afirmar". Sublinhemos que a modalidade, aqui, diz respeito ao possível.

Digamos, ao forçarmos uma negação de enunciado, suspendemos o sentido:

Uma proposição é o apagamento do sentido das palavras [...] Se ela (língua) é feita disso, do sentido, resta saber como: pela ambiguidade de cada palavra, ela se presta a esta função em que o sentido escoa. Ele não escoa nos seus dizeres [...] por isso a língua é isso. E está mesmo aí o sentido a ser dado a isto que cessa de se escrever. Esse seria o sentido mesmo das palavras que, nesse caso, se suspende. É de onde emerge todo o possível. Que, afinal de contas, alguma coisa que é dita, cessa de se escrever, é bem isso que mostra que, afinal, tudo é possível para as palavras, justamente nesta condição de que elas não tenham mais sentido" (LACAN, aula de 8 de janeiro de 1974, inédito).

Pois bem, verificamos, por essa via, a possibilidade que o sentido cesse de se escrever (possível modal) - e isso pela não necessidade de afirmação (de qualquer qualidade ou predicado). Que o sentido deixe de ressoar sempre o mesmo. Que o sentido escoe, que se decante. Nem isso nem não-isso - suspensão {(po)ética}.

Assim, podemos dizer que, se por um lado o forçamento de igualdades (dos valores referencias de nomes), de seu pertencimento, tem um aspecto contingencial (aleatório e dependente de condições específicas), por outro, o forçamento da negação abre espaço ao possível da suspensão do sentido. Novamente: não estaríamos falando sobre as duas proposições feitas por Lacan acerca do forcing?! Retomando - 1) aquilo que se opera entre S1 e S2, termos estes portadores de mesmo saber, nomes-vazios e 2) o que se opera fazendo ressoar outra coisa que o sentido?!

Donde concluiríamos que, se o conflito-forçamento pode fazer equivalência entre vazios-nomes, suportes da contradição (incluamos aqui a lógica paraconsistente)[5]; a não necessidade de afirmação (forçamento de negação) pode fazer ressoar outra coisa que o sentido - paracompletude.

Não parece trivial pensarmos que o forçamento (o aleatório, o contingente e o possível) abra o poético (o ressoar outra coisa), outrossim, faz-se fundamental a assertiva segundo a qual o não-todo precisa ser forçado. Ao convocarmos o vazio (indiscernível), o que surge para "sabermos fazer com" é da ordem da des-medida (termo proposto por Badiou).

Se a pertença do indiscernível expende um conjunto, pensemos que uma igualdade entre nomes com o mesmo valor de saber pode ser forçada. O que implica forçar veridicidades não absolutas e sustentar a contradição (paraconsistência). Também, forçar uma negação (que não se reverte em necessidade de afirmação), aponta para a suspensão de sentido consoante com o que a lógica paracompleta nos ensina: prescindir do princípio do terceiro excluído. Ruptura com o esquema binário V ou F.

O forcing nos mostra um caminho lógico-clínico-(po)ético fundamental, revela-se operador para uma orientação não-toda.

Não obstante a trilheira clínica aberta revelar-se crucial aos tratamentos, talvez possamos pensar em como operar com o forcing em relação à própria psicanálise e ao campo psicanalítico. Temos pensado sobre a importância dos ativismos, da crítica decolonial, dos estudos queer, dos feminismos e dos movimentos antirracistas e suas relações conflituosas com a psicanálise. Isso por conta do caráter heterocisnormativo, binário, patriarcal, por vezes elitista e não antirracista da última. Frequentemente verificamos psicanalistas fazendo ouvidos moucos a esses discursos e a essas causas. Por outras vezes, encontramo-nos com desautorizações, ridicularizações e desqualificações por parte de psicanalistas em relação àquelxs que sustentam tais lutas (ouvimos críticas a supostos "identitarismo", narcisismo, neoliberalismo etc que ali estariam em evidência - críticas que certamente visam "proteger" a psicanálise, mas, sobremaneira, esconder a identidade universal (branca) que, mais uma vez, não se coloca em questão). E ainda, e não menos graves, são aqueles discursos correntes que proferem em alto e bom som (para tornar ainda mais inaudíveis o que dizem tantos ativistas) que a psicanálise é feminista, trans, antirracista etc, que Lacan é pós-binário e sobremodo, que estava tudo nas linhas canônicas de Freud e Lacan.

De um modo ou de outro o que se verifica é o fechamento da psicanálise, em um retorno ao próprio centro e privilégios. Uma teoria fechada, que ora exclui os ativismos ora os "inclui" como já sendo propriedade da psicanálise (afinal, Lacan já adiantou tudo isso). De qualquer modo, o todo se mantém.

As construções narrativas sobre sexo/ gênero e sexualidade realizadas pela psicanálise, - e desde seu início - em grande medida harmonizam-se com o status quo. Mais do que isso, muito serviram para corroborar (e criar) discursos. Está certo que Freud escandalizou a conservadora Viena com seus ensaios sobre a sexualidade infantil e os conceitos de libido e pulsão. Outrossim, propôs uma bissexualidade inata para os sujeitos (o que igualmente poderia parecer uma proposta interessante). Entrementes, logo vestiu suas descobertas com o Édipo heterocis-falocêntrico, insistiu em colocar as mulheres(cis) como seres com um dano a priori (a tal ausência de pênis), a homossexualidade como uma parada no desenvolvimento libidinal "normal" e acabou por dirigir o universal da bissexualidade inata para "resoluções" necessariamente heterossexuais. Lacan, que se propôs a ler Freud sem a herança biológica e anatomista deixada pelo último, não escapou do falocentrismo, das sustentações do Pai, de dizeres bastante complicados sobre as mulheres: inicialmente aquelas que não têm o falo - e por isso são o falo; posteriormente as não-todas fálicas, objetos causa de desejo dos sujeitos-homens, sinthomas para um homem (cada um tem sua cada uma), desprovidas da qualidade das coisas, com empuxo-a-loucura, contadas uma a uma, como Outras do sujeito-homem etc. Tampouco rompeu com o binarismo de gênero, pelo contrário, ajudou a sustentá-lo ao manter os seres sexuados dentro dos binômios Homem - Mulher; masculino- feminino. A heterossexualidade compulsória revela-se em continuidade em suas linhas, bem como a cisgeneridade - com suas graves implicações transfóbicas.

Dizemos que a psicanálise se sustenta no regime da diferença sexual (que alguns colocam como axiomática, real - uma diferença mais diferente que outras diferenças), o que necessariamente redunda em dominação e anatomia. Lacan não cessou de falar sobre pênis, vagina, óvulo e espermatozoide. Quando a diferença sexual precisa ser defendida em conformidade com o binômio Homem Mulher, a teoria sexual se encontra com a anatomia. No limite, o argumento cai sobre a anatomia dos órgãos sexuais ou dos caracteres sexuais secundários. A multiplicidade das corpas e dos corpos, a variedade de gênero e as singularidades das sexuações parecem ficar assim obliteradas.

Como romper esses sentidos coesos que a psicanálise também criou (ecoou) e ainda ajuda a sustentar?

Vejamos a proposta de ruptura de Preciado:

"Para falar de sexo, de gênero e de sexualidade é preciso começar com um ato de ruptura epistemológica, uma condenação categórica, uma quebra da coluna conceitual que permita uma primeira emancipação cognitiva: é preciso abandonar totalmente a linguagem da diferença sexual e da identidade sexual (inclusive a linguagem da identidade estratégica como quer Spivak)" (Preciado, P. B., 2020. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, p.141)

Preciado nos propõe uma nova epistemologia, na qual sejamos capazes de reconhecer como políticos quaisquer corpas humanas, sem fazer da designação sexual (ou da diferença racial) sua condição de reconhecimento. A partir disso, ele convoca as/os/es psicanalistxs:

"O desafio é muito maior. Toca a vocês para ou bem situar-se do lado dos discursos patriarco-coloniais e reafirmar a universalidade da diferença sexual e da reprodução heterossexual ou bem entrar conosco, os monstros e os mutantes deste mundo, em um processo de crítica e de invenção de uma nova epistemologia que permita redistribuir a soberania e reconhecer outras formas de subjetividade de gênero e sexual como politicamente soberanas

[...] Já não podem recorrer aos textos de Freud e de Lacan como se neles não houvesse um valor universal, como se esses textos não tivessem sido escritos dentro da epistemologia patriarcal da diferença sexual" [tradução livre] (Preciado, P. B., Eu sou o monstro que vos fala. Barcelona: Ed. Anagrama, 2020, pp. 100-101)

Enfim, conseguiremos realizar uma ruptura radical em relação aos discursos patriarco-coloniais tão presentes na psicanálise? Como podemos romper com a epistemologia da diferença sexual? Como tornar essas lutas que a psicanálise insiste em deixar à margem, presentes e atuantes no campo psicanalítico? Como proceder tais aberturas? Como revirar, mexer, mudar, expandir, furar, trans-formar, trans-bordar o que a psicanálise, enquanto sistema e engrenagem fechadas, teima em manter sólida? Como romper espaços coesos? Como fazer ressoar outra coisa que os sentidos hegemônicos?

Décio Pignatari escreveu (sob o lema - Guerrilha Artística - durante a Ditadura Militar instaurada no Brasil) uma fundamental proposição sobre o que designou por guerrilha artística/ poética: A surpresa contra a redundância.

[...] a guerrilha, que exige, por sua dinâmica, uma estrutura aberta de informação [...] onde tudo parece reger-se por coordenação e nada por subordinação [...] a guerrilha é uma estrutura móvel operando dentro de uma estrutura rígida, hierarquizada. Nas guerrilhas, a guerra se inventa a cada passo [...] É a informação (surpresa) contra a redundância. (PIGNATARI, 1967, p. 158)

Retomando o conceito de forcing, podemos pensar na importância de forçarmos a pertença do indiscernível, do inaudível, do ilegível, do que expande conjuntos rompendo sentidos coesos, do que permite a pertença do não-todo e, igualmente, podemos pensar sobre o forçamento da negação: a pertença de uma negação sem a sequente necessidade de afirmação. Há uma aposta (po)ética e política, aqui. Podemos pensar na guerrilha artística, no que caminha contra a redundância, no que insiste na surpresa, no que pode vir-a-ser contingência (como abrir condições de possibilidade para isso?). Podemos pensar em rupturas radicais que não venham com novas sínteses (afirmativas). Dizer: isso não! para o binarismo, o sexismo, a heterocisnormatividade, os discurso patriarco-coloniais, a homofobia, a transfobia, o racismo (mesmo que seja por omissão), o elitismo etc - da psicanálise... quiçá tais forçamentos (ao modo guerrilha artística?) possam real(izar) as mui-urgentes insurgências que tanto precisamos...

Referências Bibliográficas

BADIOU, A. O Ser e o Evento. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

LACAN, J. (1973-74). O seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Inédito.

LACAN, J. O seminário, livro 24: L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre. (1976-77). Inédito.

PIGNATARI, D. Teoria da guerrilha artística. In: PIGNATARI, D. Contracomunicação. Ateliê Editorial, 1967.

PRECIADO, B. P. Um apartamento em Urano. Crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

PRECIADO, B. P. Yo soy el monstruo que os habla: informe para uma academia de psicoanalistas. Barcelona: Nuevos Cadernos Anagrama, 2020.


[1] Parte deste texto está publicada no livro Rede Clinica, ed. Escuta. Orgs. Gianesi, A P L; Almeida, B. H. M.; Vogelaar, R. B., 2016.

[2] Forçamento (forcing, em inglês) é a designação de uma técnica, relativa à teoria dos conjuntos, proposta pelo matemático estadunidense Paul Cohen, na década de 60.

[3] Lembremos da importância da distinção entre "pertencer" e "estar contido" para a teoria dos conjuntos. Distinção que livrou a teoria dos conjuntos do paradoxo de Russell. Igualmente, da axiomática dos conjuntos, que assevera que o conjunto vazio está contido em todos os conjuntos.

[4] Tem nos parecido fundamental pensarmos o não-todo pela lógica paracompleta, lógica que prescinde do princípio do terceiro excluído e permite o possível ou o indeterminado (e a suspensão de sentido) e não com o indecidível (termo que muito embora tenha sido empregado por Lacan, ainda correspondente à lógica clássica).

[5] A lógica paraconsistente, lógica não clássica, prescinde, justamente do princípio da contradição (ou da não contradição), qual seja, que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo.



XXVIII


Função ilegível: o não inscritível


Lacan inicia a escrita das fórmulas da sexuação no seminário 18, De um discurso que não fosse semblante. Encontramos, no princípio dessa construção, na aula de 17 de março de 1971, uma interessante proposição sobre a não inscrição da relação sexual.

Na construção da via lógica das fórmulas da sexuação, pautado na lógica aristotélica, Lacan partiu da articulação entre dois polos, a UA - Universal Afirmativa (todo... é...) e a PN - Particular Negativa (há ... que não). Colocar-se-ia, na partida, uma contradição: é possível afirmar 'para todo x' porque, necessariamente 'há ... que não'. Das proposições aristotélicas, Lacan passa ao uso dos quantificadores da lógica matemática (Ɐ, ⱻ). O Universal - Ɐx - para todo x, acrescentando-se: função de x. E os quantificadores particulares (ⱻx, ⌐ⱻx), aqueles que escrevem existências, ou seja, escrevem que existem x que funcionam (PA - particular afirmativa) na função de x colocada pela Universal Afirmativa (UA) e que há existência(s) que não se inscreve(m) (PN - particular negativa) na função de x.

A PA (particular afirmativa) designa, então, que há o inscritível.

A PN (particular negativa), neste momento escrita ⌐ⱻx.F, diz que o x não é inscritível ou, não existe x inscritível na função.

Um parêntese:

(Nesse momento, o "há... que não se escreve", não é exatamente o "há um que não" da negativa que ele propõe um pouco mais adiante, no mesmo seminário. Lacan realizou uma mudança na leitura que fez inicialmente da PN: ⌐ⱻx.F para ⱻx⌐Fx. A negação escrita em ⌐ⱻx.F, segundo ele, seria foraclusiva, ou seja, ele havia escrito a impossibilidade de escrever o x da função e essa impossibilidade marcaria um modo de negação não passível de se reverter em afirmação. Mais tarde, com ⱻx⌐Fx, ele propõe algo mais próximo de uma negativa simples: o que está negado fora antes afirmado: há (ou houve) um que não - o Pai - isso seria próprio à Verneinung. Não deixa de chamar a atenção que ele tenha escolhido um modo de negação simples, mais propício à neurose, em detrimento de um esquema foraclusivo, o que já apontaria para uma expulsão/ inclusão-negativa Real).

Ɐx.Fx (UA)     Ɐx. ⌐Fx (UN)

ⱻx.Fx (PA)       ⌐ⱻx.F (PN)

Na trilheira da escrita das fórmulas, Lacan não se atém à PA (como posto acima - o que designa o inscritível) nem à UN (Universal Negativa): "já que aí não se deve escrever F(x) em nenhum x que vocês falem" (Lacan, 1971, p.104), não designaria, portanto, valor algum. Não se poderia dizer, com a UN que "há do falasser, há dos sujeitos de linguagem".

Inicialmente, entre a UA e a PN, Lacan demonstra que o conjunto universal (sujeitos do inconsciente - para todo x, função de x) possivelmente se forma porque há uma impossibilidade de se escrever a relação sexual. ⌐ⱻx.F (PN) - não existe esse inscritível. Vejamos como o destino das fórmulas não sustentadas no Pai (da Horda) seria diferente:

Pois bem, é justamente em torno disso que se articula o que acontece com a relação sexual [...] A questão é o que não se pode escrever na função F(x), a partir do momento em que a função F(x) existe ela mesma para não se escrever [...] ela é, propriamente falando, o que se chama ilegível (Lacan, 1971/2009, p.104)

Não há relação sexual é o aforismo que escreve uma impossibilidade. Há algo do sexual, enquanto Real, que não cessa de não se escrever. Há algo que, enquanto escrita do impossível, é ilegível. Há o não inscritível. E isso pode fazer conjunto. Mais ainda, pode resultar, via compacidade, em conjuntos abertos. Porque a relação sexual não existe, há o conjunto dos sujeitos do inconsciente, do desejo.

Caso possamos partir do "não existe x inscritível na função" ou "há o não inscritível", "há o ilegível", podemos pensar na sexuação enquanto o que outrossim aponta um real. Desde o não inscritível/ ilegível (acrescentemos - inaudível), podemos pensar sobre o enigma Real do corpo falante, enigma do sexo fora do campo do sentido. A responsabilidade sexual dxs analistas evidenciar-se-ia, desta feita. Igualmente, por essa via torna-se possível incluirmos em nosso campo a ideia feminista segundo a qual gênero é algo que sempre fracassa, que não se completa, que está mais ligado a um devir do que a qualquer fixação (cf. Butler, J.).

Diante do "não existe" - da sexuação, o falasser (os corpos falantes) precisa se inventar, e isso, logicamente, com alguns outro. Nesta direção, parece bastante interessante outra afirmação lacaniana, que encontramos no seminário 21, que coloca o autorizar-se de si mesmo (com alguns outros) para as sexualidades: "O ser sexuado não se autoriza senão por ele mesmo [...] Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros" (Lacan, Aula de 9 de abril de 1974)[1]

Como seria reler as fórmulas retomando essa primeira escrita da PN? Retirando de seu ponto de partida a escolha de Lacan - a exceção - Pai da Horda - reconhecida pelo próprio como neurose de Freud[2]? Ao invés do Há um que não - não castrado - o Pai da Horda freudiano -, escreveríamos "x não é inscritível na função"?

Também, ao invés de ler as fórmulas como inscrição e fixação de modos de gozo (Todo e Não-Todo), a leríamos como uma possível orientação ao não-todo? Desde o não inscritível, caberia à analista forçar (forcing) a abertura não-toda? Como seria pensar o forcing, que resulta na pertença do indiscernível, do não inscritível, do inaudível - em uma expansão conjuntista (que então abarca o não-absoluto)? Ou a passagem (através de operações relativas à compacidade) de um conjunto fechado para um conjunto finito de conjuntos abertos?

Manteríamos a contradição paraconsistente (que derroga o princípio da lógica clássica da não-contradição)[3] - que Lacan escreveu do lado Todo - entre o possível universal (a Universal Afirmativa - UA): todo x, função de x e o necessário que desenha a borda - o limite do conjunto (a Particular Negativa - PN): não existe x inscritível na função. Mas proporíamos uma nova escrita para o não-todo, qual seja, entre o impossível do: não existe x, função de x e a contingência do: não-todo x, função de x, poderíamos escrever a suspensão paracompleta no lugar do indecidível (o que nos permite derrogar o princípio do terceiro excluído)[4].

Lembremos da escrita das fórmulas da sexuação com os termos da lógica modal (possível, necessário, impossível e contingente) e de lógicas não clássicas:


O não-inscritível da PN fundaria um universal claudicante (furado, contraditório, logo de partida), o conjunto do que designamos por falasser, esses sujeitos atravessados pela linguagem e pelos acontecimentos de corpo (de corpa): do mistério des corpes falantes, pulsantes. Diante do não inscritível, cada sujeito-corpx-sexuadx precisa radical e continuamente se inventar.

O não-todo, como orientador (po)ético e político, campo a ser forçado por seu caráter suspensivo e incompleto, escreveria a impossibilidade já posta na PN, mais uma vez: a não inscrição que borda o limite do conjunto dos sujeitos-falantes-sexuados, marcando então o não-absoluto, o não universal - o acontecimento, o evento - a contingência, o devir. E nesse ponto a contingência - do que cessa de não se escrever, reencontra o possível - o que cessa de se escrever (cessa de se escrever como sentido, acrescentemos, sentido hegemônico):

Uma proposição é o apagamento do sentido das palavras [...] Se ela (língua) é feita disso, do sentido, resta saber como: pela ambiguidade de cada palavra, ela se presta a esta função em que o sentido escoa. Ele não escoa nos seus dizeres [...] por isso a língua é isso. E está mesmo aí o sentido a ser dado a isto que cessa de se escrever. Esse seria o sentido mesmo das palavras que, nesse caso, se suspende. É de onde emerge todo o possível. Que, afinal de contas, alguma coisa que é dita, cessa de se escrever, é bem isso que mostra que, afinal, tudo é possível para as palavras, justamente nesta condição de que elas não tenham mais sentido" (LACAN, aula de 8 de janeiro de 1974, inédito).


Verifiquemos a escrita das fórmulas como ficou conhecida:

Fórmulas da sexuação.

                                             HOMEM                                                                        MULHER


Parece que conseguimos algum consenso sobre a importância de retirarmos das fórmulas os significantes Homem e Mulher, isso por conta do binarismo que sustentam e da heterocisnormatividade que engendram. Outrossim, retirar esses termos implica uma posição política contrária ao status quo: que perpetua o universal homem-fálico (cis-branco-hétero-burguês) no lugar de sujeito e a figura do Pai inquestionável (sustentação patriarcal), - bem como o lugar de objeto-corporal das mulheres não-todas inscritas na ordem fálica (e daquelxs Outrificadxs por uma longa história de dominação) - que, por aí, padeceriam de um "dano" a priori ou estariam "desprovidas" das qualidades das coisas, como a qualidade das palavras (as não-todas são aquelas que não sabem o que dizem). Encontraríamos lugares menos caricatos a esses significantes, que podem continuar existindo - para aqueles que assim quiserem designar-se, mas que deixam de ser os únicos, deixam de ser os marcadores da diferença sexual e, fundamentalmente, deixam de estar hierarquizados. Se há alguma possibilidade de nos referirmos ao significante "mulheres", enquanto termo estratégico, a mesma está em o retirarmos do que "Lacan dizia das mulheres".

Que o não-todo seja um possível para os sujeitos de linguagem e de corpo sexuado, isso muda bastante o rumo das coisas... o não-todo não referido à ordem fálica "de alguns" deixa de ser lugar subalterno e ganha força política - fura a hegemonia supremacista - vira voz.

Forçado, o não-todo pode vir-a-ser a escrita do não inscritível, a escrita do ilegível, a escrita do inaudível. Mais ainda, essa escrita, como a escrita de uma negação, não redunda em necessidade de afirmação. A abertura que isso implica aponta para a suspensão e para o que pode, a um só tempo, nem não ser nem ser.

(a ordem fálica tornar-se-ia uma possibilidade de sexuação e não mais a referência, a norma, o universal ... o que cada um faz com ⌐ⱻx.F é múltiplo, singular e, certamente, do campo da invenção).

O não-todo, ao invés de estar vertido para o falo (como não-todo-fálico) pode ser o fim da disputa do/ pelo Absoluto, pode ser a própria pertença do não-inscritível (pensando o não-inscritível como esse pedaço de real indiscernível que apesar de estar contido nos conjuntos, não pertence aos mesmos). Forçar a pertença do não inscritível, do ilegível, do inaudível, pode, contingencialmente, fazer-se voz - arte - política e pode, pelo possível, romper os sentidos hegemônicos.

Como (re)pensar, então, a parte de baixo das fórmulas? Podemos, enfim, desta prescindir?

Que os sujeitos formam fantasia desde o Real e como resposta ao trauma, isso recolhemos da clínica. Não obstante saibamos o embaraço que esta (fantasia) lhes causa (aos sujeitos) e igualmente que algo do Real segue não se escrevendo (Real enquanto o que não cessa de não se escrever), podemos considerar que a fantasia escrita com o sujeito do lado Todo e o objeto do lado não-Todo mantém os ditames do poder (lembremos de Beauvoir). Outrossim, o mesmo acontece com as escritas do Falo do lado Homem e tanto o gozo Outro quanto a mulher barrada do lado não-Todo. Toda essa fenomenologia (das repetições cotidianas de dominação) pode deixar de ser escrita por nós psicanalista, não?


[1] Retiro do corpo do texto, propositalmente, a seguinte parte da citação, aqui sublinhada: "O ser sexuado não se autoriza senão por ele mesmo. É nesse sentido que, que há escolha, quero dizer que aquilo a que a gente se limita, enfim, para classifica-los masculino ou feminino, no estado civil, enfim, isso, isso não impede que haja escolha. Isto, certamente todo mundo sabe. Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros. (Lacan, Aula de 9 de abril de 1974). Isso porque Lacan, no momento mesmo em que discorre sobre o autorizar-se, utiliza a noção matemática de limite para reassegurar o clássico binarismo.

[2] "É preciso o assassinato do Pai ter constituído - para quem? Para Freud? para seus leitores? [...] É curioso que tenha sido preciso eu esperar este momento para poder formular uma assertiva assim, qual seja, que Totem e Tabu é um produto neurótico, o que é absolutamente incontestável, sem que por isso eu questione, em absoluto, a verdade da construção" (LACAN, 2009, p. 150).

[3] A lógica paraconsistente, lógica não clássica, prescinde, justamente, do princípio da contradição (ou da não contradição), qual seja, que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo.

[4] Tem nos parecido fundamental pensar o não-todo pela lógica paracompleta, lógica que prescinde do princípio do terceiro excluído e permite o possível ou o indeterminado (e a suspensão de sentido) e não com o indecidível (termo que muito embora tenha sido empregado por Lacan, ainda correspondente à lógica clássica).



XXVII


Interseccionalidade, feminismo e antirracismo


"É inegável que o feminismo, como teoria e prática, desempenhou um papel fundamental em nossas lutas e conquistas, na medida em que, ao apresentar novas questões, não apenas estimulou a formação de grupos e redes mas também desenvolveu a busca por uma nova maneira de ser mulher. Ao centralizar suas análises em torno do conceito de capitalismo patriarcal (ou patriarcado capitalista), ele revelou as bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres, o que constituiu uma contribuição de importância crucial para a direção de nossas lutas como movimento. Ao demonstrar por exemplo, o caráter político do mundo privado, desencadeou um debate público no qual emergiu a tematização de questões completamente novas -sexualidade, violência, direitos reprodutivos etc -, revelando sua articulação com as relações tradicionais de dominação/submissão. Ao propor a discussão sobre sexualidade, o feminismo estimulou a conquista de espaço por homossexuais de ambos os sexos, discriminados por sua orientação sexual. O extremismo estabelecido pelo feminismo tornou irreversível a busca de um modelo alternativo de sociedade. Graças à sua produção teórica e à sua ação como movimento, o mundo não é mais o mesmo [...] Mas, apesar de suas contribuições fundamentais para discussão da discriminação com base na orientação sexual o mesmo não correu diante de outro tipo de discriminação, tão grave quanto a sofrida pela mulher: a de caráter racial [...] O que geralmente encontramos ao ler os textos e a prática feminista são referências formais que denota um tipo de esquecimento da questão racial [...] Como podemos explicar esse " esquecimento " por parte do feminismo? A resposta, em nossa opinião, está no que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes, dizemos, estão em uma visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista [...] Com todas essas características, estamos nos referindo ao sistema patriarcal racista" (Lélia Gonzales, Por um feminismo afro latino americano, Zahar , 2020, pp. 140 -141)

Gonzales, nos trechos destacados acima, ao mesmo tempo em que reconhece a importância histórica dos feminismos (sem os quais algumas lutas, reivindicações e avanços não teriam sido possíveis), aponta para um grave "esquecimento" através do qual o nó das outrificações e subalternizações se desfaz: o esquecimento da questão racial.

(A autora nos apresenta a diferença do feminismo norte-americano, que surgiu em decorrência das lutas antirracistas e do movimento negro e o que ocorreu de modo não interseccionalizado - que, por sua feita, acarretou o "esquecimento" da questão racial e, certamente, da questão de classe - o que ficou sob a alcunha de feminismo branco)

A questão do "esquecimento" que marca o "racismo por omissão" parece aqui fundamental. Como pensar esse "esquecimento" que subscreve a negação das considerações e lutas antirracistas no laço social?

Lacan considerou, em seu seminário 21, que seria possível acrescentar ao desconhecimento, a denegação (o recalque inconsciente). Desconhecer (esquecer?) pode vir em acréscimo à neurose? Ou a neurose em acréscimo ao desconhecimento/ esquecimento social?

Podemos pensar, por essa via, que há algo que se pode acrescentar ao campo simples da neurose (negação simples - própria ao recalque) ou que uma neurose pode trabalhar em acréscimo a algo que insiste em manter-se desconhecido.

Quais forças operariam em tal cisma? O que faz com que narrativas históricas e algumas corpas permaneçam "desconhecidas"? Permaneçam esquecidas, inaudíveis, invisíveis e, logicamente, matáveis?

O cistema (escrita proposta por ativistas trans como Marina Mathey, Letícia Nascimento e Helena Vieira) heteropatriarcal (termo proposto por Angela Davis), destaca Gonzales, é, em si, racista. Igualmente sublinhemos a insistência de Paul Preciado em nomear os sistemas patriarcais, no capitalismo, de sistemas patriarcais-coloniais.

Como um cis-tema, que joga na subalternidade algumas corpas e existências, retirando-lhe voz e até imagem (por mais paradoxal que isso possa parecer) subsiste? Por força bruta, por força discursiva, por pactos velados e explícitos, por engrenagens econômicas, materiais e estruturais (pensando no racismo estrutural - ref Silvio Almeida). Também, por recalque histórico (traumas) somado à (des)narrativas, esquecimentos, desconhecimentos e silenciamentos.

Em memórias da plantação, Grada Kilomba escreve sobre a máscara do silenciamento:

"[...] tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de 300 anos. Ela era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a língua e o maxilar e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanas/os escravizadas/os comessem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura. Nesse sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza política sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os Outras/os: quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar? (Grada Kilomba, Memórias da plantação, ed. Cobogó, 2019, p.33)

Ecoando a pergunta de Spivak, autora fundamental do feminismo e também do pensamento descolonial, qual seja: pode a(o) subalterna(o) falar?, Kilomba nos mostra como, fazendo valer a interseccionalidade, a questão racial é urgente. Se Beauvoir demonstrara que a mulher é o Outra(o) do homem, Kilomba escancara que a mulher negra carrega uma dupla alteridade, localizando-se como Outra(o) da(o) Outra(o):

"Mulheres negras, por não serem nem brancas nem homens, passam a ocupar uma posição muito difícil dentro de uma sociedade patriarcal de supremacia branca. Nós representamos um tipo de ausência dupla, uma Outridade dupla, pois somos a antítese tanto da branquitude quanto da masculinidade [...] Nesse esquema, a mulher negra só pode ser a/o "Outra/o" o e nunca o eu [...] As mulheres brancas têm um status oscilante, como eu e como a "Outra" dos homens brancos porque elas são brancas, mas não são homens. Os homens negros servem como oponentes para os homens brancos, bem como com competidores em potencial por mulheres brancas, porque são homens, mas não são brancos. As mulheres negras, no entanto, não são brancas nem homens e servem, assim, como a "Outra" da altereridade" (Grada Kilomba, Memórias da plantação, ed. Cobogó, 2019, pp. 190-191)

Qual a função dessas camadas de silenciamentos-forçados na manutenção do status quo? Calar, apagar, subordinar...

Como dar lugar a essas tantas vozes?

Ler o que não foi escrito e escovar a história a contrapelo (para usar duas expressões dos conceitos de história de Benjamim) permitiria-nos incluir o inaudível, o invisível, o ilegível e explodir as consistências hegemônicas?

Seriam as guerrilhas (poéticas) caminhos possíveis para a crítica assídua e para o que pede transmissão?

Os escombros, o escondido, o escanteado, os sussurros, o apagado, o não narrado, como lê-los? Como fazer do ocultado, memória?

Retomemos Gonzales:

"A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituir uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando a memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo para nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela para tudo nesse sentido. Só que isso tá aí... e fala" (Lélia Gonzales, Por um feminismo afro latino americano, Zahar, 2020, pp. 78-79)

As palavras de Lélia certamente inspiram os movimentos antirracistas e os feminismos negros, mas, também, podem inspirar os trans-feminismos (e seus aportes queer). Nesta direção, quiçá possamos arriscar o seguinte: que Lélia possa inspirar os feminismos que operam com a interseccionalidade[1] - aquelxs que têm por ativismo lutas contra esse esquecimento (ou desconhecimento) que se soma (que tem se somado) ao denegado.

E que isso fale, cada vez, mais!


[1] o apoio aos feminismos negro e trans está posto e declarado na aposta via interseccionalidade.



XXVI


Podemos ler as fórmulas da sexuação, propostas por Lacan, por pura lógica? Ou lógica pura?

E fingir que não foi dito, escrito ou transmitido quaisquer conteúdos para as mesmas?

Que não foi proposto, por exemplo, um mito para sustentar seu ponto de partida? Que a exceção necessária para o possível do conjunto-todo não foi vestida com o pai da horda?

Pois bem, lembremos que Lacan apoiou o universal masculino (o todo Homem) no mito freudiano de Totem e Tabu. Vestiu o Um (necessário) da exceção, aquela que funda e permite (por contradição lógica) o conjunto Todo (a Universal Afirmativa), com o pai da horda, qual seja: aquele que goza de todas as mulheres e interdita seus filhos que, em levante, abatem-no e devoram-no. Lei instaurada, ninguém tocará na mãe. Continua Lacan:

É preciso o assassinato do Pai ter constituído - para quem? Para Freud? para seus leitores? [...] É curioso que tenha sido preciso eu esperar este momento para poder formular uma assertiva assim, qual seja, que Totem e Tabu é um produto neurótico, o que é absolutamente incontestável, sem que por isso eu questione, em absoluto, a verdade da construção (Lacan, 1971/ 2009, p. 150).

A exceção e seu decorrente universal, justificam-se por um mito neurótico. A lógica (modal e de conjuntos) servem a uma semântica bastante pertinente a um modo de contar a história. Uma longa história marcada por falocentrismos e modos patriarcais.

E por que será que foi "preciso" seguir o tradicional binarismo de gênero e falar sobre homens e mulheres?

Leiamos alguns trechos do seminário 18, momento em que Lacan começa propriamente a escrita das fórmulas da sexuação:

- Identidade de gênero - homem e mulher:

Mas não tem importância [...] O importante é isto: a identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, "homem" e "mulher". É claro que a questão do que surge precocemente só se coloca a partir de que, na idade adulta, é próprio do destino dos seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres. Para compreender a ênfase depositada nessas coisas, nesse caso, é preciso nos darmos conta de que o que define o homem é sua relação com a mulher, e vice-versa. Nada nos permite abstrair essas definições do homem e da mulher da experiência falante completa, inclusive nas instituições em que elas se expressam, a saber, no casamento. (p. 30-31).

- Meninos e meninas são diferentes:

Aí, então, elas se dão conta disto, por exemplo: de que de modo algum precisamos esperar pela fase fálica para distinguir uma menina de um menino; já muito antes eles não são iguais, em absoluto. E aí nos deslumbramos. (p.30)

- Identificação sexual e heteronormatividade:

A identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas em levar em conta que existem mulheres, para o menino, e existem homens, para a menina. (p. 33)

Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem. E isso que constitui a relação com a outra parte. E à luz disso, que constitui uma relação fundamental, que cabe interrogar tudo o que, no comportamento infantil, pode ser interpretado como orientando-se para esse parecer-homem. Desse parecer-homem, um dos correlates essenciais é dar sinal à menina de que se o é. Em síntese, vemo-nos imediatamente colocados na dimensão do semblante (p. 31)

- Verdade sobre um homem, saber quem é sua esposa:

para ter a verdade de um homem, seria bom saber quem é sua mulher. Refiro-me a sua esposa, no caso, por que não? (p. 34)

Carta roubada - Rainha cônjuge do Rei (a linguagem não dá conta da relação sexual que inexiste entre os seres de linguagem - bipartidos entre homens e mulheres)

Portanto, no momento de dizer que a linguagem não dá conta da relação sexual, perguntemo-nos precisamente em que ela não dá conta. Ela não dá conta porque, com a inscrição que é capaz de comentar, não consegue fazer com que essa inscrição seja o que defino como inscrição efetiva do que seria a relação sexual, na medida em que ela relacionaria os dois polos, os dois termos que se intitulariam homem e mulher, sendo esse homem e essa mulher sexos respectivamente especificados pelo masculino e pelo feminino ... em quem, em que? Num ser que fala, ou, dito de outra maneira, um ser que, habitando a linguagem, extrai dela um uso que é o da fala [...] Não é insignificante destacar a carta/letra numa certa relação da mulher com o que se inscreve da lei escrita no contexto em que a coisa se situa, pelo fato de ela ser, na condição de Rainha, a imagem da mulher como cônjuge do Rei (p. 123).

- Além da relação direta que Lacan fez entre o sujeito transexual e a psicose:

Chama-se Sex and Gender [Sexo e género], de um certo Stoller. E muito interessante de ler, primeiro porque desemboca num assunto importante - o dos transexuais, com um certo número de casos muito bem observados, com seus correlatos familiares. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. No livro vocês certamente aprenderão muitas coisas sobre esse transexualismo, pois as observações que se encontram ali são absolutamente utilizáveis. [...] Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma desses casos (p. 30-31).

Em destaque apenas alguns trechos, repletos de significado e referências binária e cis.

Retomemos nossas perguntas:

Que Lacan sustentou não apenas o binarismo mais caricato como também colocou a mulher (que não existe toda) sempre referenciada ao falo-homem?

Daí resulta que uma mulher só tem um testemunho de sua inserção na lei, daquilo que supre a relação, através do desejo do homem. (Lacan, 1971/2009, p. 65)

E uma citação extraída do seminário 20:

"[...] e somente por fundar o estatuto d'a mulher no que ela não é toda. O que não nos permite falar de A mulher.

Não há mulher senão excluída pela natureza das coisas que é a natureza das palavras, e temos mesmo que dizer que se há algo de que elas mesmas se lamentam bastante por hora, é mesmo disto -- simplesmente, elas não sabem o que dizem, é toda a diferença que há entre elas e eu. Nem por isso deixa de acontecer que se ela está excluída pela natureza das coisas, é justamente pelo fato de que, por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar.

Vocês notarão que eu disse suplementar. Se estivesse dito complementar, aonde é que estariamos! Recairíamos no todo" (Lacan, 1972-73/1985, p. 99)

(Pontuemos aqui as já debatidas citações de Levinas, outrossim criticadas por Beauvoir, que parecem ter inspirado Lacan, logicamente, com a crítica excluída)

Não obstante a crítica contínua e necessária aos aspectos ideológicos e conservadores que os conteúdos enxertados por Lacan transmitem, reconheçamos que as lógicas utilizadas por ele, na própria construção de suas fórmulas, são mesmo bastante interessantes.

Podemos lê-las para fundamentar uma orientação não-toda (muito mais do que fixar sujeitos em modos de gozo).

A ideia de uma operação (matemática) sobre um conjunto fechado, permitindo, então, a abertura de conjuntos, em homologia com o que se passa na clínica, seria um ótimo exemplo de orientador da práxis. É possível fazer do todo (conjunto fechado) um conjunto finito de abertos. A compacidade e o forcing nos auxiliam a pensar essas operações.

Certamente, o não-todo enquanto proposta de escrita lógica pode ser lido como renúncia à "disputa do absoluto"(expressão cunhada por Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos no Plano Piloto para Poesia Concreta). O que nos traria, enfim, outros modos de dizer: políticos, poéticos, éticos, indignados, furados, contingentes...

As lógicas não clássicas (paraconsistente e paracompleta) que podemos localizar, respectivamente, no todo e no não-todo, trariam para as fórmulas a contradição (esse termo foi proposto por Lacan) - ou seja, a sustentação de algo ser e não ser ao mesmo tempo - e a suspensão (ou a inclusão do terceiro excluído como possível ou indeterminado) - que traduziríamos assim: algo pode, a um só tempo, nem não ser nem ser (Lacan não chegou a formular o não-todo pela lógica paracompleta. Muito provavelmente não teve acesso a tais formulações. Por isso, manteve, na escrita do não-todo, o indecidível de Godel - formulação ainda pertencente à lógica clássica. Muito embora não o tenha escrito desse modo, ele formulou a ideia de suspensão do sentido pela via do possível, da lógica modal).

Sim, entre o possível, o necessário, o contingente e o impossível (termos da lógica modal) podemos pensar os enodamentos, os tropeços, os furos, as suspensões e as escolhas(respostas) dos sujeitos singulares. As multiplicidades, portanto.

Também, com o axioma: não há relação sexual, Lacan, de fato procurou sustentar a não complementariedade entre os corpos. Parece mesmo um ponto fundamental para a sustentação do Real como furo.

E o que faz com que a relação sexual não possa se escrever, é justamente esse buraco aí que toda linguagem obstrui enquanto tal, o acesso do ser falante à alguma coisa que bem se apresenta, como um certo ponto tocando o real, neste ponto aí se justifica que o Real, eu o defina como impossível, porque aí, justamente ele não acontece jamais - nunca chega a que a relação sexual possa se escrever. (LACAN, 1973-74/inédito, aula de 20 de novembro de 1973).

Entrementes, isso de modo algum o apartou do binarismo. Uma coisa é sustentar o furo Real da não relação sexual. Outra é colocá-lo em referência a esses dois termos: Homem e Mulher. A partir do momento em que essa não relação se escreve entre homens e mulheres (ou mesmo entre os modos de inscrição de gozo todo e não-todo) e que designações e novelas são ditas e escritas para a caracterização dos termos, não se escapa do binário.

Retomemos alguns pontos anteriormente escritos:

Em seu seminário 21, Lacan discorreu sobre o conceito matemático de limite, usando-o para tratar do sexual enigmático no falasser. Afirmou que o sentido sexual é precisamente o sentido "non sens" e está diretamente articulado ao Real.

O sentido sexual, sentido "non sens", define-se, como o Real, por não se escrever:

"É uma coisa que tem uma relação estreita com a inscrição do discurso analítico, é que, se esta inscrição é mesmo o que eu digo dela, a saber, o início, o cerne de sua matemática, existem todas as chances para que isso sirva a mesma coisa que a matemática. Quero dizer que isso traz em si seu próprio limite" (Lacan, aula de 20 de novembro de 1973, seminário 21, inédito)

"Então, poder-se-ia, talvez, se elevar a uma estrutura, conforme a história do ciframento, se é no sentido desta alguma coisa que chega... a que? "dei Grenzen" , aos limites [...] se é verdade que este sentido sexual não se define senão por não poder se escrever, é ver justamente o que no ciframento, e não nos deciframento - o que no ciframento necessita "die Grenzen", a mesma palavra aqui empregada no título [referência ao texto freudiano "os limites da interpretabilidade"], a mesma palavra serve ao que na matemática se designa como "limite" de uma função, como limite de um número real" (Lacan, aula de 20 de novembro de 1973, seminário 21, inédito).

Importante pontuarmos que para Lacan um ciframento é um enigma. Ele então atrela o ciframento (enquanto limite ou cúmulo de sentido, non sens etc) à impossibilidade de se escrever a relação sexual.

Desta feita, podemos afirmar que a noção de limite auxilia Lacan na formalização daquilo que do Real nunca chega a se escrever.

Quando a variável de uma função tende ao infinito (suponhamos um infinito positivo +) desenha-se uma assíntota entre os eixos x e y. Note-se que não se chega a 0 ou a 1. O limite de uma função que tende ao infinito é zero.

E é aqui que ele retorna ao binarismo. O limite está articulado ao real da não relação, mas, ao mesmo tempo, Lacan coloca esse conceito para os termos que propôs para tratar de gênero:

"O ser sexuado não se autoriza senão por ele mesmo. É nesse sentido que, que há escolha, quero dizer que aquilo a que a gente se limita, enfim, para classifica-los masculino ou feminino, no estado civil, enfim, isso, isso não impede que haja escolha. Isto, certamente todo mundo sabe. Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros. (Lacan, Aula de 9 de abril de 1974)

Os usos de 'homem' e 'mulher', ou como no trecho acima, os usos de "masculino" e "feminino", como limite, como termos que se limitam (pensemos no 1 e no 0. 1 - homem/ masculino; 0 - mulher/ feminino), envolvem todo o embaraço e apontam para o problema do que Lacan fez com o axioma da não relação sexual. A saber, não há relação sexual, mas não se escapa de homem/masculino e mulher/feminino (como limites).

Podemos ler no mesmo trecho acima citado tanto a ideia de que esses limites cingem 'homem/ masculino' e 'mulher/ feminino' quanto o apontamento que o non sens do sexual no falasser, o real, portanto, a não relação sexual, o enigma - cifra - do sexo, que isso implica um autoriza-se de si mesmo (com alguns outros, com uma coletividade). O que parece fundamental para a própria ética da práxis.

Muito embora a ideia de escolha, ou de fixidez de modo de gozo, bem como o uso da noção de limite - posto ainda de maneira binária nos termos 'homem/ masculino' e 'mulher/ feminino', possam ser amplamente questionados, o apontamento do real do sexo (não vestido forçosamente de 'mulher') parece bastante importante para uma posterior menção do próprio Lacan, segundo a qual a responsabilidade do analista é uma responsabilidade sexual. Deste modo, o sexo, enquanto cifra/ non sens, seria enigmático.

Como poderíamos, a um só tempo, considerar o real, por uma responsabilidade sexual, incluir o "não há" dos encontros desencontrados entre os corpos sexuados e romper com o binarismo, com a heternormatividade e com a cisgeneridade?


XXV

Interseccionalidade e diferença sexual

Como conceber uma clínica psicanalítica que inclua e suporte a interseccionalidade[1]?

Entre raça, gênero, sexualidades e classe, encontramos o ponto mínimo de intersecção desses conjuntos heterogêneos, o que pode nos servir como orientador político.

Um(x) psicanalista não deveria excluir, em sua práxis, a crítica e a escuta ao campo "Outrificado", a leitura dos sistemas de dominação que insistem em colocar como alteridade (e corpo) alguns sujeitos-reificados (que lançados à condição de objeto, no laço social, a um só tempo perdem o que se designa por posição de sujeito e lutam por se fazerem voz).

Enquanto teoria e prática não disjuntas, uma psicanálise que não problematize as questões que a interseccionalidade aponta e as denúncias de opressão que a mesma traz consigo, corre o risco de acumpliciamento com o próprio sistema de dominação. Mais ainda, um corpo teórico que não seja capaz de se rever, que não permita furo e que não se deixe modificar por aquilo que lhe bate à porta, acaba repetindo e reproduzindo o pior.

Podemos encontrar ditames do sistema heteropatriarcal colonial (que em si é, outrossim, racista) em alguns dos sustentáculos da psicanalise lacaniana: Universal-Homem, pai da horda, Nome-do-Pai, mestre, falo-pênis, gozo fálico, libido "masculina" etc. A ausência quase absoluta de palavras sobre a questão racial/ colonial na obra de Lacan parece também dizer muito. Vimos, igualmente, uma teoria fazer malabarismos para estabelecer um lugar, ou melhor, um des-lugar para as mulheres, essa mulher que não existe (toda): objeto causa de desejo, alteridade corporal ligada ao desejo-Homem, falada por ele, uma heteridade investida (e vestida) de enigma, quase emudecida, desprovida da qualidade das coisas, não-toda louca, colocada como o Outro, como o Outro sexo.

Seria possível propor, inclusive, uma articulação entre a "mulher" das fórmulas da sexuação e o subalterno com gênero sobre o qual Spivak escreveu:

"[...] nomeemos, mesmo assim (como) "mulher" aquela mulher desautorizada a quem nós estrita, histórica e geopoliticamente não conseguimos imaginar como referente literal. Vamos dividir o nome mulher de modo que vejamos a nós mesmas como nomeando e não meramente como nomeadas [...] a esperança por trás da vontade política será que a possibilidade do nome seja finalmente apagada. Hoje, aqui, o que eu chamo "subalterno com gênero", especialmente no espaço descolonizado, tornou-se para mim o nome "mulher"" (Spivak, G. C. (1997). Feminismo e desconstrução, de novo: negociando com o masculinismo inconfesso. In: Brennan, T. (org) Para Além do falo: uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, p. 297).

Lemos em Spivak a ênfase posta nesse: especialmente no espaço descolonizado, o que aponta para um lugar de subalterno, no laço social, daqueles generificados que são também racializados e por aí, igualmente pertencentes a classes sociais menos favorecidas. O Outro, no discurso, é esse Outro corporal, reificável.

De fato, alguns feminismos podem auxiliar a psicanálise a revisitar suas epistemologias de base e rever os lugares que tem ofertado às questões de gênero (sim! a psicanálise tem responsabilidade quanto às questões de gênero), bem como sua recusa a tratar das questões raciais e de classe.

Colocar o Homem como Sujeito e como Todo e a Mulher como não-Toda e como objeto causa de desejo daquele não apenas mantém o binarismo de gênero (homem e mulher) como mantém o estado mais geral das coisas. Beauvoir escrevera, lendo CRITICAMENTE o machismo estrutural: "A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele [...] O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem" (Beauvoir, 1949/ 2016, O segundo sexo, p.12) e, para concluir: "O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro" (Ibid., p. 13).

O que Beauvoir e Spivak denunciam, a psicanálise lacaniana tende a transformar em dado trans-histórico. Homem e Mulher postos do modo como são postos, como dados/ fatos estruturais, não historicizáveis (portanto não modificáveis), repetem o binarismo (qual espaço para os não-binários?) e os esquemas de dominação. Para a psicanálise, a humanidade segue sendo masculina (cis e hétero e branca e burguesa).

O não-todo enquanto perspectiva política, enquanto aposta na contingência (e outrossim no possível) não deveria estar atrelado a qualquer designação de gênero, isso porque o apontamento de uma corporeidade que tenha sempre por referência o Falo (do lado Todo), mas que não esteja inteiramente ali localizada, redunda, inevitavelmente, no que vimos colocando como Outrificação (subalternização/ dominação/ reificação). O não-todo poderia configurar-se subversivo caso deixássemos cair o binarismo, caso não mais o vestíssemos com o significante mulher (ou com quaisquer sexualidades que apareçam no laço como seres 'com danos a priori", racializados e/ ou "matáveis). Enquanto orientação, enquanto ruptura com o Absoluto (com o Universal), sobremodo seria um instrumento de luta, luta contra o colonialismo heteropatriarcal (termo que trago de Angela Davis).

Pois bem, como romper com o binarismo da diferença sexual (e suas consequências misóginas)? O que implica, logicamente, em uma mudança teórico-clínica radical e, consubstancialmente, em abrir os ouvidos para as questões que a interseccionalidade aponta.

Como, a um só tempo, ouvir os sujeitos que nos chegam, levando em conta nossa longa história de dominação e, por isso mesmo, sabendo da Outrificação que os sujeitos generificados e racializados sofrem e realizar uma ruptura epistemológica?

Tanto Spivak quanto Butler apostam no uso do termo 'mulher', um uso estratégico, que a um só tempo denuncie um sistema de dominação-opressão, possa transcender seu uso comum, abarcando novas possibilidades e formas de corpos que contem (que importem) em sua materialidade (neste ponto Butler joga com o significante matter, que traz o importar, a matéria/ materialidade e o assunto em uma polifonia de sentidos) e que possa ser apagado (ou que deixe de operar como referência, que não seja reificante). Poderíamos dizer: que as designações de sexo/gênero não constituam uma identidade de si a si.

Sigamos:

"penso que muitos entendem que, para o feminismo proceder como prática crítica, ele deve basear-se na especificidade sexual do corpo da mulher. Ainda que o sexo esteja sempre reescrito como gênero, ainda se deve presumir esse sexo como ponto de partida irredutível para as várias construções sociais que deve sustentar. Tal suposição da irredutibilidade material do sexo parece ter legitimado e autorizado epistemologias e éticas feministas, assim como análises de gênero de diversos tipos. Em um esforço de substituir ou modificar os termos desse debate, gostaria de perguntar como e por que a materialidade se tornou um sinal, uma prova, de irredutibilidade... No lugar da materialidade, poderíamos questionar outras premissas fundacionistas que operam como "irredutibilidades" políticas. Em vez de ensaiar dificuldades teóricas que emergem da suposição da noção de sujeito como premissa fundacional o que emergem da tentativa de manter uma distinção estável entre sexo e gênero, gostaria de apresentar a seguinte questão: é necessário recorrer à matéria e à materialidade do sexo para estabelecer essa especificidade irredutível que, conforme dizem, deveria fundamentar a prática feminista? E aqui a questão não é haver ou não referência para a matéria, da mesma forma que a questão nunca foi se deveríamos ou não falar sobre mulheres. Essa fala ocorrerá, e, por razões feministas, ela deve ocorrer; a categoria das mulheres não se torna inútil com o exercício da desconstrução, são seus usos que deixam de ser reificados como "referentes" e que ganham uma chance de abrir-se, de fato, para outras formas de significação que ninguém poderia prever de antemão. Certamente, é preciso ser possível não só usar o termo, emprega-lo taticamente mesmo quando, por assim dizer, ele é utilizado e alocado, mas também sujeitar o termo a uma crítica que interroga as operações de exclusão e relações diferenciais de poder que constroem e delimitam as invocações feministas das "mulheres". Isto é, parafraseando a epígrafe de Spivak neste capítulo, a crítica de algo útil, a crítica de algo sem o qual não podemos fazer nada. Na verdade, diria que é uma crítica sem a qual o feminismo perde seu potencial democratizante por se recusar a envolver-se com - fazer um balanço de, e se permitir transformar por - as exclusões que o colocam em causa. (Butler, J. 2019. Corpos que importam: os limites discursivos do "sexo". São Paulo: n-1 edições, pp. 57-58)

Com destaque para o seguinte trecho de Butler: "a questão nunca foi se deveríamos ou não falar sobre mulheres. Essa fala ocorrerá, e, por razões feministas, ela deve ocorrer; a categoria das mulheres não se torna inútil com o exercício da desconstrução, são seus usos que deixam de ser reificados como "referentes" e que ganham uma chance de abrir-se, de fato, para outras formas de significação que ninguém poderia prever de antemão. Certamente, é preciso ser possível não só usar o termo, emprega-lo taticamente mesmo quando, por assim dizer, ele é utilizado e alocado, mas também sujeitar o termo a uma crítica que interroga as operações de exclusão e relações diferenciais de poder que constroem e delimitam as invocações feministas das "mulheres".

Quer dizer que é possível operar com o significante mulher, politicamente, visando o fim da opressão histórica contra as "mulheres" (em um conjunto amplo) ao mesmo tempo em que se percorre uma trilheira com visada crítica, uma verdadeira crítica assídua que se volta para os próprios significantes "mulher" e "feminismo" analisando seus possíveis sistemas de dominação/exclusão internos. Afinal, os sistemas de dominação/ subordinação podem estar pautados em fatores como raça, classe, idade, heteronormatividade, transfobia etc.

Como colocou precisamente bell hooks, em "O feminismo é para todo mundo": o feminismo é uma luta contra o sexismo, contra a exploração e contra um sistema de opressão. Em outro de seus muitos livros, Erguer a voz, escreveu;

"Ao chamar a atenção para o entrelaçamento de sistemas de opressão - sexo, raça e classe -, mulheres negras e muitos outros grupos de mulheres reconhecem a diversidade e a complexidade da experiência de ser mulher, de nossa relação com o poder e a dominação. A intenção não é dissuadir as pessoas não brancas de se tornarem engajadas no movimento feminista. A luta feminista para acabar com a dominação patriarcal deveria ser de primeira importância para mulheres e homens em todo mundo [...]" (bell hooks, 2019. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Editora Elefante. pp. 60-61)

Concluímos com ela que, enquanto praxis, é necessário que o feminismo seja antirracista.

Se o feminismo negro nos ensinou que a luta contra a dominação precisa ser uma luta contra os sistemas de dominação/ subordinação/ reificação externos e internos, podemos dizer que restam, à psicanálise, três passos em direção a uma emancipação epistemológica: levar em consideração a interseccionalidade, retirar o significante Mulher desse lugar tão condizente com o assujeitamento, dessa espécie de reificação nebulosa e romper com o binarismo que a fundamenta e que ajuda a sustentar - binarismo posto nos dois significantes sem suspensão que ainda insistem, apenas eles, na teoria e na clínica... homens e mulheres...

Sobre o binarismo:

"Se o sexo não limita o gênero, então talvez haja gêneros, maneiras de interpretar culturalmente o corpo sexuado, que não são de forma alguma limitados pela aparente dualidade do sexo. Consideremos ainda a consequência de que, se o gênero é algo que a pessoa se torna - mas nunca pode ser -, então o próprio gênero é uma espécie de devir ou atividade, e não deve ser concebido como substantivo, como coisa substantiva ou marcador cultural estático, mas antes como uma ação incessante e repetida de algum tipo

[...] Se o gênero não está amarrado ao sexo, causal ou expressivamente, então ele é um tipo de ação que pode potencialmente se proliferar além dos limites binários impostos pelo aspecto binário aparente do sexo" (BUTLER, 1990/2018, Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.195)

Ou:

"Seria a construção da categoria das mulheres como sujeito coerente e estável uma regulação e reificação inconsciente das relações de gênero? E não seria essa reificação precisamente o contrário dos objetivos feministas? Em que medida a categoria das mulheres só alcança estabilidade e coerência no contexto da matriz heterossexual? Se a noção estável de gênero dá mostras de não mais servir como premissa básica da política feminista, talvez um novo tipo de política feminista seja agora desejável para contestar as próprias reificações do gênero e da identidade - isto é, uma política feminista que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e normativo, senão como um objetivo político" (Ibid., p. 24).

Consideremos que a estabilidade da categoria mulheres, correlata a sua reificação só é possível no contexto da matriz heterossexual (e na referência ao Falo). Abrir-se para além da aparente dualidade dos sexos, para gêneros fluidos ou em construção ou contingentes (sem nos obrigarmos a nos fixar em quaisquer termos desses) pode trazer, à psicanálise, alguma chance de aposta e de mudança.

Sim! É preciso mexer nos fundamentos, nas bases, nos alicerces.

Além de rever seus dizeres sobre o que se designa por "homem" e "mulher" sobremaneira a visada da não identidade seria útil para que possamos revisitar a psicanálise:

"A desconstrução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada [...] Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas de supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruinas das antigas. As configurações culturais do sexo e do gênero poderiam então proliferar ou, melhor dizendo, sua proliferação atual poderia então tornar-se articulável nos discursos que criam a vida cultural inteligível, confundindo o próprio binarismo do sexo e denunciando sua não inaturalidade fundamental. Que outras estratégias locais para combater o 'inatural' podem levar à desnaturalização do gênero como tal?" (BUTLER, 1990/2018, Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.256)

E, ainda:

"[...] o que alicerça a pressuposição de que as identidades são idênticas a si mesmas, persistem ao longo do tempo, unificadas e internamente coerentes? Mais importante, como essas suposições impregnam o discurso sobre as "identidades de gênero" (Judith BUTLER, 1990/2018, p. 42).

Também:

"A identidade do sujeito feminista não deve ser o fundamento da política feminista, pois a formação do sujeito ocorre no interior de um campo de poder sistematicamente encoberto pela afirmação desse fundamento. Talvez, paradoxalmente, a ideia de "representação" só venha realmente a fazer sentido para o feminismo quando o sujeito "mulheres" não for presumido em parte alguma". Ibid., p.25)

Pensar sobre essa frase destacada de Butler, que aponta para a possibilidade do sujeito mulher não ser mais presumido, pode trazer Rubin para a conversa:

"Pessoalmente, acho que o movimento feminista deve sonhar com algo maior do que a eliminação da opressão das mulheres. Ele deve sonhar em eliminar as sexualidades compulsórias e os papéis sociais. O sonho que me parece mais cativante é o de uma sociedade andrógina e sem gênero (embora não sem sexo), na qual a anatomia sexual de uma pessoa seja irrelevante para o que ela é, para o que ela faz e para a definição de com quem ela faz amor" (Rubin, O tráfico de mulheres, 1975/ 2017, p.55)

Uma sociedade em que o sujeito mulher não seja presumível ou que a anatomia e os gêneros sejam irrelevantes e que não haja sexualidades compulsórias, pode ser uma sociedade em que esses Outros (os sujeitos até então Outrificados) deixem de sê-lo para o dominador. E que as diferenças possam habitar, importar e permitir o existir do não-absoluto.

Por fim, a proposta de Preciado:

"Para falar de sexo, de gênero e de sexualidade é preciso começar com um ato de ruptura epistemológica, uma condenação categórica, uma quebra da coluna conceitual que permita uma primeira emancipação cognitiva: é preciso abandonar totalmente a linguagem da diferença sexual e da identidade sexual (inclusive a linguagem da identidade estratégica como quer Spivak)" (Preciado, P. B., 2020. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, p.141)

O interessante é que essa ruptura epistemológica não significa negar a diferença, significa um rechaço ao binarismo, um rechaço à linguagem da diferença sexual (essa que alguns dizem ser Real - por sinal, curioso Real, que carrega esses nomes Homem - Mulher) e, ao mesmo tempo, uma aposta na diferença sexual radical. Que o real do sexo e seus enigmas (e seu não complemento) possam valer mais que os caracteres sexuais secundários. Talvez isso seja mais próximo do que Lacan designou, no seminário 23, como responsabilidade sexual do analista.

Referências Bibliográficas

Beauvoir, Simone de (1949). O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.

Butler, Judith (2008). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira

Butler, Judith (2019). Corpos que importam: os limites discursivos do "sexo". São Paulo: n -1 edições.

Davis. Angela (2018). A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boi Tempo.

hooks, bell (2019) O feminismo é para todo mundo. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos.

hooks, bell (2019) Erguer a voz. Pensar como feminista. Pensar como negra. São Paulo: Ed. Elefante.

LACAN, Jacques. O Seminário Livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975-76/2007.

Preciado, Paul B. (2020). Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar.

Rubin, Gayle (1975/ 2017). Políticas do sexo. Tráfico de mulheres. São Paulo: Ubu.

Spivak, Gayatri C. (1997). Feminismo e desconstrução, de novo: negociando com o masculino inconfesso. In: Brennan, Teresa: Para além do Falo. Uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos.


[1] Termo cunhado por Kimberlé Crenshaw


XXIV


Diz-se, em psicanálise: a humanidade tem horror ao feminino, às mulheres! O repúdio à feminilidade, pontuado por Freud.


Incluamos a psicanálise em tal repúdio (já que o próprio Freud deste não se desamarrou), mas estendamos seus horrores: parece mesmo que a psicanálise tem horror às mulheres, não obstante, sustente, igualmente, certo horror à "masculinização" (seja lá o que isso for!) das mulheres, à homossexualidade das mulheres (que o imaginário machista cisma em ler como algo direcionado aos homens), à bissexualidade das mulheres, à transexualidade das mulheres, às mulheres trans (e aos homens-trans, também, logicamente).

A redução e a reificação que os psicanalistas fizeram e fazem das mulheres, redução ao objeto de desejo (de um homem), e à devastação (por um homem), deixam as mulheres sem palavras e sem saída.

Excluídas do campo do desejo (a não ser por causar o desejo do homem), as mulheres "femininas", aquelas que "gostam de ser mulheres", outrossim são retiradas do campo do poder dizer.

Uma mulher precisa ser dita por "um parceiro à altura" que lhe dê existência. Sob esse argumento espúrio, os homens seguem dizendo como as mulheres devem ser/proceder/vestir-se/existir.

Caso uma mulher não apareça resignada com sua suposta (e imposta) "condição de objeto" ou não acate o forjado e glamourizado "valor de objeto", também os homens dirão: trata-se de uma mulher que não gosta de ser mulher. 

Quanto autoritarismo!!!

(que se incluam aqui outras predicações e adjetivos que possam acompanhar uma crítica contundente a um discurso totalitário).

Fiquemos aturditos: "O heterossexual é aquele que ama a mulher, independente do seu sexo" (com a condição de que ela - mulher - permaneça como objeto de desejo, enigmático - e se cale - ou fale com ares de fêmea, sempre em torno do falo-pênis - daqueles que sabem o que dizem).

Essa "alterização" radical que os homens (e a psicanálise como disciplina masculina) fazem das mulheres, além de um processo de exclusão do saber, re-coloca o princípio feminino como o que parte de um dano a priori.

Os psicanalistas anti-feministas (que ainda dizem que o machismo e o feminismo estão no mesmo lugar! Haja ignorância histórica), arrogam-se detentores do saber sobre o sexo. Não cessam de falar sobre gênero - em seus discursos medíocres sobre a heteronormatividade cotidiana e, por isso mesmo, como quem precisa se defender a todo custo para manter o discurso corrente, sobremaneira lançam mão da "estrutura" e afirmam que a psicanálise está além do gênero... seria cômico não fosse trágico.

Os malabaristas do mesmo insistem, esforçam-se e persistem na tarefa de manter as coisas como estão (como se fosse manter as coisas como são). Nada menos psicanalítico que isso.


XXIII


uni-verso musical


Pitágoras viu a Lira e pintou um universo musical.

Michio Kaku, com a teoria das cordas, que por sua vez retoma as antigas teorias do matemático grego, decanta o universo , deixando-o cingido pelo vibrar de cordas-elásticos.

sim. a hipótese é que o vibrar dos elementos físicos é o mesmo que o vibrar da corda de um instrumento musical.

escalas aumentadas de partículas, muito embora por ora não alcançáveis, nos fariam ver elásticos circulares a vibrar em diferentes frequências.

elementos distintos vibram distintamente. 

a matéria escura, invisível e ainda im-provável, aquela que re-liga as galáxias, pode ser uma oitava acima da vibração das cordas.

seguindo por essas trilheiras, maleáveis e vibrantes, podemos dizer que o uni-verso lírico faz dos buracos (furos) - que são essa matéria escura - a musicalidade poética do corpo. outrossim, que o universo, porque esburacado, é composto por vozes em tons distintos.

os versos que nos unem são cantados por essas cordas.

a poesia e a palavra cantada das musas ancestrais parecem não estar assim tão distantes da física...


XXII


"há homens que lá estão tanto quanto as mulheres"

Sobre continuar a chamar de Homem e Mulher os lados das fórmulas da sexuação propostas por Lacan e, ao mesmo tempo, defender que não se trata de um discurso cis/ binário, falocêntrico e heteronormativo ou ainda que não se trata de perpetuar uma história de longa duração - de dominação e de falas em forma de monopólio (ou monólogo), retomemos passagens cruciais do seminário 20 - Mais, ainda:

"[...] e somente por fundar o estatuto d'a mulher no que ela não é toda. O que não nos permite falar de A mulher.

Não há mulher senão excluída pela natureza das coisas que é a natureza das palavras, e temos mesmo que dizer que se há algo de que elas mesmas se lamentam bastante por hora, é mesmo disto -- simplesmente, elas não sabem o que dizem, é toda a diferença que há entre elas e eu. Nem por isso deixa de acontecer que se ela está excluida pela natureza das coisas, é justamente pelo fato de que, por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar.

Vocês notarão que eu disse suplementar. Se estivesse dito complementar, aonde é que estariamos! Recairíamos no todo" (Lacan, 1972-73/1985, p. 99)

O não-todo, ainda vestido de 'mulher" (mesmo passadas algumas ondas do feminismo que já não se deixam enganar pelo engodo dos significantes 'mulher' e/ ou 'mulheres'), apenas solidifica o binarismo e a dominação de gênero. Reifica e emudece, reduz ao corpo e transforma em puro enigma. E isso tudo com um contorno supostamente glamuroso. A começar pela enunciação: se elas não sabem o que dizem, eu, homem/cis, direi por elas.

"Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta -- isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a elas todas. Eu não queria vir a tratar da pretensa frigidez, mas é preciso fazer parte da moda no que concerne às relações entre homens e mulheres. É muito importante. É claro que tudo isso, no discurso, ai de nós!, de Freud como no amor cortês, está coberto por amiudadas considerações que exerceram seus arrasamentos. Considerações amiudadas sobre o gozo clitoridiano e sobre o gozo que chamam como podem, o outro justamente, esse que estou a ponto de fazer vocês abordarem pela via lógica, porque até nova ordem, não há outra.

O que dá alguma chance ao que avanço, isto é, que, desse gozo, a mulher nada sabe, é que há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos -- eu falava da última vez das psicanalistas mulheres -- que tentem nos dizer, pois bem, nem uma palavra! Nunca se pode tirar nada. Então a gente o chama como pode, esse gozo, vaginal, fala-se do polo posterior do bico do útero e outras babaquices, é o caso de dizer. Se simplesmente ela o experimentava, ela não sabia nada dele, o que permitiria lançar muitas dúvidas para o lado da famosa frigidez" (Lacan, 1972-73/ 1985, pp. 100-101)

Frigidez, gozo clitoridiano, gozo vaginal... mulheres e homens ... (isso não é cis?)

Mulheres que não sabem o que dizem, que não emitem uma palavra, que são desprovidas da qualidade das coisas... (e então os homens falam sobre elas como se soubessem dizer, por exemplo, o que é uma mulher que gosta de ser mulher)

(a mulher com "valor" de objeto, por ser objeto causa de desejo de um homem, a mulher enigma... enfim, quem pode defender que essa "alterização", tão condizente com o sistema de dominação, torna a mulher, ou as mulheres, algo que possa ser subversivo ou traduzido em luta?)

Dizer que os sujeitos ou o falasser possam se orientar ao não-todo, em uma oposição radical ao todo é completamente diferente de continuar forçando os dominados da história a se manterem nesse lugar Outro, lugar que apenas reedita a dominação. Vestir o não-todo com gênero, sexo, raça ou classe é um gesto profundamente conservador e retrógrado. Transformar história em estrutura impede qualquer tentativa de mudança. Uma política do não-todo, sob meu ponto de vista, não deveria ficar sob o significante mulher (acrescentemos que nem todos os supostos contingentes gostariam de ficar sob esse significante).

Outra gravidade, ainda, diz respeito a certa confusão que se mantém entre gozo e orgasmo.

Se não é do orgasmo que se trata no gozo (não obstante esses trechos abram espaço para os maiores enganos e engodos imaginários, bem como para erros teóricos como a bipartição do gozo feminino entre o falo ereto e a detumescência), Lacan postulou que o gozo da não-toda está bipartido entre o falo e o gozo Outro (também denominado gozo místico).

Pois bem, discorrendo sobre o gozo místico, sobre o gozo além do falo, Lacan não deixa de afirmar homem (aquele que tem o falo-pênis) e mulher:

"[...] A mística, não é de modo algum tudo aquilo que não é a política. É algo de sério, sobre o qual nos informam algumas pessoas, e mais frequentemente mulheres, ou bem gente dotada como São João da Cruz -- porque não se é forçado, quando se é macho, de se colocar do lado do AxFx. Pode-se também colocar-se do lado do não-todo. Há homens que lá estão tanto quanto as mulheres. Isto acontece. E que, ao mesmo tempo, se sentem lá muito bem. Apesar, não digo de seu Falo, apesar daquilo que os atrapalha quanto a isso, eles entreveem, eles experimentam a ideia de que deve haver um gozo que esteja mais além. É isto que chamamos os místicos" (Lacan, 1972-73/ 1985, pp. 102)

São João, muito embora seja macho, dotado de falo-pênis, localiza-se no lado não-todo, e isso por experimentar um gozo mais além, místico. Salta aos olhos que Lacan não tenha podido abrir mão do binarismo psicanalítico, mesmo quando supostamente diz que um homem pode ser ou estar no não-todo tanto quanto as mulheres.

No seminário seguinte, 21, ele afirmará que um ovo jamais será um espermatozoide.

Ele não apenas não pode atravessar o binarismo/ cis da psicanálise, como o sustentou. Sua transfobia talvez o tenha impedido. Quem continua insistindo na 'diferença sexual' binária e nos 'significantes' Homem e Mulher, tampouco se arrisca a colocar os pés em qualquer riachinho...


XXI

Sob a hipótese segundo a qual Lacan teria retratado o caricato e o status quo em suas fórmulas da sexuação - retirando dali qualquer possibilidade de tecitura crítica e transformando uma longa história de dominação em dado de "estrutura" - retomemos algumas elaborações de Beauvoir (e trechos já escritos neste site):

"Essa ideia foi expressa em sua forma mais explícita por E. Levinas em seu ensaio sobre Le Temps et l'Autre. Assim se exprime ele: "Não haveria uma situação em que a alteridade definiria um ser de maneira positiva, como essência? Qual é a alteridade que não entra pura e simplesmente na oposição das duas espécies do mesmo gênero? Penso que o contrário absolutamente contrário, cuja contrariedade não é em nada afetada pela relação que se pode estabelecer entre si e seu correlativo, a contrariedade que permite ao termo permanecer absolutamente outro, é o feminino. O sexo não é uma diferença específica qualquer... A diferença dos sexos não é tampouco uma contradição... Não é também a dualidade de dois termos complementares, porque esses dois termos complementares supõem um todo preexistente... A alteridade realiza-se no feminino. Termo do mesmo quilate, mas de sentido oposto à consciência" (Levinas, Apud. Beauvoir, 1949, p.13)

O trecho de Levinas, destacado por Simone de Beauvoir, em 1949, traz uma referência bastante intrigante sobre os sexos (sobre a diferença sexual como uma diferença que não seria uma diferença qualquer) e o lugar de alteridade - de Outro, dado pelos homens às mulheres.

No citado texto de Levinas, O tempo e o Outro, além da referência à alteridade e à diferença sexual, igualmente encontramos a asserção sobre a não complementariedade entre os sexos (o que redundaria em um todo), a orientação desse feminino a um sentido oposto à consciência e a aproximação entre feminino e Real, bem como entre feminino e mistério.

Beauvoir segue tecendo um alerta que, quem sabe, pudesse ter valido tanto para Levinas quanto para, mais tarde, Lacan:

"Suponho que Levinas não esquece que a mulher é igualmente consciência de si. Mas é impressionante que adote deliberadamente um ponto de vista de homem sem assinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto. Quando escreve que a mulher é mistério, subentende que é mistério para o homem. De modo que essa descrição que se apresenta com intenção objetiva é, na realidade, uma afirmação do privilégio masculino" (Beauvoir, 1949/ 2016, p.13).

Lembremos que Lacan outrossim colocou o mistério sob o signo da sexualidade feminina. O que quer uma mulher?, já havia perguntado Freud, abrindo o campo psicanalítico ao enigma da sexualidade, feminina.

"A psicologia é incapaz de solucionar o enigma da feminilidade" (Freud, 1933/1996, p.117).

Ou

"Determinada parte disso que nós, homens, chamamos de 'o enigma da mulher' [...]" (Ibid. p.130)

Quando o mistério é colocado como alteridade, mas essa alteridade é vestida pelo gênero, afirmado, mulher, o mistério se faz mistério para um homem (e consequentemente a sexualidade masculina, a ordem fálica, ao invés de apresentar-se pela ordem da falta e da contradição, aparece em sua máscara de consciência).

Beauvoir fez, também, outras preciosas ponderações. Diante da pergunta formulada: o que é uma mulher? coloca-nos: "Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade" (Ibid., p.11), "A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele [...] O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem" (Ibid., p.12) e, para concluir: "O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro" (Ibid., p. 13).

Ao concordar com Levinas, Lacan não teria feito exatamente o que Beauvoir denunciara? Afinal, o não-todo (a mulher) é o Outro, uma alteridade. A mulher (que não existe) é não pensável sem o homem (é não-toda fálica, ou seja, não sem o falo). O Sujeito, absoluto (Todo), é o homem. Basta lermos os termos como estão distribuídos na escrita das fórmulas da sexuação. A alteridade feminina é, em parte, despossuída de "consciência-de-si" ou, em termos lacanianos, excluída da natureza das palavras:

"Não há mulher senão excluída pela natureza das coisas que é a natureza das palavras, e temos que dizer que se há algo de que elas mesmas se lamentam por hora, é mesmo disto - simplesmente, elas não sabem o que dizem, é toda a diferença que há entre elas e eu [...] por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar [...] Vocês notarão que eu disse suplementar. Se eu tivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no todo" (LACAN, 1972-73/1985, p. 99)

Lembremos de Levinas: "Não é também a dualidade de dois termos complementares, porque esses dois termos complementares supõem um todo preexistente..."

Enfim, Lacan parece ter lido os textos de Beauvoir, de 1949, assim como o de Levinas. Parece ter concordado com o último e usado a descrição da primeira, muito embora com o caráter crítico retirado.



XX

a noção de limite, em matemática, e a sexuação

Em seu seminário 21, Lacan discorreu sobre o conceito matemático de limite, usando-o para tratar do sexual enigmático no falasser. Afirmou que o sentido sexual é precisamente o sentido "non sens" e está diretamente articulado ao Real.

O sentido sexual, sentido non sens, define-se, como o Real, por não se escrever:

"É uma coisa que tem uma relação estreita com a inscrição do discurso analítico, é que, se esta inscrição é mesmo o que eu digo dela, a saber, o início, o cerne de sua matemática, existem todas as chances para que isso sirva a mesma coisa que a matemática. Quero dizer que isso traz em si seu próprio limite" (Lacan, aula de 20 de novembro de 1973, seminário 21, inédito)

"Então, poder-se-ia, talvez, se elevar a uma estrutura, conforme a história do ciframento, se é no sentido desta alguma coisa que chega... a que? "dei Grenzen" , aos limites [...] se é verdade que este sentido sexual não se define senão por não poder se escrever, é ver justamente o que no ciframento, e não nos deciframento - o que no ciframento necessita "die Grenzen", a mesma palavra aqui empregada no título [referência ao texto freudiano "os limites da interpretabilidade"], a mesma palavra serve ao que na matemática se designa como "limite" de uma função, como limite de um número real" (Lacan, aula de 20 de novembro de 1973, seminário 21, inédito).

Importante pontuarmos que para Lacan um ciframento é um enigma. Ele então atrela o ciframento (enquanto limite ou cúmulo de sentido, non sens etc) à impossibilidade de se escrever a relação sexual.

Desta feita, podemos afirmar que a noção de limite auxilia Lacan na formalização daquilo que do Real nunca chega a se escrever.

Quando a variável de uma função tende ao infinito (suponhamos um infinito positivo +) desenha-se uma assíntota entre os eixos x e y. Note-se que não se chega a 0 ou a 1. O limite de uma função que tende ao infinito é zero.

Pontuemos, outrossim, que cifra, de ciframento, tem sentido etimológico igual a zero. Cifra = zero.

Esta cifra/ zero diz respeito àquilo que no infinito tende a zero sem nunca encontrá-lo. O que é próprio ao enigma Real do sexual no falasser.

Ao falar sobre a não relação/razão/proporção sexual, sobre o impossível, Lacan falava também sobre a contingência. Estabeleceu uma articulação entre o limite e o amor enquanto acontecimento, enquanto (a)mur. O amor assim escrito, estando relacionado ao objeto pequeno a e ao muro da linguagem, igualmente esbarra no não complemento entre os corpos sexuados, isso que limita.

Lacan faz uso da noção matemática de limite para além dos limites da interpretabilidade em psicanálise, para dizer do impossível de se escrever do Real, do sentido non sens do sexual, do impossível da relação sexual. E para dizer sobre isso que tangencia, mas não chega a alcançar o zero, sobremodo articulado ao não-todo.

"É uma questão que eu fundo, que o justifico assim: não há relação sexual. Em outros termos, que eu precise, que eu precise nisso que se possa escrever mediamente o que isso que se escreve, é que por exemplo, não existe a f de f de tal modo que, entre x e y aqui significa o fundamento de tais seres falantes, à escolha, tanto da parte macho quanto a fêmea, nisto esta função do homem em relação à mulher, esta função da mulher com relação ao homem, não existe o que se possa escrever" (Lacan, aula de 8 de janeiro de 1974)

[...]

Lembremos dos eixos x e y nos desenhos de uma função. Na função do homem em ralação à mulher e da mulher em relação ao homem, faz-se operar o limite (em matemática), faz-se operar a não relação sexual. Não há função da função.

"Tudo que sabemos é que "um" denota muito bem o gozo, e que "zero" quer dizer: "aí não há" isso que falta, e que, se zero e um faz dois, não é isso que torna menos hipotética a conjunção do gozo de um lado com o gozo de outro"

Lacan sustentava a partilha dos gozos deste modo: não seria do dois que se trataria, mas sim, do Um de um lado e do zero de outro. Um - lado dito 'homem'.  Zero - lado dito 'mulher'.

Ainda sobre a noção de limite, encontramos:

"O ser sexuado não se autoriza senão por ele mesmo. É nesse sentido que, que há escolha, quero dizer que aquilo a que a gente se limita, enfim, para classifica-los masculino ou feminino, no estado civil, enfim, isso, isso não impede que haja escolha. Isto, certamente todo mundo sabe. Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros. (Lacan, Aula de 9 de abril de 1974)

Os usos de 'homem' e 'mulher', ou masculino e feminino, como limite, como termos que se limitam (pensemos no 1 e no 0), envolvem todo o embaraço da não relação sexual. Podemos ler no trecho acima citado tanto a ideia de que esses limites cingem 'homem' e 'mulher' quanto o apontamento que o non sens do sexual no falasser, o real, portanto, a não relação sexual, o enigma - cifra - do sexo, que isso implica um autoriza-se de si mesmo (com alguns outros, com uma coletividade).

Muito embora a ideia de escolha, ou de fixidez de modo de gozo, bem como o uso da noção de limite posto ainda de maneira binária nos termos 'homem' e 'mulher', possam ser amplamente questionados, o apontamento do real do sexo (não vestido forçosamente de 'mulher') parece bastante importante para uma posterior menção do próprio Lacan, segundo a qual a responsabilidade do analista é uma responsabilidade sexual. Deste modo, o sexo, enquanto cifra/ non sens, seria enigmático.

Seria igualmente relevante destacar que a noção de limite aparece nas formulações de Lacan sobre a compacidade. Ali, em termos de teoria dos conjuntos e topologia, Lacan tratou de conjuntos fechados (conjuntos que contêm seus limites) e conjuntos abertos (que não contêm os seus limites). Sublinhando que os conjuntos abertos - que por uma operação conjuntista podem se fazer contar - estão atrelados ao "uma a uma" próprios ao não-todo, ao que ele designou por mulheres, portanto.

Lacan fez importantes articulações com diversos pontos da lógica, mas, em parte, aplicou-as a seu contumaz binarismo. Parecia-lhe difícil conceber o: nem de um lado, nem do outro... o que já derrubaria os dois lados e a ideia de uma inscrição definitiva de gozo.

Sigamos.

Há quem pense que Lacan resolveu o problema do binarismo e que não importa que ele use 'homem' e 'mulher' porque estes seriam significantes não cis (desencarnados). Entrementes, além de escolher e insistir nos dois "significantes" de nosso binarismo mais tradicional, ele manteve estes termos fundamentais de uma longa história de dominação. Outrossim, algumas referências (não tão poucas, assim...) do próprio Lacan que fazem coincidir homem- quem tem pênis e mulher- quem tem vagina, perturbam um tanto os argumentos de quem parece não poder discordar ou criticar o mestre. Mais, ainda, os lugares descritos por ele para o 'homem' e para as 'mulheres', repete de modo patente os mais caricatos lugares sociais reservados e mantidos para os 'gêneros' em questão.

Discorrendo sobre o enlace entre corpos e sobre a decorrente não relação / proporção sexual dada entre dois, ele afirma:

" que, se falamos, como eu o desse, eu o evoquei anteriormente, se falamos de nó, é fazer alusão ao abraço, ao enlaçamentos, ao estreitamento, mas outra coisa é a maneira pela qual faz irrupção na vida de cada um, esse gozo que seja, pertinente, se podemos dizer, a um desses corpos, mas ao outro não aparece senão sobre esta forma, se se pode dizer, de referência a um outro como tal, mesmo se alguma coisa no corpo pode lhe dar um frágil suporte, quero dizer, ao nível desse órgão que se chama o clitóris" [grifo meu] (Lacan, aula de 23 de maio de 1974)

E a quem tente dizer que Lacan abriu mão do falocentrismo, vejamos:

"Ao contrário dele [referência à Boole], eu proponho dar ao Um o valor disso em que, por meu discurso, consiste, na medida em que é ele que faz obstáculo a relação sexual, a saber, o gozo fálico.

É na medida em que o gozo fálico - e aí digamos que eu o faça órgão, e o suponha encarnado por aquilo que no homem, corresponde aí como órgão - é na medida em que esse gozo torna essa acentuação privilegiada tal como ele se impõe em tudo o que é de nossa experiência analítica; é em torno disso, e por que não é senão aí, em torno do próprio indivíduo, ele próprio sexuado, que o sustenta, é na medida em que esse gozo é privilegiado, que toda experiência analítica se organiza. E eu proponho isto: que caiba a ele relacionar a função do Um na formalização lógica tal que Boole a promoveu [grifos meus] (Lacan, aula de 23 de maio de 1974).

Clitóris (como um frágil suporte) e pênis (falo encarnado) dizem respeito a quê?

Sobre a suposta não diferença ou semelhança entre homens e mulheres, Lacan conclui: "não tem nada que pareça mais com um corpo masculino que um corpo feminino, se sabe olhar num certo nível, ao nível dos tecidos. Isso não impede que um ovo não seja um espermatozoide, que seja aí que vige a coisa do sexo" [grifo meu] (Lacan, aula de 19 de fevereiro de 1974).

Curiosamente, ao falar sobre os enganches do sentido sexual com a identificação, Lacan retorna a afirmações sobre o que faltaria às mulheres (e não ao falasser...):

"E daí que eu partir para lhes falar de identificação. Mas se há uma identificação, uma identificação sexuada e se de outra parte eu lhes digo que não há relação sexual, o que isto quer dizer? Isto quer dizer que não há identificação sexual senão de um lado [...] É que todas essas identificações estão do mesmo lado: isso quer dizer que não há senão uma mulher que é capaz de fazê-las. Por que não o homem? Por que vocês no notem que eu digo certamente "uma mulher" e depois eu digo: "o homem". Por que o homem, o homem, o homem tal que imagina "a mulher" quer dizer aquela que não existe, quer dizer uma imaginação de vazio, o homem, ele, ele é torcido por seu sexo. Ao passo que uma mulher pode fazer uma identificação sexuada. Ela tem mesmo isso a fazer, pois é preciso que ela passe pelo gozo fálico que é justamente o que lhe falta. (Lacan, Aula de 11 de junho de 1974)

Em relação aos seminários anteriores, Lacan procurou aqui responder ao que já se reivindicava por não binário, sobre o 'nem homem, nem mulher', o que envolveria uma suspensão. Sobremodo, parece ter se dedicado a cernir o Real do sexo e o limite/ cifra da não relação/ proporção entre os corpos sexuados. Quando afirmou o autorizar-se de si mesmo, relativo ao sexo, indicou, outrossim, o furo, o ponto não predicável da identidade (de si a si) que seus avanços topológicos possibilitaram escrever e formalizar. Não obstante, ao continuar tratando como limite (matemático) 'homem' - Um e 'mulher' - zero, ao insistir em órgão, clítoris, ovo, espermatozoide, falta feminina, ele fez da tentativa de um passo, um girar em círculos. Continuou fazendo girar o discurso-corrente do binarismo e da primazia da diferença sexual.

Pois bem, se é Real, por que chamar (ou continuar chamando) de homem e mulher?




XIX

O pan-óptico do con-domínio


Em suas teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin escreveu (tese II):

"[...] Será que não passa por nós o alento de um ar que esteve com os antepassados? Não haverá nas vozes que nos chegam aos ouvidos um eco dos que agora estão mudos? [...] Se é assim, existe um encontro secreto entre as gerações passadas e a nossa" [grifos meus] (Benjamim. W. 1940. In: Miller, A. & Seligmann-Silva, M. (orgs). Sobre o conceito de História, 2020, pp. 67-68)

De quem são as vozes silenciadas quando a história nos é contada pelos dominadores? Falta-nos ar quando nos parece que apenas alguns têm história. A quem fale sobre tudo. Há quem sobretudo fale tudo. Há quem circule sobre o todo, fazendo girar o grande círculo da história - dos vencedores. O ar dos antepassados, o eco dos que estão mudos. A voz que grita por ser ouvida, porque calada, porque mutilada por nossos presente e passado opressores, essa voz que Itamar Vieira Junior escreveu em Torto Arado, as vozes de Belonísia e Bibiana, são as vozes de nossos antepassados que em cor(o) justamente permitiriam articular uma "contranarrativa" e uma "luta por uma mudança histórica":

[...] Benjamim escreve sobre um 'heliotropismo de tipo secreto'. Esta insistência no descortinar do elemento 'secreto' vincula-se ao projeto benjaminiano de escovar a história a contrapelo [...], que, como na psicanálise, rompe o que estava recalcado, o censurado, aquilo que era escondido por falsas narrativas que não permitem a articulação de contranarrativas que, por sua vez, sustentam a resistência e a luta pela mudança histórica" (Benjamim. W. 1940. In: Miller, A. & Seligmann-Silva, M. (orgs). Sobre o conceito de História, 2020, p.33)

Como escovar a história a contrapelo de modo a descortinar o elemento secreto? Como permitir que os ares dos antepassados derrotados façam ventania e com isso possam modificar o passado-presente da dominação patriarco-colonial-racista?

Não parece que aqueles que se posicionam como os contadores da história oficial saiam de cena ou cedam lugar a outras vozes (a não ser que falem por elas sem deixá-las falar), por livre e espontânea vontade. Os supremacistas esforçam-se por permanecem no comando, agarrados a suas 'arma-duras'.

A panóplia é, entretanto, a um só tempo exibida e escondida pelo macho-cis-hétero-adulto-branco-(rico)-no-comando. Veste a armadura que a própria condição lhe oferece e desfila suas coleções de armas, com toda violência a elas acoplada. Profere impropérios, diz o que quer como se consequência não houvesse, ofende, agride etc. Do alto de seu pan-óptico particular, narra a história (desmentindo tratar-se apenas de uma versão) com domínio universal, arrogando-se um: eu - a verdade Falo - toda! Olhar soberano, que dita os fatos, as ocorrências e as interpretações. Sobrevoa a história como quem tem desta a posse total, com assinatura e firma reconhecida pela lógica patriarcal. A privatização da verdade, desde a voz do "pai-n-óptico", faz da variedade uma forma vedada e calada. Plaina sobre instituições, tem ares de administrador e, vociferante, trança o que o sistema capitalista racista e heteropatriarcal lhe concede como 'privilégio', com uma posição, um tanto caricata, de uma espécie de senhor feudal que teima em permanecer entre-muros.

Parece querer ignorar que carrega consigo, nos termos de Benjamin, as ferramentas da classe dominante:

"Articular o passado historicamente não significa conhece-lo 'como ele foi de fato'. Significa apoderar-se de uma recordação, tal qual ela relampeja no instante de um perigo. Para o materialismo histórico, trata-se de capturar uma imagem do passado tal como ela, no instante do perigo, configura-se inesperadamente ao sujeito histórico. O perigo ameaça tanto a sobrevivência da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos ele é um e o mesmo: entregar-se como ferramenta da classe dominante" (Ibid., pp.36-37)

Não é incomum, outrossim, que os donos das narrativas oficiais, estes que não leem a história por relampejos, que não deixam ecoar as vozes dos antepassados derrotados, que creem conhecer a história 'como foi de fato', que não concebem os restos (a não ser quando deles se outorgam proprietários), não é incomum encontrá-los lançando mão de estratégias de vitimização próprias: o quanto sofrem e/ou sofreram, o quão injustiçados e maltratados foram ou costumam ser, justo eles, pessoas de bem, conduzidos por uma ética impecável. O clã misógino-classista-racista-lgbtqia+fóbico, que preside nosso país, faz isso com mestria. Não obstante, é triste constatar que parte de uma esquerda-masculina e branca reproduza o mesmo, ... e ..., algumas vezes, com pós-doutoramento, livre-docências e mais...

O autoritarismo disfarçado em retórica de vitimização é profundamente desrespeitoso em relação às devastadoras questões sociais e políticas que assolam e assolaram populações minoritarizadas, a saber, aquelas que, por interseccionalidade, traduzem-se por classe-raça-gênero-etc. As pessoas que têm corpos (que não importam).

O macho-cis-hétero-adulto-branco-(rico)-no-comando não tem como ter a experiência corporal de quem é colocado como Outro, no discurso. Muito menos, de quem se localiza como Outro do Outro (a população negra periférica, majoritariamente dita 'mulher'). O discurso de vitimização do dominador é vexatório. Não se trata, lógico, de pleitear a (re)vitimização das vítimas, mas de luta. Trata-se de reconhecer o incabível para que seja possível tecer contranarrativas, para que a mudança possa se dar.

Abramos nossos ouvidos branquinhos-burgueses:

Fanon:

"O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas.

[...] Eu não aguentava mais, já sabia que existiam lendas, histórias, a história e, sobretudo, a historicidade que Jaspers havia me ensinado. Então, o esquema corporal, atacado em vários pontos, desmoronou, cedendo lugar a um esquema epidérmico racial [...] Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus ancestrais. Lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão, minhas características étnicas, - e então detonaram meu tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, com o fetichismo, as taras raciais [...]

[...] Meu corpo era devolvido desancado, desconjuntado, demolido, todo enlutado, naquele dia branco de inverno. O preto é um animal, o preto é..." (Frantz Fanon, 2008. Pele Negra. Máscaras Brancas, Edufba, p.104-105-106)

e

Gonzalez:

"[...] A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar de emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando a memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela pra tudo nesse sentido. Só que isso tá aí... e fala" (Lélia Gonzalez, 2020. Por um feminismo afro-latino-americano, ed. Zahar, pp. 78-79)

Tarefa difícil, esta, principalmente para quem se acostumou a planar sobre os mortais como um pan-óptiquer, com-domínio da consciência do discurso dominante: propiciar que a memória fale, poder escutá-la - escutar e dar lugar a isto que é um "não saber que conhece", sem fazer dos escombros, dos restos, da ancestralidade, propriedade privada, ou questão narcísica - sem fazer disso questão do umbigo do mundo.


XXVIII

A crítica da crítica à crítica


Butler criticou Freud e Lacan e foi criticada por pós-lacanianos que, por sua vez, veem em suas próprias críticas a derradeira pá de cal a ser lançada sobre as primeiras críticas da filósofa estadunidense.

Faríamos uma espécie de quadrilha poética não fosse a concordância petulante daqueles que afirmam o assunto encerrado. Desqualificação típica e repetitiva, arrogam-se entendedores verdadeiros de Lacan. Asseveram: Butler não entendeu Lacan. Não entendeu o Real do sexo. Não entendeu que a diferença sexual é uma diferença mais diferente que outras diferenças (como raça, classe etc). Estratégia incansável: desautorização por argumentos de autoridade que, não poucas vezes, giram em círculos - dito típico que ecoa aos quatro ventos: el(x) não entendeu!

Criticar Lacan parece subversão não aceita. Tampouco parece ter lugar a ideia da desconstrução dos aspectos conservadores e retrógrados da práxis. Salvar o pai e manter o caráter absoluto (todo) de um campo teórico talvez sejam tarefas realizadas por forças hercúleas. Sobremaneira, testemunhamos o esforço capital no sentido de manter os lugares de poder nos lugares de poder.

Quem acompanha Butler e sua leitura sobre a heteronormatividade compulsória e o caráter cisgenero da teoria psicanalítica, não costuma ser bem recebido. A quem com essas críticas concorda, geralmente são endereçadas as mesmas e maçantes frases. Exemplos: não entendeu que a diferença sexual, nomeada por Lacan com os termos Homem e Mulher, refere-se, apenas, a semblantes. Outrossim, não entendeu que Homem e Mulher são dois significantes e, como tais, são vazios de significado e não carregam o peso de uma história de dominação. Não entendeu que se trata de uma questão discursiva etc...

Parece um passe de mágica usarmos termos que nos remetem às mais caricatas designações de gênero, bem como a uma longa história contada por vencedores e dizer que são fruto de uma 'diferença real' ou de significantes esvaziados de significado.

Sobre a suposta primazia da diferença sexual (sustentada, inclusive, por algumas psicanalistas feministas):

"[...] o que conduziu a uma segunda afirmação que quero contestar: a de que a diferença sexual é mais primária ou mais fundamental que outros tipos de diferença, incluindo aí a diferença racial. Tal afirmação da prioridade da diferença sexual sobre a racial marcou enormemente o feminismo psicanalítico como branco, pois se supõe que não só a diferença sexual é mais fundamental, mas que existe uma relação chamada de "diferença sexual" que não está marcada pela raça. Está claro aqui que essa perspectiva não entende a branquitude como uma categoria racial; é simplesmente outro poder que não precisa dizer seu nome. Portanto, alegar que a diferença sexual é mais fundamental do que a diferença racial é de fato supor que a diferença sexual é a diferença sexual branca e que a branquitude não é uma forma de diferença racial.

Nos termos lacanianos, os ideais ou normas veiculados pela linguagem são os ideais ou normas que regem a diferença sexual e que são conhecidos pelo nome de simbólico. Mas o que é necessário repensar radicalmente é que relações sociais compõem esse domínio do simbólico, qual o conjunto convergente de formações históricas de gênero racializado, de raça generificada, da sexualização de ideias raciais ou da racialização das normas de gênero compõem tanto a regulação social da sexualidade quanto suas articulações políticas psíquicas" (Judith Butler, Corpos que importam, 2019, pp. 305-306)


A suposta neutralidade ou até a negatividade da identidade branca (cis, masculina e heterossexual) fora outrossim problematizada por Preciado:

"Por que estão vocês convencidos de que só os subalternos têm identidade? Por que vocês estão convencidos de que só os muçulmanos, só os migrantes, só as bichas amaneiradas, só os negros têm identidade? E vocês, os normais, os hegemônicos, os psicanalistas brancos da burguesia, os binários, os patriarco-colonialistas, não têm vocês identidade? Não há identidade mais estereotipada e rígida que a sua identidade invisível. Sua identidade ligeira e anônima é o privilégio da norma de gênero sexual e racial. Todos temos identidade. Ou, melhor dizendo, nenhum de nós tem identidade. Todos ocupamos um lugar distinto em uma rede complexa de relações de poder. Estar marcado com uma identidade significa simplesmente não ter o poder de nomear como universal sua própria posição identitária [tradução livre]" (Paul B. Preciado, Yo soy el monstruo que os habla, 2020, p.39).

Ou seja, a afirmação da primazia da diferença sexual e a negação da identidade do dominador parecem convergir harmonicamente. 

A interseccionalidade, entretanto, não prevê que classe, raça e gênero possam ser pensadas de modo estanque ou de forma que não estejam profundamente inter-relacionadas. 

A luta pela superação das normatividades de gênero, dentro inclusive do campo psicanalítico, traz consigo as lutas de classe e antirracista, inevitavelmente.

Quiçá seja possível "entender" a obra lacaniana e, consubstancialmente, criticá-la, transformá-la.

Como demover o ranço do falocentrismo, do Homem-cis-hetero e branco (no lugar de sujeito absoluto, supostamente - ou cinicamente - sem 'identidade') de nossa práxis? Como nos retiramos do binarismo que veicula a misoginia? Homem e Mulher não precisam mais ser os únicos significantes-semblantes-referências da "identidade de gênero" (sim! Lacan usou a expressão 'identidade de gênero!).

 Afinal, a não-totalidade das identidades e a não relação sexual, que tanto apontam para o enigma da sexualidade, - o real do sexo - quanto procuram cernir um impossível,  - a impossibilidade de se fazer complemento entre corpos - não precisam seguir a ideologia da diferença sexual binária.

 Ou só entendeu Lacan quem dele não discorda?



XXVII

A "questão feminina", já pontuara Beauvoir em Segundo Sexo, de 1949, traz uma importante noção referente às questões de gênero: só a mulher é corpo! O corpo feminino é, sobremaneira, ultra-erotizado. O sexo feminino (proibido ou explícito) está sempre em questão. A "beleza" feminina, sempre exigida. A mulher é corpo, é objeto. Os homens são sujeitos, absolutos (e sem corpo?).

Um presidente da República posta uma foto de seu bucho, um verdadeiro corpo-saco, repleto de excrementos - detalhe - não evacuadas. Bucho cheio, corpo sem furos. Repúdio presente e alastrado, esta seria uma foto a-não-ser-vista... a não-se-ver... Entrementes, o gesto do próprio pareceu ignorar o fato e orgulhar-se daquilo que veiculava.

[Fora uma mulher fazendo o mesmo, o que se ouviria e/ou se leria pelos meios, pelas letras , pelos ares? Provavelmente, vociferações, das piores].

Mas, um homem, machista e misógino, pode cinicamente mostrar sua suposta ausência de corpo, "gozar" desta ausência - o que parece mesmo preencher os sacos e ser condizente com as práticas dos dominadores.
Um homem não será (não?!) julgado por seu corpo ou por sua falta estética. Por isso, apresenta-se e faz questão de mostrar como, desde o lugar do dominador, pode prescindir de um corpo. Ele realmente se arroga de não precisar ter ou ser um corpo.

Paradoxalmente, ao mostrar com orgulho o bucho como se não houvera corpo, o valentão guarda e preserva o objeto (pulsional) ao qual o tal corpo negado ficara reduzido. O objeto anal, retido, talvez represente a redução ao corpo e seja o lugar de morada a que esses "alguns", "sem corpo", chegam. Não têm um corpo, mas viram um corpo nessa redução.


Ou seja: nega-se o corpo na mesma medida em que se mostra o objeto anal, da pulsão, ao qual o super-sujeito fica reduzido.


XXVI

Gilgámesh (1)

A Epopeia de Gilgámesh: ele que o abismo viu, de Sin-léqi-unnínni, traduzido do acádio e comentado por Jacyntho Lins Brandão, traz para a história algumas reviravoltas: é o texto literário mais antigo que conhecemos (até o momento). Uma adaptação de canções sumérias ainda mais antigas (tradição oral), foi um texto bastante popular à época, tendo sido traduzido em várias línguas e encontrado em diversos lugares na Mesopotâmia e regiões ainda mais distantes, como das atuais Turquia e Jerusalém. Supõe-se que tenha influenciado os textos gregos e o velho testamento.

Não obstante a riqueza poética que encontramos nessa obra magistral, algumas ponderações podem ser feitas acerca das implicações de gênero que a mesma guarda e que nos fazem refletir sobre a longa história da dominação patriarcal.

Neal Walls (2001), dentre outros, aplicou metodologias de estudos queer ao texto de Sin-léqi-unnínni.

Pretendo enfatizar alguns pontos levantados por Walls em acréscimo a algumas ponderações feitas por Brandão.

Gilgámesh é descrito como um rei que exerce domínio absoluto sobre seu povo. Como tal, arrogava-se o direito de "desfrutar sexualmente da primeira noite com a noiva" (Brandão in SIN-LÉQI-UNNÍNNI, 2019, p. 154). Ele fazia sexo com as noivas antes dos maridos daquelas. Brandão cita Cooper em Virginity in Ancient Mesopotamia (Cooper apud Brandão, in SIN-LÉQI-UNNÍNNI, 2019, p.104):

"a defloração de uma noiva virgem torna-se uma afirmação do autêntico domínio patriarcal, que faz com que a virgindade seja, antes de tudo, valorizada [...] a defloração por Gilgámesh de noivas recém-casadas [...] demonstra à população que a autoridade do rei, no ápice da estrutura de poder masculina e patriarcal, pode impor-se à autoridade patriarcal de qualquer outro homem, em termos de hierarquia [...]; o droit de seigneur de Gilgámesh tem pouco a ver com os prazeres de deflorar virgens e muito com assegurar que seus maridos saibam quem é o maior patriarca de todos" (Brandão in SIN-LÉQI-UNNÍNNI, 2019, p.154-155).

A estrutura patriarcal e o decorrente lugar guardado para as mulheres neste sistema ficam evidenciados ao longo da epopeia.

Enkídu, após ser criado do barro, viveu entre e como os animais das estepes. Sua entrada na 'civilização' e na 'cultura' humanas deu-se via Shámhat, uma prostituta que fora chamada para seduzir Enkídu e depois leva-lo à Úruk:

"Shámhat é uma personagem-chave no relato, como se verá a seguir, pois a ela compete humanizar Enkídu, tanto por meio do contato sexual quanto pelos ensinamentos relativos à vida civilizada [...]" (Idem, p.162)

O nome Shámhat deriva de samhatum, que significa prostituta e joga com os sentidos de samhu(m) "apontando para o viço e a voluptuosidade da mulher [...] 'a prostituta por excelência'" e também de "harãmu, separar, no sentido de que se trata de mulheres que viviam isoladas num recinto determinado do templo" (Idem, p. 162)

Shámhat surge, na epopéia, como objeto: "Enkídu esteve ereto e inseminou Shámhat [...] Enkídu, como sujeito, tem um papel ativo, Shámhat estando na função gramatical de objeto" (Idem, p.175)

Parece um consenso, dentre os comentadores, que a prostituição, na Mesopotâmia ancestral, era algo ligado ao divino, uma arte civilizatória, um dom dos deuses, uma forma sacramental. Não havendo, portanto, qualquer julgamento ou crítica de cunho moral envolvendo a profissão. As prostitutas, em Úruk eram devotas da deusa Ishtar, deusa do amor sexual, sobre quem falarei logo adiante. Viviam, entrementes, isoladas, "constituíam uma das classes de mulheres ligadas aos templos [...] provavelmente a mais baixa dentre todas, constituídas por 'filhas de escravas' que ficavam 'sob a supervisão de um funcionário de nível inferior'" (Idem, p.163). Neste sentido, Walls aponta que estudos queer se dirigem a essas mulheres como Outro do Outro (outras em relação às mulheres).

Desta feita, podemos pensar que muito embora não houvesse quaisquer condenações à prostituição enquanto profissão, ainda assim eram mulheres que permaneciam à margem da sociedade.

"De fato, os padrões sociais patriarcais da Mesopotâmia ancestral e a perspectiva androcêntrica de sua literatura, resultam num status ambíguo para a prostituição nas origens da escrita cuneiforme, incluindo o épico Gilgámesh [tradução livre]" (Walls, N., 2001, Disire, Discord and Death: approaches to ancient near Eastern myth. Boston: American school of Oriental Research, pp. 20-21).

A elite de escritores era masculina. Seus valores e pontos de vista transpareciam nos versos. Reproduziam e reeditavam o patriarcado e a visão masculina que já dominava a cultura.

A prostituição era colocada a serviço dos homens e não como um modo de exaltar a sexualidade feminina:

"Shamhat é inicialmente tratada mais como objeto do que como pessoa, um corpo sexual feminino manipulado pelos homens, a seus próprios propósitos. Nenhuma preocupação é expressa acerca de sua pessoa, de seu desejo e mesmo de sua segurança [...] Shamhat aqui incorpora a exploração masculina da sexualidade feminina na sua mais flagrante forma [tradução livre]" (Idem, p. 21).

O olhar masculino e seu desejo estiveram ali retratados. A resposta masculina pelo olhar dá-se logo no início. Shamhat haveria de mostrar sua vulva a Enkídu - o homem selvagem e ele, vendo o sexo feminino, não resistiria, não teria defesa em relação ao que avistava, o nu de Shámhat. O que se desenrola a partir do fascínio produzido pelo corpo feminino nu tem, de fato, longa história:

"O irresistível fascínio pelo nu do corpo feminino tem uma longa história na literatura Mesopotâmia [...] a sexualidade fálica de jovens e vigorosos deuses é retratada em agressivos estupros de várias deusas, frequentemente encontradas enquanto se banhavam [...] Como na sedução de Enkídu por Shamhat, a visão do nu feminino incita um desejo transbordante em cada um desses mitos [tradução livre]" (Idem, p. 22)

A ideia de posse pelo olhar e da virada para atos violentos em relação ao corpo feminino (dessa mulher reduzida ao corpo), por parte dos homens, já se desenhava nitidamente naquele momento. A mulher como um "objeto visual" que provoca e desperta o desejo do homem (esse sim, sujeito, como disse, muitos anos mais tarde, Simone de Beauvoir) que, por sua vez, não consegue controlar (e não deve controlar) seus 'instintos', são também flagrantes.

O ato de iniciação de Enkídu se deu com Shámhat mostrando seu sexo e abrindo suas pernas para a cópula. Nada do desejo daquela fora mencionado. Sua 'tarefa' surge como uma 'tarefa de mulher', refletindo sua total objetificação.

Shámhat outrossim é apresentada, na epopeia, com a função de intermediação entre natureza e cultura. Ela inicia Enkídu na 'civilização'. Logo após a longa cópula, que compõe o processo de entrada na cultura (Enkídu adentra a humanidade através do sexo), Shámhat "continua a representar um tradicional papel feminino, educando o homem selvagem. Em uma função materna, Shámhat ensina lições da infância, como comer e beber de modo apropriado e vestir-se [tradução livre]" (Idem, p.29)

Após os ensinamentos, Shámhat surge como sujeito desejante e o poeta muda os termos referentes à relação entre ambos, de modo a deixar aparecer uma subjetividade sexual feminina. Da cópula realizada exclusivamente por Enkídu, o termo usado passa a ser: e 'fizeram amor', indicando participação desejante dela. Ela ganha voz por um instante. Não obstante, o papel eloquente que desenvolve naquele curto espaço de tempo, assim que adentram a cidade de Úruk, ela em companhia de Enkídu, a Shámhat não mais será permitido falar. Tal silenciamento pode ser explicado pela perspectiva patriarcal que a define enquanto existência (Idem., p.32). Há uma evidente articulação entre a condição de objeto absoluto e a ausência de voz.

Mesmo que ponderemos que a prostituição fosse considerada profissão sagrada e que a entrada na cultura se desse prioritariamente por essa iniciação sexual, o lugar mudo e marginal das mulheres, o lugar daquelas para os homens, como objetos dos homens, destacam-se, sem dúvida.

Exceção ao conjunto das 'filhas de escravas', a Deusa do amor sexual, Ishtar, desempenha um interessante papel na trama.

"Ishar inverte a exploração patriarcal de Shamhat forçando Gilgamesh a um papel passivo como objeto erótico de seu agressivo desejo feminino, simbolizado por seu olhar desejoso [...] [tradução livre] (Idem, p.34).

Após triunfar em uma batalha ao lado de Enkídu, Gilgámesh banha-se aos olhos admirados da Deusa. Ela olha desejosa a beleza de Gilgámesh, seu corpo e seu cabelo destacam-se. Ela verbaliza sua paixão e propõe ao rei casamento.

"À beleza de Gilgámesh os olhos lançou a majestosa Ishtar:

Vem, Gilgámesh, meu marido sejas tu!"

(SIN-LÉQI-UNNÍNNI, 2019, p.82)

Walls (2001) sublinha que enquanto o episódio entre Shámhat e Enkídu constrói uma poética de desejo baseado na heterossexualidade compulsória e no foco androcêntrico próprios à cultura patriarcal, a voz de Ishar traz o contra-tema do desejo feminino, desafia as ênfases do patriarcado no falo e no útero, ainda que conserve uma perspectiva estritamente heterossexual (Idem, p. 36). Igualmente parece bastante importante que Walls faz notar a ausência completa de referências à sexualidade e ao amor lésbico na literatura da época. Na epopeia em questão fica evidente o amor e a sexualidade entre dois homens, mas, as mulheres, desejantes ou não, aparecem como estritamente heterossexuais.

"Ishtar introduz a questão da sexualidade feminina no épico, a libido ao invés do maternal [...] privilegia o clitoris e não o útero [...] demanda, para si, gratificação sexual [...] a deusa Ishtar opõem-se à objetificação das mulheres [...] como a lista de seus amantes descartados mostrará, sua erótica ativa a conduz a explorar a sexualidade masculina de acordo com seu próprio prazer [tradução livre]" (Idem, p.37)

Enquanto voz do desejo feminino, a personagem de Ishtar tem força e importância.

A resposta de Gilgámesh, entretanto, foi de recusa:

"Se eu contigo casar,

[...]

Qual esposo seu resistiu para sempre?

Qual valente teu aos céus subiu?

Vem, deixe-me contar seus amantes:

[...]

E queres amar-me e como eles mudar-me!"

(SIN-LÉQI-UNNÍNNI, 2019, pp. 83-84)

Em sua recusa, Gilgámesh lista os amantes de Ishtar e seus destinos trágicos. Entre animais e pessoas, Gilgámesh afirma que alguns apanharam, tiveram asas quebradas, outros viraram sapos, beberam água suja. Ele não quereria destino assim. Ishtar sente-se insultada e aos céus sobe a pedir ao pai por vingança.

Muito embora a narrativa tenha sido colocada assim, interpretações dessa passagem traduzem os insultos a Ishtar como decorrência da ameaça que ela representou à hegemonia masculina e sua ideologia competitiva de dominação e subjugação:

"Então, a objetificação de um homem resulta em perda de sua virilidade e masculinidade" (Walls, 2001, p.39).

Diante da ameaça de perda de poder viril, Gilgámesh teria proferido insultos contra Ishtar:

"a rejeição a Ishtar pode ter sido baseada na usurpação, por parte dela, do papel masculino [...] Ishtar simbolicamente [...] colocou-o em um papel feminino, e então Gilgámesh a reprovou por seus insultos a ele. A seu modo, Gilgámesh forçou a retomada de controle da situação [...] e manteve sua identidade masculina" (Idem, p.40)

Podemos pensar, também, que tanto Gilgámesh quanto Enkídu rejeitaram mulheres após seu encontro erótico-amoroso. Desta feita, a recusa de Ishtar corresponderia ao fato de que seu desejo e investimento libidinal estivessem voltados a Enkídu.

[Merece destaque o laço homoerótico que se coloca de partida e que tem sido objeto de importantes análises e foi longamente comentado por Walls. Gilgámesh amou Enkídu "como a uma esposa, por ele se excitou" (o que aponta para a relação sexual - e não apenas algum amor platônico - entre os heróis da epopeia). Gilgámesh e Enkídu foram companheiros e, após seu encontro, ambos recusaram as mulheres que deles se aproximaram (ainda que a imposição do papel feminino (esposa) a um dos cônjuges, em um casal gay, possa denunciar a homofobia e a heteronormatividade dessa maneira presentificadas)].

De todo modo, "Ishtar introduz um terceiro constructo que promove o prazer sexual feminino, simbolizado pelo clitoris (em Acádio, a vulva). Ishtar dá voz ao contra-tema do desejo feminino, opondo-se à ênfase patriarcal em ambos, útero e falo, no sentido de avançar a possibilidade da gratificação sexual feminina" (Idem, pp. 49-50).

Enfim, as duas personagens femininas, Shámhat e Ishtar, trazem consigo aberturas para discussões de gênero bastante interessantes. Ainda que o gesto e a escrita dos poetas, pautados pelo patriarcado e pelo falocentrismo que os habitava, fossem negacionistas em relação a quaisquer possibilidades não cis e/ou heteronormativas para as mulheres, a presença da mulher desejante, para além da reificação corporal e do muro do mutismo, da ausência de voz, é correlata ao apontamento do que pode estar além da política do absoluto, da dominação, da sujeição do Outro. O desejo (e a voz) daqueles que são historicamente colocados como Outros, como 'subalternos' sem fala, pode, subversivamente, furar a ordem vigente e abrir o conjunto fechado que o androcentrismo procura impor.

Referências Bibliográficas

SIN-LÉQI-UNNÍNNI. Epopeia de Gilgámesh: ele que o abismo viu. Tradução do Acádio, introdução e comentário Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2019.

WALLS, NEAL. (2001) Desire, Discord and Death: approaches to ancient near Eastern myth. Boston: American school of Oriental Research] 

(1) o texto completo, com referências mais detalhadas ao poema épico, encontra-se nos Arquivos deste site.

XXV


Em Signos em rotação, Octavio Paz escreveu "uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria, sociedade trans-humana em que todos seriam um ou cada um seria um todo auto-suficiente." (Paz, O., 1964/2019, Signos em rotação. Perspectiva, p. 96)

Em 1964, Paz desenhou um cenário composto por algo do "além do humano", cenário imaginado pela eliminação da poesia. Por uma aposta política, ele sustentou que a poesia faz laço, um laço ético e contingente, pela inclusão constelar da outridade. Afirmou: "a poesia não diz: eu sou tu; diz: meu eu és tu" (Ibid., p. 102).

A outridade, esse tu contingente, imprevisto, desloca o eu ou o ser para outra parte: "A percepção de que somos outros sem deixar de ser o que somos e que, sem deixar de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em outra parte. Somos outra parte." (Ibid., 107).

Uma sociedade pautada no engessamento da imagem e na super-valorização do eu (sem tu), que forma e multiplica células empresariais indivisíveis, não abre espaço para o plural e para a multiplicidade de sentidos que a poesia porta e veicula.

Uma sociedade sem poesia, sem metáfora, sem campo simbólico para mediar e questionar os padrões e as palavras-imagens-sacralizadas, que impõe o significado do código, o sim ou o não da burrice cotidiana, esta é uma sociedade de iguais e de rivais, sem chances para coletividades formadas por singulares-com-outridades.

Parece fazer parte da trans-humanidade atual o espetáculo do um, do idêntico. Criamos tecnologia para o idêntico. Criamos a imagética do idêntico, um amontoado de idênticos que se excluem mutuamente - e que excluem os não trans-humanos. Idênticos e apartados. Idênticos e auto-suficientes. Idênticos e parados. Idênticos e despalavriados.

Idólatras de si, idênticos sem necessidade de espelho, - já que o espelho supõe, ao menos, um pequeno outro (certamente também o Outro, mas, ao menos, o pequeno outro/ semelhante) - constroem e são construídos por mundo sem poesia, por um mundo sem encontros, em que todos dizem a mesma coisa (ou postam as mesmas fotos) ou nada dizem. Um mundo desenlaçado que dá lugar de destaque às ecolalias e deixa em uma espécie de deslugar a voz e o corpo poéticos.


XXIV

Gayle Rubin, em "Tráfico de mulheres" escreveu:

" podemos começar a desvendar os sistemas de relações pelas quais as mulheres se transformaram em presa dos homens no campo de sobreposição das obras de Claude Lévi-Strauss e Sigmund Freud. A domesticação da mulher, sob outros nomes, é amplamente discutidas nas obras de ambos. Lê-los possibilita ter uma ideia de um aparato social sistemático que toma essas mulheres matérias primas e as molda como mulheres domesticadas. Nem Freud nem Lévi-Strauss veem o próprio trabalho sobre este prisma e certamente nenhum deles olha de forma crítica o processo que descrevem" (RUBIN, 2017, p. 10)

Pois bem, Lévi-Strauss "eternizou" a condição da mulher como objeto de troca e a determinação da heterossexualidade como compulsória decorrência da interdição do incesto. Sabemos, outrossim, que a heterossexualidade é finalidade no Édipo freudiano (já que Rubin cita também Freud).Em Estruturas Elementares do Parentesco, Lévi-Strauss expôs sua monumental pesquisa. O universal do tabu do incesto, como lei de interdição de alguma (ou algumas) relações entre membros de uma mesma família (que diferem bastante dentre os diversos grupos sociais) e a troca de mulheres entre agrupamentos, segundo o etnólogo francês, asseguram a exogamia e marcam a passagem para a inscrição de cultura. A Lei e a cultura são, então, correlatas.

A descrição que fez das sociedades e sistemas patrilineares, bastante complexas, parece bastante precisa, mas não cristalizável. As sociedades matrilineares (e suas leis) ficaram de fora da análise de Lévi-Strauss. As contingências que se escreveram para certas organizações se darem, também.(Lembremos o modo como Lacan trata a lei materna: chamando-a de caprichosa)A transformação de uma história de dominação e objetificação, em estrutura, sem se ver ali realizada uma crítica vertical, apenas mantém as coisas como são, reafirmando-as e solidificando-as.

A mulher objeto de troca é a mulher historicamente objetificada/ dominada/ colonizada. Sua condição de objeto "naturalizada" (com a ironia que esse termo aqui carrega) expõe a crítica que não à toa faltou ao autor.

Igualmente ficaram de fora das lentes conclusivas de Lévi-Strauss que a mulher objeto de troca somada ao Tabu do incesto impõem a heterossexualidade como norma. A crítica à exclusão do que não é heteronormativo não está no escopo de quem segue excluindo. Tais críticas não aparecem igualmente nos escritos do "pai" da psicanálise.

A defesa ao patriarcado (ou aos patriarcados) segue firme.

Há quem diga, entretanto, que quem faz a crítica ao patriarcado defende o incesto (ou é contrário a qualquer forma de lei).Estes caminham por uma linha capciosa inversa. Se o patriarcado é fruto da Lei Universal da Interdição do Incesto, quem luta contra os males do patriarcado é favorável ao incesto e, mais ainda, às assim designadas "ideologias de gênero" (seja isso o que for...)Em tempos em que a verdade se produz necessariamente por falsidade, com malabarismos entre elementos a um só tempo proto-narrativos e pouco lógicos, criar uma historieta como essa deixa o mundo prenhe de ignorâncias.

Não precisamos dizer que as interdições do incesto (o que se concebe por incesto) são bastante variáveis entre as culturas ou que havia formas de regulação de parentesco nas sociedades matrilineares (as sociedades com linhagem materna ou as famílias geridas por mães não precisam caracterizar-se por um desejo caprichoso, sem leis estabelecidas...) Nem mesmo que a questão que nos concerne é a luta contra a opressão e a dominação e não contra leis que possam organizar e estruturar uma cultura-natureza ou uma natureza-cultura (já que pudemos abrir nossos ouvidos para o que tantos sujeitos originários das terras brasileiras têm nos ensinado sobre a natureza) para que ela possa se tornar não desigual, não opressiva. Muito menos lembrar que justamente por estarmos em uma cultura de opressão e dominação o incesto acontece frequentemente. O "pátrio poder" muitas vezes é exercido sexualmente em relação aos próprios infans. Em outras palavras, o incesto é prática inerente a um sistema no qual o poder paterno (ou do adulto homem cis, geralmente, branco) está acima de tudo. Mas é calado, silenciado, um verdadeiro tabu que mantém as coisas como estão.

Ler o que ficou à margem das qualificações e descrições de Lévi-Strauss significa resgatar a possibilidade crítica, significa denunciar a heteronormatividade (lembrando que as relações sexuais entre homens, em determinadas culturas e sociedades, muito anteriores às configurações capitalistas, eram aceitas e presentes na norma), bem como a "naturalização" e a reafirmação da mulher como objeto. Significa denunciar a omissão que ajuda a manter o status quo.

Não se trata de uma tentativa de retorno aos sistemas matrilineares (anteriores ao patriarcado), o que obviamente é impossível. Muito menos pensar em uma sociedade completamente desprovida de lei. Não é um elogio ao incesto nem aos assassinatos (Freud utiliza o Édipo também para falar sobre a fantasia parricida). É uma denúncia às diversas opressões que um sistema heteronormativo (agora) capitalista propõe e sustenta.

Se, como escreveu Rubin, "o capitalismo retornou e renovou concepções sobre masculino e feminino que o antecedem em muitos séculos" (RUBIN, 2017, p. 15), trata-se de repensar o sistema para modificá-lo radicalmente.

Dizer que essa luta redundará em incesto é uma tentativa de esconder a pèr(e)-version (ao mesmo tempo perversão e versão do pai) do próprio sistema. Afinal, qual o laço social que o sistema capitalista permite?

XXIII

Retomando alguns pontos:

A psicanálise lacaniana não mais se pode furtar ao debate de gênero. Menos, ainda, manter-se no disco-corrente que faz círculos em torno do próprio centro, o falo. Cumprindo à risca os ditames do sistema heteropatriarcal (que é em si, outrossim , racista) com seus sustentáculos Nome do Pai, Mestre, falo-pênis, a psicanálise vem tradicionalmente nutrindo esforços para assegurar um lugar para os Homens e um des-lugar para as Mulheres.

O Édipo freudiano é heteronormativo. As fórmulas das sexuação de Lacan são heteronormativas. Os malabarismos entre o ter e o ser o falo, idem.

Parece urgente que a psicanálise possa fazer incidir uma crítica aos enunciados próprios sobre homens e mulheres, feminino e masculino, macho e fêmea.
Sim. Parece urgente que a psicanálise possa rever seus próprios dizeres sobre o que designa por "homem" e por "mulher". A visada da não identidade na construção dessas crítica e re-visita sobremaneira mostra-se fundamental. A psicanálise, aí sim, como uma práxis que se pretende escuta e, desprendida de seus preconceitos fundadores, poderia ouvir as mudanças, a fluidez da sexualidade, a polifonia das pulsões e dos desejos, poderia ouvir as surpresas, os paradoxos e os encontros desencontrados daquilo que chamamos "cama", "fantasias", "práticas" etc.

Sem fixar identidades, sem estabelecer diferenças por nomes pré-estabelecidos, mas deixando as diferenças serem tantas quantos forem os sujeitos, enfim, sem recair infinitamente no binarismo da identidade heteronormativa.

Talvez a psicanálise precise de um forçamento (forcing) sobre si para que possa permitir o ressoar de outras possibilidades que não a do sentido coeso da sexualidade heteronormativa, esta sexualidade preenchida pelos ditames ideológicos.
Se a psicanálise conseguir se desfazer da heterossexualidade compulsória e das bizarrices sobre gênero que ajudou a construir e a acompanham, poderá aproveitar alguns de seus conceitos e pontos fundamentais. Afinal, sujeito e desejo inconsciente, pulsão e libido não distinguem identidades e/ou escolhas de objeto.

Há manifestos muito potentes pensando o fim dos ditos sobre identidade de gênero, o fim da suposta diferença de gênero que estabelece discursos prontos para o que é homem, mulher, trans e tal.

Leiamos alguns escritos de Paul Preciado - intercalados com colchetes meus:

"Para falar de sexo, de gênero e de sexualidade é preciso começar com um ato de ruptura epistemológica, uma condenação categórica, uma quebra da coluna conceitual que permita uma primeira emancipação cognitiva: é preciso abandonar totalmente a linguagem da diferença sexual e da identidade sexual (inclusive a linguagem da identidade estratégica como quer Spivak, ou da identidade nomade, como pede Rosi Braidotti)" (Preciado, P. B., Um apartamento em Urano : crônicas da travessia, Zahar, p. 141)

[Por essa ruptura epistemológica, a psicanálise poderia se deixar furar!]

"Em meio ao fogo cruzado em torno das políticas de assédio e de abuso sexual, eu gostaria de tomar a palavra como contrabandista entre dois mundos, o mundo "das mulheres" e o mundo "dos homens" (esses dois mundos que poderiam não existir, mas que as que alguns se esforçam para manter separados por uma espécie de muro de Berlim do gênero), para informar a respeito de alguns "objetos perdidos", ou melhor, "sujeitos perdidos" na travessia".

[Poderíamos pensar que a linha que separa os lados Homem e Mulher, nas fórmulas da sexuação, assemelha-se, e muito, com um muro como esse]

Continuando:

"Falou aqui como homem trans (...) Falo como o trânsfuga do gênero, como fugitivo da sexualidade, como dissidente do regime da diferença sexual. Como auto-cobaia político-sexual que fez a experiência, ainda não tematizada, de viver em ambos os lados do muro e que, à força de atravessá-lo dia após dia, acabou farto, senhoras e senhores, da rigidez recalcitrante dos códigos e dos desejos que o regime heteropatriarcal impõe.(...) desde que moro como-se-fosse-um-homem no mundo dos homens (consciente de encarnar uma ficção política), pude comprovar que a classe dominante (masculina e heterossexual) não vai abandonar seus privilégios por que nós enviamos alguns tuítes e demos alguns gritos. Depois dos abalos da revolução sexual e anticolonial do século passado, os heteropatriarcas embarcaram num projeto de contrarreforma ao qual se unem agora as vozes "femininas" que desejam continuar sendo "importunadas/molestadas". Esta será a guerra de mil anos; a mais longa das guerras pois afeta as políticas de reprodução e os processos através dos quais um corpo humano se constitui como sujeito soberano. A mais importante das guerras, portanto, porque o que está em jogo não é o território ou a cidade, mas o corpo, o gozo, a vida".

[pois bem, lembremos que Audre Lourde, no texto "as ferramentas do mestre não vão desmantelar a casa grande", de 1979, aponta-nos uma questão fundamental: o que significa quando as ferramentas de um patriarcado racista são usadas para examinar os frutos do mesmo patriarcado?

Ou seja, não será com as ferramentas dos patriarcas (sejam elxs desiganadxs do modo que for) que o sistema heteropatriarcal-racista será desmantelado!]


Continua, Preciado:

"A soberania feminina, ao contrário, só é recebida na capacidade das mulheres para gerar".


[ressaltemos que Lacan coloca a mãe no lado Homem de suas fórmulas]

"Em termos sexuais e sociais, as mulheres são súditas. Só as mães são soberanas. Nesse regime, a masculinidade se define necropoliticamente (pelo direito dos homens de dar a morte), enquanto a feminilidade se define biopoliticamente (pela obrigação das mulheres de dar a vida).
(...) A heterossexualidade necropolítica é uma prática de governo que não é imposta pelos que governam (os homens) às governadas (as mulheres), mas sobretudo uma epistemologia que fixa as definições e posições respectivas dos homens e das mulheres através de uma regulação interna (...) Essa forma de servidão sexual repousa numa estética da sedução, numa estilização do desejo e numa coreografia do prazer. Esse regime não é natural: trata-se de uma estética da dominação historicamente construída e codificada, que erotiza e perpetua a diferença de poder".

[Podemos verificar criticamente a posição da mulher nas fórmulas das sexuação proposta por Lacan, essa mulher que não existe (toda): mulher assujeitada, que de tudo abdica por seu Homem, objeto causa de desejo, devastada, misteriosa-mística-virginal, com certo empuxo à loucura, afirmativamente aquela que não é - em contraste com aquele que É. Mulher alteridade corporal ligada ao desejo-Homem]

"(...) O feminismo queer situou a transformação epistemológica como condição de possibilidade de uma mudança social. Tratava-se de questionar a epistemologia binária e naturalizada afirmando diante dela uma multiplicidade irredutível de sexos, gêneros e sexualidade. Entendemos que, hoje, a transformação libidinal é tão importante quanto a transformação epistemológica: é preciso modificar o desejo. É preciso aprender a desejar a liberdade sexual.(...) Como homem trans, desidentifico-me da masculinidade dominante e de sua definição necropolítica. Nossa maior urgência não é defender o que somos (homens ou mulheres), mas rejeita-lo, é desidentificarmo-nos da coação política que nos força a desejar a norma e a repeti-la. Nossa práxis produtiva é desobedecer as normas sexuais e de gênero" (Preciado, P. B., Um apartamento em Urano : crônicas da travessia, Zahar, 2019, pp. 312-316)

[bastante contundente - a masculinidade dominante define-se necropoliticamente! Que a psicanálise possa desidentificar-se, também!]


XXII

Se a psicanálise conseguir se desfazer da heterossexualidade compulsória e das bizarrices sobre gênero que ajudou a construir e a acompanham, poderá aproveitar alguns de seus conceitos e pontos fundamentais. Afinal, sujeito e desejo inconsciente, pulsão e libido não distinguem identidades e/ou escolhas de objeto. Daí que a ideia de (a)sexo, enquanto campo pulsional, - Lacan chega a falar que o (a)sexo é um dizer- isso poderia ser uma aposta! O (a)sexo não distinguiria cis/ trans, homens/ mulheres , homo/hetero/bi/ etc...

O (a)sexo é, a um só tempo, sexual (com as parcialidades da pulsão), real e assexual - no sentido de não distinguir gêneros.

E isso não seria negar supostas diferenças sexuais, mas afirmar que tais diferenças possam ser tantas quantas forem as singularidades. E mais, que possam ser tantas em um só sujeito.


A ideia de uma sexualidade fluida é bem colocada pelxs teóricxs queer.

Inicialmente, a psicanálise poderia fazer incidir uma crítica aos enunciados próprios sobre homens e mulheres, feminino e masculino, macho e fêmea - mesmo que esses digam que A mulher enigmaticamente não se diz e não existe (isso já é um enunciado e tanto...). Provavelmente, assim verificaria o quão heteropatriarcais (Angela Davis) são seus enunciados e enunciações.

O Édipo freudiano é heterossexual. As fórmulas da sexuação de Lacan são heterossexuais. Os malabarismos entre ter e ser o falo, idem. E, por essa via, profundamente machistas.

Em que momento a psicanálise se interrogou a respeito do que faz alguém se afirmar heterossexual?O homem posto como detentor do falo-pênis impõe lugar de objeto (misterioso e corporal) às mulheres. O casal, cis/hétero, segue, desta feita, exemplar.

A psicanálise que se sustenta na vertente heteronormativa não interroga um quadro assim desenhado e sobremodo alinhado aos ditos mais ideológicos sobre as "diferenças de gênero". Resultado: manutenção do status quo. Nada de subversão.

Há manifestos muito potentes pensando o fim dos ditos sobre identidade de gênero (cf Paul Preciado), o fim da suposta diferença de gênero que estabelece discursos prontos para o que é homem, mulher, trans e tal.

Há, porém, quem tente reduzir o problema sem tocar em suas bases materiais.

Dizer que não há em Lacan qualquer passagem heteronormativa ou sexista, e seguir levantando bandeiras como se a psicanálise fosse feminista, decolonial e antirracista, é tentar seguir a onda que empina a própria crista sem se deixar cair, sem mergulhar no mar das próprias tormentas e ver refletidas em sua superfície imagens que se movem distorcidas, quase embaralhadas, mas que podem borbulhar e espumar-se.

Igualmente, simplesmente "esvaziar" um tipo milenar / dominador de "escolha de objeto", como a heterossexualidade, sem dizer que ela é masculina, rica e branca, sem assim contextualizar a longa história de dominação, muitas vezes assassina, relativa a outros modos/escolhas, não dominantes, não seria, enquanto proposta dessa forma colocada, algo fruto de um enunciado dominador?

A psicanálise sairá Toda e ilesa deste momento de desassossego que atravessamos? Por que não se deixar furar?

Como esvaziar e consubstancialmente sair do comando e do apelo ao absoluto?

XXI

A psicanálise lacaniana não mais se pode furtar ao debate de gênero. Menos, ainda, manter-se no disco-corrente que faz círculos em torno do próprio centro, o falo.


Cumprindo à risca os ditames do sistema heteropatriarcal (que em si é, outrossim, racista) com seus sustentáculos Nome-do-Pai, Mestre, Falo-pênis, a psicanálise vem fazendo malabarismos para estabelecer um lugar, ou melhor, um des-lugar para as mulheres.

Basta verificarmos criticamente a posição da mulher nas fórmulas da sexuação propostas por Lacan, essa mulher que não existe (toda): mulher assujeitada, objeto causa de desejo, devastada, misteriosa-mística-virginal, com certo empuxo-à-loucura, afirmativamente aquela que não é - em contraste com aquele que É, mulher alteridade corporal ligada ao desejo-Homem, falada por Ele, ou seja, uma heteridade investida (e vestida) de enigma, quase emudecida, colocada como o Outro, como o Outro sexo.

Seria possível propor, inclusive, uma articulação entre a "mulher" das fórmulas da sexuação e o subalterno com gênero sobre o qual Spivak escreveu: 

 "[...] nomeemos, mesmo assim (como) "mulher" aquela mulher desautorizada a quem nós estrita, histórica e geopoliticamente não conseguimos imaginar como referente literal. Vamos dividir o nome mulher de modo que vejamos a nós mesmas como nomeando e não meramente como nomeadas [...] a esperança por trás da vontade política será que a possibilidade do nome seja finalmente apagada. Hoje, aqui, o que eu chamo "subalterno com gênero", especialmente no espaço descolonizado, tornou-se para mim o nome "mulher"" (Spivak, G. C. (1997). Feminismo e desconstrução, de novo: negociando com o masculinismo inconfesso. In: Brennan, T. (org) Para Além do falo: uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, p. 297). 

Tanto ela quanto Butler apostam no uso do termo 'mulher', um uso estratégico, que a um só tempo denuncie um sistema de dominação-opressão, possa transcender seu uso comum, abarcando novas possibilidades e formas de corpos que contem (que importem) em sua materialidade (neste ponto Butler joga com o significante matter, que traz o importar, a matéria/ materialidade e o assunto em uma polifonia de sentidos) e que possa ser apagado (ou que deixe de operar como referência, que não seja reificante), a saber, que não constitua uma identidade de si a si.

"[...] é necessário recorrer à matéria e à materialidade do sexo para estabelecer essa especificidade específica irredutível que, conforme dizem, deveria fundamentar a prática feminista? E aqui a questão não é haver ou não referência para a matéria, da mesma forma que a questão nunca foi se deveríamos ou não falar sobre mulheres. Essa fala ocorrerá, e, por razões feministas, ela deve ocorrer; a categoria das mulheres não se torna inútil com o exercício da desconstrução, são seus usos que deixam de ser reificados como "referentes" e que ganham uma chance de abrir-se, de fato, para outras formas de significação que ninguém poderia prever de antemão. Certamente, é preciso ser possível usar o termo, empregá-lo taticamente mesmo quando, por assim dizer, ele é utilizado e alocado, mas também sujeitar o termo a uma crítica que interroga as operações de exclusão e relações diferenciais de poder que constroem e delimitam as invocações feministas das 'mulheres' " (Butler, J. 2019. Corpos que importam: os limites discursivos do "sexo". São Paulo: n-1 edições, pp. 57-58) 

Quer dizer que é possível operar com o significante mulher, politicamente, visando o fim da opressão histórica contra as "mulheres" (em um conjunto amplo) ao mesmo tempo em que se percorre uma trilheira com visada crítica, uma verdadeira crítica assídua que se volta para os próprios significantes "mulher" e "feminismo" analisando seus possíveis sistemas de dominação/exclusão internos.

Isto, de fato, não parece ocorrer com as leituras psicanalíticas que persistem em uma espécie de reificação nebulosa da "mulher". Que é mistério e não existe. Há quem fale por elas. Pior, quando tomam a palavra, por alguma ocasião, são "acusadas" de falicismo ou de fazerem operar reivindicações histéricas. O uso do termo, na psicanálise, serve muito mais ao status quo do que a qualquer subversão.

Além de rever seus dizeres sobre o que se designa por "homem" e "mulher", sobremaneira, a visada da não identidade seria por demais útil para que possamos revisitar a psicanálise. A psicanálise, aí sim, como uma práxis que se pretende escuta e, desprendida de seus preconceitos fundadores, poderia ouvir as mudanças, a fluidez da sexualidade, a polifonia das pulsões e dos desejos, poderia ouvir as surpresas, os paradoxos e os encontros desencontrados daquilo que chamamos "cama". Sem fixar identidades, sem forçar diferenças por nomes pré-estabelecidos, mas deixando as diferenças serem quantos forem os sujeitos, enfim, sem recair infinitamente no binarismo da identidade heteronormativa.  Talvez a psicanálise precise de um forçamento sobre si, para que possa permitir o ressoar de outras possibilidades que não a do sentido coeso da sexualidade, esta sexualidade preenchida pelos ditames ideológicos (aqui forçamento é uma referência ao forcing, utilizado por Lacan no seminário 24).

"A desconstrução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada [...] Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas de supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruinas das antigas. As configurações culturais do sexo e do gênero poderiam então proliferar ou, melhor dizendo, sua proliferação atual poderia então tornar-se articulável nos discursos que criam a vida cultural inteligível, confundindo o próprio binarismo do sexo e denunciando sua não inaturalidade fundamental. Que outras estratégias locais para combater o 'inatural' podem levar à desnaturalização do gênero como tal?" (BUTLER, 1990/2018, Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.256)"[...] o que alicerça a pressuposição de que as identidades são idênticas a si mesmas, persistem ao longo do tempo, unificadas e internamente coerentes? Mais importante, como essas suposições impregnam o discurso sobre as "identidades de gênero" (Judith BUTLER, 1990/2018, p. 42). 

Pois bem, o que alicerça as suposições idênticas a si mesmas no que refere às identidades de gênero para a psicanálise?

Se o objetivo é a superação (por dialética) da fixidez da identidade de gênero, a psicanálise, que se autoproclama matéria subversiva, poderia dar um passo no sentido de desfazer seus muitos dizeres sexistas.

Paul Preciado, nesta direção, oferece-nos um horizonte bastante fértil (a novos posicionamentos, esses, sim, subversivos):

"Para falar de sexo, de gênero e de sexualidade é preciso começar com um ato de ruptura epistemológica, uma condenação categórica, uma quebra da coluna conceitual que permita uma primeira emancipação cognitiva: é preciso abandonar totalmente a linguagem da diferença sexual e da identidade sexual (inclusive a linguagem da identidade estratégica como quer Spivak)" (Preciado, P. B., 2020. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, p.141)A radicalidade proposta pode nos ensinar: fim da identidade de gênero, nem mesmo identidade estratégica, ou tática, como havia colocado Butler.Que isso possa habitar nossos atos (analíticos).Mas, para tanto, é preciso reinventar. E fica uma pergunta:


Pode a psicanálise descentrar-se?

XX


Os ativismos de gênero, antirracistas, decoloniais e favoráveis ao fim das desigualdades de classe podem (e devem) trançar-se, dar os braços em uma marcha a um só tempo firme e sinuosa, com formas não necessariamente euclidianas. Dentro e fora, limites, penetrabilidades, enredamentos e diferenças, contradições e o possível, podem constelar alguma ordenação sem desfazer as particularidades.

As esquerdas não podem mais fazer vistas grossas e ouvidos moucos aos problemas coloniais, à exploração que recai de modo brutal sobre os grupos minoritarizados, ao genocídio dos povos indígenas, ao racismo estrutural e as diversas formas de violência deste decorrentes, ao extermínio das populações LGBTIs e ao feminicídio. As questões de classe não estão desvinculadas do que se pauta pelas lutas dos movimentos ditos identitários (mesmo que alguns elejam a identidade como algo estratégico).

O Brasil tem história e ostenta muitos pódios em termos de violência e extermínio.

Entre os países que computam índices de violência, o Brasil encontra-se em quinto lugar em relação aos índices de feminicídio.

Termo proposto por Diana Russel, ativista sul-africana que lutou contra o apartheid em seu país, o feminicídio passaria a se referir ao assassinato de mulheres por serem mulheres. Com intuito claramente político, Diana destacou os assassinatos frutos da misoginia de outros homicídios.

No Brasil, a cada duas horas, uma mulher é assassinada por ser mulher. A cada três mulheres mortas, duas são negras.

Além de ser um país que mata as mulheres, principalmente as mulheres negras, vivemos, outrossim, submersos no terrível caldo de cultura do estupro. A cada hora, quatro meninas, com até 13 anos, são estupradas.

Alto pontuador no assunto, o México carrega consigo, até os dias de hoje, o silenciamento atroz de seguidos assassinatos de meninas e mulheres, com idades entre 5 e 25 anos, na Cidade Juarez. As mortas de Juarez, que já passam de mil, são geralmente de baixa renda. Os feminicídios são precedidos por estupros e outras torturas. O primeiro caso foi registrado em janeiro de 1993. Fronteira com os EUA, Juarez passou a receber empresas multinacionais na década de 90. Entrada de capital estrangeiro, desigualdade social e misoginia se mesclam nessa espécie de terror, que a um só tempo se revela a céu aberto e é encoberto pelo negacionismo típico daqueles que detém o poder.

(A peça Mulheres da Areia, escrita pelo dramaturgo mexicano Humberto Robles, traduzida, dirigida e interpretada por Christiane Tricerri, retrata de maneira documental, comovente e impactante os horrores históricos e sistêmicos que destroçam vidas. Ao colocar voz e luz nessa tragédia quase cotidiana- como tantas outras ativistas o fazem e fizeram -, os atores nos despertam e alertam para o que tende a sumir na aspiração contumaz que costuma ocorrer nesses casos. Fazem o movimento contrário, fazem os corpos se multiplicarem em gritos, oferecendo-lhes o amplificador e a ressonância necessários para que a denúncia atravesse continentes)

O sistema necropolítico, termo cunhado por Achille Mbembe, produz, em série, vidas que não contam, que não importam. Vidas matáveis. Corpos invisibilizados que são postos para a morte pelo sistema, pelo Estado. A lógica feminicida, que compõe a cartilha dos dominadores, faz das mulheres seres assassináveis (como escreveu Judith Butler) :

"Podemos dizer que as mulheres [incluindo as mulheres trans] são assassinadas não por causa de qualquer coisa que tenham feito, mas pelo que os outros percebem que são. Como mulheres, são consideradas propriedade do homem, é o homem que ostenta o poder sobre suas vidas e suas mortes. Não há nenhuma razão natural que justifique essa estrutura fatal e injusta de dominação e terror"

(Butler, Judith. De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Publicado no El País, em 10 de julho de 2020)

A mulher negra, a mulher de baixa renda, a mulher dos continentes colonizados são, genérica e singularmente, assassináveis. Não à toa são muitas as metáforas que referem continente e matas virgens a algo a ser desbravado, dominado. Mira do estupro, o corpo da mulher, particularmente dessas mulheres, é terreno fértil para a dominação.

Uma vez cingidos esses pontos críticos, um(a) psicanalista pode se perguntar: o que a psicanálise tem dito sobre esse sistema de dominação?

Como psicanalistas feministas, antirracistas e decoloniais, como podemos reler algumas passagens psicanalíticas que há tanto tempo nos chegam e que, em larga medida, perpetuam assombrosas afirmações machistas, brancas-eurocêntricas e heteronormativas?

Retomemos algumas delas:

  • Eu escutava um emissão, em que uma jovem mulher, de um país em que elas são violadas e dominadas política e socialmente, explicava com muita graça que não precisava se enganar: que elas não tinham certamente nenhum poder político ou social, mas que tinham aquele bem verdadeiro da fala, da persuasão íntima que obtinha sem comandar. E eis aí o que nos explicam do verdadeiro poder não violento das mulheres: saber dobrar o outro a seus pontos de vista [...] Quais são os recursos possíveis contra esse destino, segundo a estrutura? (Soler, Hmens, Mulheres, e-book, 2020, p.2864. Ed. Aller)
  • não há limites às concessões que uma mulher está prestes a fazer por seu homem, de seu corpo, de seus bens [...] a mascarada não é mentira, mas estratégia de assujeitado, tentativa de se ajustar à fantasia do homem para coincidir com seu objeto [...] Uma forma de concessão, portanto, mas não oblativa, porque visa uma falicização reparadora do dano a priori (Soler, Hmens, Mulheres, e-book, 2020, p.2857. Ed. Aller)

Partindo de uma citação de Lacan encontrada em Televisão, sobre as concessões sem limites de uma mulher para um homem, Soler procura sustentar que o assujeitamento feminino, esse Outro feminizado, não seria um assujeitamento voluntário, mas um dado de estrutura trans-histórica, um destino. Ao assujeitar-se, esse Outro/Mulher repararia falicamente um dano a priori (o não ter o falo-pênis). Restaria às mulheres, no par heterossexual-binário, "saber dobrar o outro", fazendo-se de objeto. Parece um argumento que insiste e assina embaixo do sistema de dominação.

Pois bem, Sherazade sabia-se assassinável. Astuciosas ou não, as mulheres das tantas mil-e-uma-noites continuam submetidas a uma lógica de dominação. A submissão por saber-se minoritarizada, por saber-se assassinável, não deveria encontrar, em uma teoria que se diz subversiva, argumentos que fazem do destino funesto de um longo tempo histórico, destino trans-histórico, estrutura.

Alguma separação (sabendo que não há separação sem alienação) crítica não se faria urgente?

Voltemos a Butler, no artigo supracitado:

"A população de mulheres ainda vivas vive, até certo ponto, aterrorizada com a prevalência dos assassinatos contra elas. Algumas aceitam a subordinação para evitar esse funesto destino, mas essa subordinação serve apenas para lembrá-las de que são, em princípio, uma classe assassinável. "Submeta-se ou morra" se torna o imperativo imposto às mulheres que vivem nessas situações de terror"

"É por isso que temos uma tarefa teórica tão grande à nossa frente: como entendemos a especificidade do terror sexual? Que relação tem com a dominação e o extermínio?"

Sim! Parece que nós psicanalistas podemos nos juntar a essa tarefa. Isso, no intuito de tentarmos trabalhar para desfazer esse destino funesto de tantas mulheres (e não o afirmar).

XIX

Como a psicanálise poderia abarcar seus importantes pontos teóricos e seu subversivo dispositivo clínico (de escuta) e repensar a sexualidade humana de modo não essencialista? De modo não atrelado à anatomia?

No início dos anos 60, Lacan concebeu sua invenção teórico-clínica, o objeto a e o articulou, dentre outras, à pulsão. Mais tarde, ao avançar sobre sua teorização, pensando o objeto a enquanto motor pulsional da sexualidade, afirmou-o (a)sexual (Lacan, aula de 11 de abril de 1978, inédito). Podemos pensar que o objeto a seria (a)sexual justamente por ser o a sexuado (da pulsão, do desejo, do erotismo inconsciente) e, ao mesmo tempo, seria assexual, a saber, insuficiente para dizer a diferença sexual - diferenças entre homens e mulheres. No mesmo seminário, Momento de Concluir, Lacan teria dito que o sexo é um dizer e ressaltado a importância do conjunto vazio no (a)sexo, na não relação sexual, no não complemento entre os sexos - acrescentaríamos, sejam elxs , os sujeitos, xs parceirxs, quem forem. 

As articulações possíveis entre corpo, pulsão e dizer parecem abrir trilheiras. Na contramão da obtusa leitura binária, as vozes podem ser ouvidas desde lugares diversos. Sublinhando a responsabilidade sexual do psicanalista e, agora, a pulsão como um eco no corpo (de que há um dizer), como pensar, clinicamente, sobre as singularidades corporais e de gozos que nos dizem desses ecos?!... A pulsão, enquanto eco, traz voz ao sujeito do desejo e à enunciação do erotismo inconsciente. Quiçá essa notação - (a)sexual - possa escrever a impossibilidade de dizer a diferença sexual quanto ao desejo, à libido (e ao gozo) e ao enigma. 

Performatividades?

O (a)sexual, enquanto dizer, abre o campo das singularidades. Abre espaço para se verificar as variedades, o que cada sujeito singular fez/ faz do conjunto vazio, do enigma ligado ao Real do corpo e do sexo. Mais, ainda, o que cada um pode inventar desde a "não relação sexual".

A performatividade a partir de a (ou os semblantes - sens blanc - não binários) pode ser um caminho não anatomizado.   

Quanto a essa noção de performatividade (ou semblante), lembremos que Butler trabalha com a noção de performatividade de gênero. O que, certamente, igualmente não se refere a qualquer posição 'consumista' em relação ao mesmo. Em seu "Corpos que importam", ela adverte:

[...] isso [performatividade] poderia significar que eu pensava que uma pessoa acorda de manhã, examina o armário ou algum outro espaço mais aberto para o gênero de escolha, veste o gênero para aquele dia e, então, recoloca a peça de roupa em seu lugar à noite. Tal sujeito voluntarioso e instrumental, aquele que decidiria seu gênero, claramente não pertence a seu gênero desde o início e fracassa em perceber que sua existência já está previamente decidida pelo gênero (BUTLER, 2019, pp.10-11).

Desta feita, podemos dizer que a performatividade de gênero não é um artificialismo, algo dependente da vontade de alguém ou uma escolha (consciente). Muito embora Butler não a coloque como um "ato" singular, poderíamos articular esta noção de performatividade com a concepção de dizer para a psicanálise (que se refere ao Real e em certa medida ao Real do corpo). Restam, ainda, discussões fundamentais sobre as possibilidades de agenciamento crítico sobre as construções de gênero (já que estas são fruto de relações de poder):

Como podemos entender a repetição ritualizada pela qual essas normas produzem e estabilizam não só os efeitos de gênero, mas também a materialidade do sexo? E essa repetição, essa rearticulação, pode também construir a ocasião para uma reformulação crítica das normas de gênero aparentemente constitutivas? (BUTLER, 2019., p.11)

Como a psicanálise pode contribuir com essa reformulação crítica das normas de gênero?

Pois bem, Homens? Mulheres? X? Por que não deixar cada um dizer

XVIII

"Só que, o que ele aborda, é a causa do seu desejo, que eu designei pelo objeto a. Aí está o ato de amor. Fazer o amor, como o nome indica, é poesia. Mas há um mundo entre a poesia e o ato. O ato de amor, é a perversão polimorfa do macho, isso entre os seres falantes [...] quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica. É isto o que define a ... a o quê? - a mulher justamente, só que A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher, pois - já arrisquei o termo, e por que olharia eu para isso duas vezes? - por sua essência ela não é toda" (LACAN, 1972-73/1985, p.98).

Pois bem, Lacan não se propôs a olhar duas vezes para isso. Arriscou-se e, ao que parece, arriscou-se como um homem de seu tempo. O que poderia constituir uma interessante articulação entre o amor e a poesia, ao tornar-se circunscrito ao macho, desfaz-se poeticamente. O fazer amor fica a cargo dos seres falantes que se inscrevem como todos. Logo, homens. Mesmo que ali estejam como semblantes. De qualquer modo, o fazer amor fica a cargo do macho.

É relevante questionar, também, dentre as afirmações acima, o que parece novamente oferecer a mais longa Até (destino) às mulheres. Aqueles seres falantes que se alinham sob a bandeira - mulheres - fundam-se por serem não-todos, uma espécie de essência daqueles que assim surgem declarados/ inscritos/ performados ou seja: se mulher → não-todo. Alinhar-se sob a bandeira das mulheres → não-todo. Deste modo, quando tomada como relação direta (mulher → não-todo), o não-todo deixa de ser uma abertura ou o resultado de operações analíticas, - o que permitiria aos sujeitos cingirem furos e suspenderem sentidos fixos - para tornar-se lugar de uma das identidades de gozo no "casal" sexuado (como se, no casal, para não haver relação sexual, um precisa ser todo e o outro, não-todo).

O não-todo, como destino (único) da bandeira-mulher, vem carregado de ideologia, fazendo escorrer mais uma vez a longa história (uma referência ao termo 'tempo longo' cunhado por Fernand Braudel) da dominação masculina que essencializa as mulheres. Por mais que Lacan, no trecho citado, tenha afirmado 'ser falante' para os lados das fórmulas da sexuação - o que supostamente abriria espaço para uma leitura não CIS de tais fórmulas - seus exemplos, além de insistir no casal todo - não-todo, outrossim recheiam-se de descrições do cotidiano que não escapam das referências aos homens e às mulheres de modo cis e sempre binário.

O não-todo vestido desse significante, Mulher, reencontra a história. Enquanto propunha suas fórmulas da sexuação, Lacan produziu um verdadeiro quiasma entre complexas construções lógicas e rasas fenomenologias cotidianas. Tratar o não-todo pela compacidade lógica, que prova possibilidades de abertura de conjuntos é algo profundamente interessante. Dizer que o não-todo é a Mulher barrada, que não há Universal para as mulheres, como há para os homens, justificado principalmente por Aristóteles, é falacioso.

"[...] toda essa pan-tomima da primeira grande lógica formal está essencialmente ligada à ideia que Aristóteles fazia das mulheres [...] Isso não impede que a única fórmula que ele não teria permissão de pronunciar fosse todas as mulheres." (Lacan, J. (1971/ 2009, p. 144. Seminário 18)

Lacan fala sobre a não possibilidade do Universal para as mulheres. A lógica aristotélica não permite afirmar 'todo' para as mulheres. Todo homem é mortal (a universal afirmativa) não encontraria seu equivalente para as mulheres, não seria possível afirmar: Toda mulher é mortal. Justificativa ideológica: o que Aristóteles pensava sobre as mulheres (a saber, mulheres são serem que carecem de qualidades). A universal afirmativa - Todo homem é mortal (em Aristóteles) - Para todo homem, castração (a formulação do universal por Lacan), seria uma referência exclusiva aos homens. 

Em Lacan, o conjunto universal - dos homens -, existiria exatamente porque teria havido um Homem que teria dito não a esse mesmo universal (da castração). O um-Homem, mítico, não castrado, Lacan o extraiu de Totem e Tabu. Designou-o como o Pai da horda, mesmo reconhecendo, ali, a neurose de Freud:

É preciso o assassinato do Pai ter constituído - para quem? Para Freud? para seus leitores? [...] É curioso que tenha sido preciso eu esperar este momento para poder formular uma assertiva assim, qual seja, que Totem e Tabu é um produto neurótico, o que é absolutamente incontestável, sem que por isso eu questione, em absoluto, a verdade da construção (Ibid., p. 150).

A partir de uma suposta "carência de qualidades" das mulheres (o que Aristóteles dizia das mulheres), justificar-se-ia a impossibilidade de dizer Toda para as mulheres? A partir da neurose de Freud, poder-se-ia afirmar uma existência masculina que a um só tempo encarnaria a exceção e permitiria o conjunto de todos os homens?

Não obstante, há uma passagem na qual Lacan pondera a existência de uma exceção do lado Mulher, mas o faz justamente para dizer (provar) que 'A mulher' não existe:

"[...] a única A-Mulher- mítica, no sentido de que o mito a faz singular, trata-se de Eva, de que falei há pouco - por jamais ter sido incontestavelmente possuída [...] A-mulher da qual se trata é um outro nome de Deus, e é por isso que, como eu disse muitas vezes, ela não existe" (Lacan, 1975-76/2007, p. 14)

Chama a atenção essa dupla de exceções: uma que se desfaz, por não existir, como uma divindade, outro que se sustenta, ainda que miticamente. De todo modo, A-mulher mítica jamais fora 'possuída', já o Homem mítico, o Pai da horda, gozava de todas as mulheres (até ser assassinado por seus filhos, em levante). A virgem divinizada e o homem possuidor de todas as mulheres. Figuras que reafirmam o mais caricato dos dizeres sobre gênero.

Beauvoir (1949/2016), neste sentido, traz ponderações que podem nos auxiliar a pensar: "Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade" (p.11), "A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele [...] O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem" (p.12) e, para concluir: "O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro" (p. 13).

Ao concordar com Aristóteles, em um apelo, neste ponto, com disfarces de estrutura, Lacan não teria feito exatamente o que Beauvoir denunciara? Afinal, o não-todo (a mulher) é o Outro, não pensável sem o homem (é não-toda fálica, ou seja, não sem o todo-fálico). O Sujeito, absoluto (Todo) é o homem.

Com o aforismo: não há relação sexual em mente (o que constitui um ponto axiomático importante), Lacan apresenta a impossibilidade de se fazer Todo em um par sexuado. Não há, portanto, complemento sexual. Entretanto, por que pautar esse não complemento pelo casal, potencialmente considerado hetero - Homem-Mulher ou Todo e Não-Todo? 

Irigaray, dialogando com a leitura de Beauvoir, afirma uma inversão. O dizer de Beauvoir segundo o qual apenas a mulher é "sexo", inverter-se-ia em:

"ela não é o sexo que é designada a ser, mas, antes, é ainda - encore (e em corps) - o sexo masculino, apresentado à maneira da alteridade. Para Irigaray, esse modo falocêntrico de significar o sexo feminino reproduz perpetuamente as fantasias de seu próprio desejo autoengrandecedor" (Irigaray, Apud. Butler, 1990, p.36).

Ao afirmar encore, Irigaray fazia referência ao nome dado por Lacan a seu seminário 20, no qual ele apresentou a forma finalizada de suas Fórmulas da Sexuação. 

Encore, justamente, abre campo ao equívoco significante (o que é bastante importante na prática clínica) entre o 'ainda' (Mais, ainda - sua tradução no português) e 'no corpo'. 

Ainda, o corpo. O gozo do corpo, afirmado Outro, ou, mais precisamente, Outra/ Mulher. A questão que logo nos coloca Irigaray: esse ainda, na forma de alteridade corporal - da mulher, é dito a ela pelo homem, segundo suas fantasias 'autoengrandecedoras'.

Novamente, Lacan:

"Não há mulher senão excluída pela natureza das coisas que é a natureza das palavras, e temos que dizer que se há algo de que elas mesmas se lamentam por hora, é mesmo disto - simplesmente, elas não sabem o que dizem, é toda a diferença que há entre elas e eu [...] por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar [...] Vocês notarão que eu disse suplementar. Se eu tivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no todo" (LACAN, 1972-73/1985, p. 99)

Enfim, continuar a chamar de Homem e Mulher os lados das fórmulas da sexuação propostos por Lacan, isso poderia perpetuar uma longa história de dominação e falas em forma de monopólio - e, por que não?! - monólogo! (eles sabem o que dizem, sabem dizer, inclusive, sobre as mulheres e, quando assim não o sabem, sabem afirmar que a mulher e seu suposto gozo são o mistério). 

Quanto ao mistério atrelado ao gozo da Mulher barrada, Lacan (1972-73/1985), ainda teorizando suas fórmulas da sexuação, enfatizou o gozo místico. O gozo da Mulher barrada, não-toda, apontaria para esse gozo místico. 

Sobre Santa Teresa, disse:

"Basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida. E do que é que ela goza? É claro que o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele [...] essas jaculações místicas [...]." (LACAN, 1972-73/ 1985, p.103).

Logo depois:

"Eu creio no gozo da mulher [...] esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele que nos coloca na via da ex-sistência? E por que não interpretar uma face do Outro, a face de Deus, como suportada pelo Gozo feminino?" (Ibid.)

Lacan segue:

"Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimente - isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a todas [...] Considerações amiudadas sobre o gozo clitoridiano e sobre o gozo que chamam como podem, o outro justamente, esse que estou a ponto de fazer vocês abordarem pela via lógica [...] O que dá alguma chance ao que avanço, isto é, que, desse gozo, a mulher nada sabe, é que há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos - eu falava da última vez das psicanalistas mulheres - que tentem nos dizer, pois bem, nem uma palavra! Então a gente o chama como pode, esse gozo, vaginal, fala-se do polo posterior do bico do útero e outras babaquices, é o caso de dizer. Se simplesmente ela o experimentava, ela não sabia nada dele..." (Ibid., pp. 100-101)

Esses trechos dão a dimensão do quão misterioso era o gozo da mulher para um homem. Esse gozo do qual supostamente as mulheres nada falavam, Lacan o encontrou nos relatos de santas místicas. De Hadewijch (considerada uma mística do amor, também poetisa, do século XIII) à Santa Teresa (e ainda é possível incluir Santa Catarina), essas mulheres capazes de uma devoção incondicional e total a Deus, que podiam gozar (um gozo permitido) dessa condição, porque santas/ beatas/ místicas. Se (supostamente) as psicanalistas mulheres, próximas a Lacan, nada puderam dizer sobre o 'gozo da mulher', é interessante notar que Lacan o procurou e o "descobriu" nessas figuras místicas (sustentáculo do mistério). E não, por exemplo, em poetisas consideradas libertinas.

Não deixa de chamar a atenção que Lacan não tenha questionado o que lhe apareceu ali enquanto falta de resposta sobre o prazer e o orgasmo vaginal e/ ou clitoridiano, mas apenas apresentado uma 'solução'. Ironicamente, em seu seminário 21, Lacan considerou que, para um homem, nada seria impossível: "o que ele não pode fazer, ele abandona" (Lacan, aula de 15 de janeiro de 1974, inédito). Parece que Lacan 'abandonou' o problema ao insistir em responder em nome das mulheres, como um homem (cis, hétero e branco). E fez do gozo dito feminino algo posto em função dos homens (mesmo que não inteiramente). O que não fosse para um Homem, apontaria um mistério inefável?

Justamente, "a face de Deus suportada pelo gozo feminino" não nos colocaria no risco (já que Lacan considerou o risco) de acreditarmos que o gozo Outro (enigmático), do qual as mulheres nada sabem, não é nada mais que um gozo devastação? Da mulher capaz de toda anulação em nome do Um-homem?

Pois bem, Deus teria dito à Santa Catarina:

"Sabes, Minha filha, quem tu és e Quem EU Sou? Se chegares a saber estas duas coisas serás bem-aventurada. Tu és aquela que não é; EU, ao contrário, Sou AQUELE que Sou. Se mantiveres na tua alma essa distinção, o inimigo não poderá te enganar e evitarás todas as suas armadilhas. Não permitirás jamais coisa alguma que seja contrária aos Meus Mandamentos, e obterás sem dificuldade toda graça, toda verdade e toda luz". 

O gozo próprio à religião e aos mistérios reduz as mulheres a um não-ser. Muita devoção àquele que É e um lugar mal desenhado. 

Desde a distopia do "aquela que não é",  podemos pensar nas concessões femininas:

"não há limites às concessões que uma mulher está prestes a fazer por seu homem, de seu corpo, de seus bens [...] a mascarada não é mentira, mas estratégia de assujeitado, tentativa de se ajustar à fantasia do homem para coincidir com seu objeto [...] Uma forma de concessão, portanto, mas não oblativa, porque visa uma falicização reparadora do dano a priori" (Soler, 2020, p.2857)

Partindo de uma citação de Lacan encontrada em Televisão, Soler, em seu livro 'Homens, Mulheres', procura sustentar que o assujeitamento feminino, esse Outro feminizado, não seria um assujeitamento voluntário, mas um dado de estrutura trans-histórica. Ao assujeitar-se, esse Outro/Mulher repararia falicamente um dano a priori (o não ter o falo-pênis).

A Mulher, essa alteridade, segue atrelada ao desejo-Homem. Algumas figuras nos foram e são apresentadas: a mulher assujeitada, a mulher devastação, a mulher louca. 

A loucura surge com o termo 'empuxo-à-mulher', empuxo feminizante que reaproxima as mulheres da loucura.

"Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que quiserem, a saber, uma aflição pior que um sinthoma [...] trata-se mesmo de uma devastação" (Lacan, 1975-76/2007, p.98).

Ou,

"[...] uma mulher só encontra O homem na psicose [...] Assim, o universal do que elas desejam é a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz. É por isso que não são todas, isto é, não loucas-de-tudo (pas folie-du-tout), mas antes conciliadoras, a ponto de não haver limites para as concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens" (Lacan, 1973/ 2003, p.538) (grifos nossos) (televisão)

A mulher devastada, a mulher sem limites para o que pode conceder de si a um homem, a mulher não-toda louca (por mais que pas folie-du-tout equivoque com 'nem um pouco loucas', o que traria uma contradição jocosa), o empuxo feminizante da loucura está bastante presente nos escritos do Lacan das fórmulas da sexuação:

"Desenvolvendo a inscrição que fiz da psicose de Schreber [...] poderia demonstrar, no que tem de sarcástico, o efeito de empuxo-à-mulher que se especifica pelo primeiro quantificador" (Lacan, 1973/ 2003, p. 466) (o aturdito)

O não conjunto das mulheres (a não universal afirmativa para as mulheres) as coloca como figuras marcados pelo lugar/ não lugar da história, portadoras de danos a priori. 

Preciado, em Um apartamento em Urano: crônicas da travessia, lembra-nos que o termo feminismo foi cunhado pelo médico francês Ferdinand-Valère Faneau de la Cour, em 1871, para designar "uma patologia que afetava os homens tuberculosos e produzia como sintoma secundário uma feminização do corpo masculino" (Preciado, 2019, p.119). Um ano depois, Alexandre Dumas Filho, utiliza o termo médico para referir-se aos homens que defendiam as lutas das sufragistas:

"as primeiras feministas eram, portanto, homens: homens que o discurso médico considerava anormais por terem perdido seus atributos viris, mas, também, homens acusados de feminizar-se devido à sua proximidade com o movimento político das cidadãs. As sufragistas ainda demoraram alguns anos para reivindicar esse adjetivo patológico e transformá-lo num lugar de identificação e ação política" (Ibid., p.120)

Ao invés de afirmarmos a Mulher como mistério feminizado, por que não apontamos para políticas que possam dar lugar à aberturas que reduzam os poderes, interroguem as dominações e deem voz àquelas e (agora sim) àqueles que ficam ideologicamente postos como Outros da história? 


XVII

Função ilegível

Lacan inicia a escrita das fórmulas da sexuação no seminário 18, De um discurso que não fosse semblante. Encontramos, no princípio dessa construção, na aula de 17 de março de 1971, uma interessante proposição sobre a não inscrição da relação sexual.

Na construção da via lógica das fórmulas da sexuação, pautado na lógica aristotélica, Lacan parte da articulação entre dois polos, a UA - Universal Afirmativa (todo... é...) e a PN - Particular Negativa (há ... que não). Colocar-se-ia, na partida, uma contradição, a saber, é possível afirmar 'para todo x' porque, necessariamente 'há ... que não'. Das proposições aristotélicas, Lacan passa ao uso dos quantificadores da lógica matemática (Ɐ, ⱻ). O Universal - Ɐx - para todo x, acrescentando-se: função de x. E os quantificadores particulares (ⱻx, ~ ⱻx), aqueles que escrevem existências, ou seja, escrevem que existem x que funcionam (PA - particular afirmativa) na função de x colocada pela Universal Afirmativa e que há existência(s) que não se inscreve(m) (PN - particular negativa).

A PA (particular afirmativa) designa que há o inscritível.

A PN (particular negativa), neste momento escrita ~ⱻx.F, diz que o x não é inscritível (nesse momento, "há... que não se escreve", não exatamente, o "há um que não" da negativa que ele propõe um pouco mais adiante, no mesmo seminário)[1].

Ɐx.Fx (UA) Ɐx.~Fx (UN)

ⱻx.Fx (PA) ~ⱻx.F (PN)

A UN (Universal Negativa), entretanto, designaria um não valor: "já que aí não se deve escrever F(x) em nenhum x que vocês falem" (Lacan, 1971, p.104).

Entre a UA e a PN, Lacan demonstra que o conjunto universal (sujeitos do inconsciente - para todo x, função de x) possivelmente se forma porque há uma impossibilidade de se escrever a relação sexual. ~ⱻx.F (PN) - não existe esse inscritível.

"Pois bem, é justamente em torno disso que se articula o que acontece com a relação sexual [...] A questão é o que não se pode escrever na função F(x), a partir do momento em que a função F(x) existe ela mesma para não se escrever [...] ela é, propriamente falando, o que se chama ilegível" (Lacan, 1971, p.104)

Não há relação sexual, aforismo que escreve uma impossibilidade. Há algo do sexual, enquanto Real, que não cessa de não se escrever. Há algo que, enquanto escrita do impossível, é ilegível. Há o não inscritível. E isso pode fazer conjunto. Porque a relação sexual não existe, há o conjunto dos sujeitos do inconsciente, do desejo.

Muito embora Lacan tenha trazido essas grandes contribuições para pensarmos as questões próprias ao Real no que toca o sexual do falasser, ele inicia suas elaborações sobre a sexuação lançando mão de dois termos bastante carregados de sentido, quais sejam: Homem e Mulher.

Por que "resolver" o impasse sexual, o Real, com esses dois significantes: Homem, Mulher? Mesmo enquanto semblantes... (essa relação entre o imaginário - do parecer/ para-ser - e o real - do furo, do sentido em branco).

De fato, há em Lacan um esforço pela lógica e afirmações que Homem e Mulher são apenas dois significantes, e que não seriam, portanto, dois signos Cis. Entrementes, além de instituir a não-relação entre Homem e Mulher (ou Todo e NãoTodo), Lacan permanece utilizando esses dois termos que carregam o peso de uma história de dominação, ao mesmo tempo em que segue perfilando uma série de comportamentos - bastante caricatos - "próprios" a cada um dos gêneros.

Antes de listarmos uma série de notações de Lacan, justamente desde o Seminário 18, que mostram o preconceito lacaniano e seus apelos Cis, pensemos sobre alguns pontos:

Só não há relação sexual, supondo-se um casal, se um estiver no lado Todo-Fálico (Homem) e Outro no Não-Todo-Fálico (Mulher)? Um pequeno esforço de pensamento nos faria perguntar se, nessas classificações categóricas, entre Todo e Todo haveria relação sexual. Também, se entre NãoTodo e NãoTodo há relação sexual. Por que permanecemos nessa lógica pueril segundo a qual um precisa entrar como Homem e o Outro como Mulher? Não parece ser sempre esse o caso.

Se o real do sexo atravessa os seres falantes (de modo contingente e traumático) por que perfilar tantos comportamentos?

Por que discorrer sobre o sexo de modo tão harmônico com o senso comum? Há dois semblantes? Homem e Mulher? Nada mais adaptado que isso. Nada menos subversivo que isso.

Meninos (semblantes) vestem azul - Meninas (semblantes) vestem rosa?

Se os dizeres históricos reproduzem os sistemas de dominação ao afirmarem Homem e Mulher, a psicanálise pode reivindicar estatuto subversivo afirmando o mesmo?

Por que não afirmamos que os sujeitos, radicalmente singulares, possuem, com o Real do sexo, uma relação de estranhamento? - o sexo como enigma, como mistério de corpo, como surpresa e constelação corporal.

Por que não tomamos o Não-Todo e a contingência que ele implica, como orientação e operação constelar possível (provisória)? Contingencialmente, um ser falante pode experimentar a abertura constelar (o que o remeteria a uma responsabilidade sobre isso).

Se o Não-Todo for uma inscrição definitiva e não uma abertura prenhe de possibilidades, não fazemos da contingência, necessidade?

Ao afirmarmos pontos interessantes da Lógica proposta por Lacan, estaríamos apontando uma lógica sem conteúdo? Sem antropologia?

Pois bem, Lacan, com Freud, propõe que a antropologia que nos caberia, quanto à sexuação, seria o mito da neurose de Freud, a saber, Totem e Tabu - o que logo nos coloca diante do pathos que tal mitologia imprime, por sinal, bastante compatível com a neurose obsessiva (e sua particular crença no pai). Igualmente, no lugar fenomênico (e comportamental) desfilamos ignorâncias e preconceitos sobre o que se CRÊ (e como a psicanálise crê no Homem!) Homem e Mulher. Diante de tal aparato conteudista, talvez alguma ordem de suspensão significante seja necessária. Que outros nomes-semblantes possam designar divisões menos dominadoras e executoras de domínio de gênero (e classe e raça).

Quiçá a aposta na não relação sexual e no Real do sexo que acontece no ilegível do corpo possam trazer novos modos de dizer. Quiçá a alteridade, esse Heteros enigmático que desperta os corpos, não precise mais ser vestida de Mulher - sempre para um Homem.

Falta-nos escuta?



Trechos de Lacan

Seminário 18

1) Meninos e meninas são diferentes:

Aí, então, elas se dão conta disto, por exemplo: de que de modo algum precisamos esperar pela fase fálica para distinguir uma menina de um menino; já muito antes eles não são iguais, em absoluto. E aí nos deslumbramos. (Lacan, sem 18, 1971, p.30)

2) Transexualidade = psicose (no caso masculino-pênis - operação):

Chama-se Sex and Gender [Sexo e gênero], de um certo Stoller. E muito interessante de ler, primeiro porque desemboca num assunto importante - o dos transexuais, com um certo número de casos muito bem observados, com seus correlatos familiares. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. No livro vocês certamente aprenderão muitas coisas sobre esse transexualismo, pois as observações que se encontram ali são absolutamente utilizáveis. [...] Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma desses casos (p. 30-31).

3) Identidade de gênero - homem e mulher:

Mas não tem importância [...] O importante é isto: a identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, "homem" e "mulher". É claro que a questão do que surge precocemente só se coloca a partir de que, na idade adulta, é próprio do destino dos seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres. Para compreender a ênfase depositada nessas coisas, nesse caso, é preciso nos darmos conta de que o que define o homem é sua relação com a mulher, e vice-versa. Nada nos permite abstrair essas definições do homem e da mulher da experiência falante completa, inclusive nas instituições em que elas se expressam, a saber, no casamento. (p. 30-31).

4) Semblante:

Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem. E isso que constitui a relação com a outra parte. E à luz disso, que constitui uma relação fundamental, que cabe interrogar tudo o que, no comportamento infantil, pode ser interpretado como orientando-se para esse parecer-homem. Desse parecer-homem, um dos correlates essenciais é dar sinal à menina de que se o é. Em síntese, vemo-nos imediatamente colocados na dimensão do semblante (p. 31)

5) Semblante - macho agente de exibição, fêmea sujeito da exibição do macho:

Na maioria das vezes, o macho é o agente da exibição, mas a fêmea não está ausente dela, já que é precisamente o sujeito atingido por essa exibição. É por haver exibição que se dá uma coisa chamada copulação, copulação esta que decerto é sexual em sua função, mas que encontra seu status de elemento particular de identidade (p. 31)

6) Comportamento sexual humano:

E certo que o comportamento sexual humano encontra facilmente uma referência na exibição, tal como definida no nível animal. E certo que o comportamento sexual humano consiste numa certa manutenção desse semblante animal. A única coisa que o diferencia dela é que esse semblante seja veiculado num discurso, e que é nesse nível de discurso, somente nesse nível de discurso, que ele é levado, permitam-me dizer, para algum efeito que não fosse semblante. Isso significa que, em vez de ter a refinada cortesia animal, sucede aos homens violar uma mulher, ou vice-versa (p. 31)

7) Identificação sexual:

A identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas em levar em conta que existem mulheres, para o menino, e existem homens, para a menina. P. 33

8) Verdade sobre um homem, saber quem é sua esposa:

para ter a verdade de um homem, seria bom saber quem é sua mulher. Refiro-me a sua esposa, no caso, por que não? (p. 34)

9) Lugar da mulher - para o homem:

Daí resulta que uma mulher só tem um testemunho de sua inserção na lei, daquilo que supre a relação, através do desejo do homem (p. 65)

Porventura e preciso indicar que a relação do homem com a mulher, no que é radicalmente falseada pela lei, a chamada lei sexual, mesmo assim deixa a desejar que para cada um haja sua cada uma, para responder a ela? Quando isso acontece, que que é que se diz? Não certamente, que era coisa natural, já que nesse aspecto, não há natureza, já que A mulher não existe. A existência dela é um sonho de mulher, e é o sonho que saiu Don Juan. Se houvesse um homem para quem A mulher existisse, seria uma maravilha, teríamos certeza de seu desejo. Isso é uma elucubração feminina. Para que um homem encontre sua mulher, que outra coisa existe senão a formulação romântica: era fata, estava escrito? (p. 69 70)

Agradeço à pessoa que me deu a página em que, em meus Escritos, está o que se passa com o desejo do homem, escrito ɸ(a). ɸ é o significante falo. Isso é dito para as pessoas que creem que o falo é a falta de significante [...] E o desejo da mulher se escreve Ⱥ(ϕ). (ϕ) é o falo ali onde se imagina que ele está, o pequeno pipi. (p. 78)

10) Carta roubada - Rainha cônjuge do Rei (a linguagem não dá conta da relação sexual que inexiste entre os seres de linguagem - bipartidos entre homens e mulheres:

Portanto, no momento de dizer que a linguagem não dá conta da relação sexual, perguntemo-nos precisamente em que ela não dá conta. Ela não dá conta porque, com a inscrição que é capaz de comentar, não consegue fazer com que essa inscrição seja o que defino como inscrição efetiva do que seria a relação sexual, na medida em que ela relacionaria os dois polos, os dois termos que se intitulariam homem e mulher, sendo esse homem e essa mulher sexos respectivamente especificados pelo masculino e pelo feminino ... em quem, em que? Num ser que fala, ou, dito de outra maneira, um ser que, habitando a linguagem, extrai dela um uso que é o da fala [...] Não é insignificante destacar a carta/letra numa certa relação da mulher com o que se inscreve da lei escrita no contexto em que a coisa se situa, pelo fato de ela ser, na condição de Rainha, a imagem da mulher como cônjuge do Rei (p. 123)

11) TodoHomem: significante-semblante-mito? A mulher não existe:

O homem é uma função fálica na qualidade de todo homem. Mas, como vocês sabem, há enormes dúvidas incidindo sobre o fato de que o todo homem existe. É isso que está em jogo - ele só pode sê-lo na qualidade de todohomem [touthomme], de um significante, nada mais.

Daí resulta, por exemplo, que não se pode fundar nada do status do homem, visto pela experiencia analítica, senão juntando artificialmente, miticamente, o todohomem com o suposto homem, o pai mítico, de Totem e tabu, isto é, aquele que é capaz de satisfazer o gozo de todas as mulheres [...] Mas, inversamente, existem as consequências, na posição da mulher, de que e somente a partir de ser uma mulher que ela pode instituir-se no que é inscritível por não sê-lo, isto e, por permanecer hiante em relação ao que acontece com a relação sexual (pp.132-133).

12) Homem - macho e a negação enquanto Verneinung:

Não existe um x tal que satisfaça a função pela qual se define a variável, por ser a função de ɸx. É a partir de ele não existir que se formula o que acontece com o homem, com o macho, quero dizer. Mas, justamente, aqui a negação tem apenas a chamada função da Verneinung, isto é, só se afirma por ter primeiro enunciado que existe algum homem, ao passo que é em relação a toda mulher que uma mulher se situa (p. 137)


comentários:

Homem - masculino - macho

Mulher - feminino - fêmea;

Essas duas cadeias significantes aparecem em série no corpo do Seminário 18. Lacan começa seu discurso afastando-se da biologia, mas não cede desses termos com tantas referências e sentidos comuns. Procura designar o Real do sexo, mas fala sobre comportamentos, sobre semblantes de macho e fêmea, sobre a relação entre transexualidade e psicose e sobre homem com sua esposa. Como continuar afirmando que ele não está pautado no binarismo cis?


[1] Lacan realiza uma mudança na leitura que fez inicialmente da PN: ~ⱻx.F para ⱻx~Fx. A negação escrita em ~ⱻx.F, segundo ele, seria foraclusiva, ou seja, ele havia escrito a impossibilidade de escrever o x da função e essa impossibilidade marcaria um modo de negação não passível de se reverter em afirmação. Mais tarde, com ⱻx~Fx, ele propõe algo mais próximo de uma negativa simples: o que está negado fora antes afirmado: Há (ou houve) um que não - o Pai - isso seria próprio à Verneinung. Não deixa de chamar a atenção que ele tenha escolhido um modo de negação simples, mais propício à neurose, em detrimento de um esquema foraclusivo, o que já apontaria para uma expulsão/ inclusão-negativa Real. 

XVI


olhares borbulhantes advindos das mais gloriosas bolhas burguesas alardeiam o fim do patriarcado ou ao menos seu declínio, alardes seguidos de alarmes e preocupações relativas ao que há de ser do mundo sem o poder absoluto da lei do pai (esse adulto cis branco ainda no comando)

bolhas furadas, verificamos números nada animadores:

estima-se que cerca de 3 milhões de meninas e mulheres sofrem, por ano, mutilação genital.

no brasil, por hora, cerca de 4 meninas são estupradas. elas, com até 13 anos.

a cada duas horas, uma mulher é assassinada no brasil. de cada três mulheres mortas, duas são negras.

a misoginia e o racismo sistêmico, unidos, solapam esperanças e desmentem os tais indícios de mudança. essa roda gigante ainda gira, ignorando quem ainda a ignora.

XV


"À neologia, emprego de palavras novas, chamava Cícero "verborum insolentia". Originalmente, insolentia designaria apenas: singularidade, coisa ou atitude desacostumada, insólita; mas, como a novidade sempre agride, daí sua evolução semântica, para: arrogância, atrevimento, atitude desaforada, petulância grosseira" (Guimarães Rosa, Terceiras Estórias, 2017, p. 94)

Que os ativismos, dentre os quais, os feminismos, possam ser cada vez mais insolentes - insolentia!

XIV

Que a clínica psicanalítica dê lugar às ambivalências e contradições humanas, isso é certo.

Que, na escuta, abre-se caminho para a análise das relações entre opressor e oprimido presentes em um só sujeito, também é sabido.

Que o opressor, figurado em um grande Outro sem furos, sem barra, possa encarnar-se e parecer, para cada sujeito singular, a única existência possível a se repetir como pulsão de destruição, isso também é largamente conhecido entre os analistas.

No entanto, verificar a cola que os sujeitos neuróticos realizam nas figuras (fantasmáticas ou não) que o oprimiram, não é a mesma coisa, e não autoriza os psicanalistas a cometerem a crueldade de divulgar (em nome de um suposto saber sobre os recônditos dos sujeitos) que as vítimas são ativas na violência que sofrem ou sofreram.

XXIII

8/04/2020 

Père version 

"A bela Ofélia flutuando sobre a água, com sua boca semiaberta e seu olhar perdido no espaço aberto, que se assemelha ao olhar de uma santa ou de uma amante, remete novamente para a proximidade de eros e morte. Em Shakespeare, Ofélia morre cantando igual as sereias, a amada de Hamlet, rodeada de uma chuva de flores. Sua morte é bela, uma morte por amor" (Byung-Chul-Han, Agonia de Eros, 2017, p. 9)
Byung-Chul-Han escreve sobre a proximidade entre Eros e Morte enfatizando a beleza de Ofélia, retratada por John Millais, flutuando morta, em paisagem bucólica. Boca semiaberta e olhar perdido, figuram algo entre a morta, a santa e o objeto de desejo.


"Copiosa multidão da nau Francesa

Corre a ver o espetáculo assombrada;
E ignorando a ocasião da estranha empresa,
Pasma da turba feminil, que nada:
Uma, que às mais precede em gentileza,
Não vinha menos bela, do que irada:
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau se apega ao leme."

Os versos são de José de Santa Rita Durão e narram a devastação pelo abandono e a morte por afogamento da índia Moema, que segue desesperada atrás de seu amor, o português Caramuru, que, por sua vez, prefere levar consigo outra india, Paraguaçu, deixando Moema para trás.
Victor Meirelles deu livre interpretação ao poema épico e a "retratou" em célebre tela (que leva o mesmo nome da desventurada personagem).
Na pintura, vemos o corpo de Moema nu, em primeiro plano, sobre a areia. A cena da tela viria após a narrativa do poema. Meirelles escolheu retratá-la após ter sido trazida pelas águas do mar. Estendida, morta, no litoral.
O que chama bastante atenção na imagem retratada por Meirelles é a sensualidade imposta ao corpo morto. Afinal, ela ali está morta ou (e?) é colocada como objeto erótico?! A ambivalência (ou a junção) entre a morte e o erotismo também ali se fez presente.
Podemos acrescentar às belas (mortas e sensuais) Ofélia e Moema uma série de exemplos retirados das artes ou mesmo da vida cotidiana.
A casa das belas adormecidas, obra magistral de Kawabata, sobremaneira nos pode servir de caso paradigmático dessa junção entre morte e erotização. Mais uma vez referente ao corpo feminino, igualmente guiado por um olhar (ou desejo) masculino heterossexual.
(A que podemos atribuir a equivocação significante, proposta por Lacan: père version - a um só tempo perversão e versão do pai).
No prefácio à edição norte-americana da obra, Yukio Mishima (que venerava Kawabata) pergunta-se se a impossibilidade do ter/ poder / possuir colocaria justamente erotismo e morte juntos, pergunta esta que aponta para a presença da vida na referida junção.
No caso das belas adormecidas, o corpo (quase) morto, em estado de torpor é o corpo jovem, feminino. Erotizado quando impecável (mais uma vez a santa) e disponibilizado conquanto sem consciência.

"A menina dorme o tempo inteiro e não percebe o que acontece do começo ao fim. Não sabe sequer com quem passou a noite... o senhor se sentirá à vontade com ela [...] o senhor verá que é ela é uma garota muito bonita"

A fala acima é da mulher da hospedaria. Ela está recebendo pela primeira vez Eguchi, protagonista do livro, que passa a frequentador do estabelecimento. Ele, um senhor de 67 anos.

Como destacado na orelha da edição brasileira da obra, de 2010, o deleite é o deleite da sexualidade do homem maduro (no livro, chamado de velho Eguchi) que não teria acesso a tais prazeres por conta própria.
O corpo das belas adormecidas é oferecido desacordado e seus detalhes formais são descritos sob a égide do olhar masculino (cis , hetero), como seriam descritos os corpos de bonecas:

"O corpo da menina, que servia de brinquedo aos velhotes [...] permanecia virgem". 

Apesar de haver no estabelecimento um contrato de não se molestar as belas, seus corpos-brinquedos, parecendo mortos, são iluminados eroticamente, ressaltando-se aspectos sensuais

"Mesmo sem falar nada e adormecida, a garota era plenamente sensual e apta a manter um diálogo com o velho apenas por meio do seu corpo"

O que essa redução da mulher ao absoluto objeto (morto) pode nos fazer pensar?

Qual gozo é posto diante desse objeto radical, sem condições de palavra? Outrossim, sem possibilidades de contornar sua imagem?

Que as artes, mesmo as mais louváveis e eruditas, transmitam-nos algo destas constantes águas que teimam em correr por nossos sub-solos, quiçá possamos usar seus desenhos, letras e alardes para pensarmos o campo sócio-político.

  • A mulher morta fertliza o campo da misoginia

Em uma sociedade heteropatriarcal, que de longa data coloca as mulheres como objetos (de troca, inclusive), o que pensar sobre o ponto em que a morta (boneca) é hiper-erotizada?
Corpo (quase ou semi) morto, objeto do olhar, das fotografias, das múltiplas narrativas (masculinas) que o descrevem, que procuram defini-lo. Corpo colonizável, dominado por senhores/ mestres em diferentes momentos de nossa longa história.
Como esse objeto (posse) de alguém, passa a abjeto, puramente descartável?
Perguntas igualmente podem advir embasadas no termo cunhado por Mbembe: necropolítica.
Há políticas de extermínio. Há políticas que ditam quais corpos devem viver e quais - que não importam (frase inspirada por Butler em seu: Corpos que importam), devem morrer.


  • Pandemia

Como pensar o que ocorre com o corpo das mulheres em relação a este ponto, a necropolítica? Em tempos de aumento vertiginoso de feminicídios, inclusive durante as quarentenas, como pensar essa condição de objeto absoluto de gozo? Objeto de posse. Objeto mirada de ódio.
Mais ainda, em termos da interseccionalidade (gênero, classe e raça - acrescentaríamos idade), o que pensar sobre o corpo da mulher negra, principalmente aquela que pertence às classes menos favorecidas?
Em tempos atuais, com uma pandemia que mata majoritariamente pessoas com mais de 60 anos, as mulheres negras, mais pobres e mais velhas ... parecem encarnar com facilidade esses objetos que a necropolítica costuma descartar. 

Horrores que costumam colocar as mulheres como objetos-mudos.
A mulher coisa, sem palavras, é uma mulher-moeda, que falece como abjeto desejável e favorece a perpetuação do pior da história.

XXII

Suponhamos um Titã Capitalista, um pronto-Deus que, num estalar de dedos, assassina metade da humanidade.

Lembremos, desde a ficção proposta (inspirada em outra ficção recentemente filmada) que a história se repete como farsa. 

A história, de longa duração, passou por momentos bastante distintos, é certo. Não obstante, podemos pensar sobre aquilo que vem se repetindo, não apenas como ficção, mas como fixão, nesses tempos tão estendidos.

Uma cronologia não exatamente linear, pode nos auxiliar. Torções temporais e recuperações de figuras criadas pela humanidade, quiçá nos sirvam de metáfora.

Pensemos na origem dos Deuses, na Teogonia.

Cronos, talvez o mais importante dos Titãs, havia decepado o pênis de seu pai, Urano, destronando-o (a pedido de sua mãe, Gaia, que não suportava mais as dores que sentia pelos gestos violentos de seu cruel companheiro-Céu).

Mais tarde, Cronos se tornou um déspota como o pai. Temendo perder o poder, passou a devorar seus filhos assim que nasciam. Zeus, um de seus filhos, fora o único que conseguira escapar. 

Quando cresceu, Zeus resolveu vingar-se do pai. Após uma grande batalha, conhecida como guerra de Titãs, Zeus venceu e tornou-se a divindade suprema dos deuses da Mitologia Grega.

Neste universo mitológico, não são poucas as referências ao extermínio, ao poder supremo que mata, estupra, devora.

No mundo controlado pelo masculino, não são poucas as histórias que giram em torno do filho que mata o pai que, não obstante, por sua vez o havia tentado exterminar.

O tempo correu e o capitalismo, desde seu princípio (sua origem foi profundamente violenta), abarcou esses elementos de nossa velha história.

No século 20, guerras mataram milhões, destruíram muito e enriqueceram em demasia alguns poucos. As tais potências-Titãs  ergueram-se em cima de misérias continentais.

Em pleno século 21, testemunhamos, com maior ou menor distância, políticas de extermínio,; migrações em massa; explosão de feminicídios e crimes envolvendo classe, raça e gênero; guerras virtuais; fome; doenças; esgotamento de recursos e uma vertiginosa exploração que parece intransponível.

Há pouco, estivemos sob a ameaça de uma terceira Guerra Mundial, - fantasma que nos ronda... Um Titã-devorador poderia apertar um botão e BUM! explodir o planeta e, com ele, a humanidade.

Entre 2019 e 2020 um vírus com forma de Coroa (reis já foram considerados deuses) está matando parte considerável da população  (majoritariamente os idosos) de alguns países.

Mesmo não sabendo a que ponto chegaremos, quantos mortos computaremos, em mais um episódio devastador de nossa repetitiva história, não é difícil pensar que no Brasil a boca devoradora de nosso insaciável sistema, comerá principalmente aqueles com menos recursos. 

Outrossim, sistema de saúde desmontado, não é difícil pensar que esse dedo, vestindo sua Coroa, ao estalar, virará um rifle com mira certa.

Não teremos leitos, equipamentos e UTIs o suficiente. Empresas já cogitam demissões em massa. Estima-se um montante de 15 milhões de novos desempregados pelo mundo. Pessoas confinadas, outras expostas por ausência de alternativas.

Pois bem, essas são algumas das novas roupagens do velho estado de exceção, que, sistematicamente nos leva ao mesmo, a cada giro seu, a cada 360 graus.

O proto-Deus capitalista, com sangue nas mãos (mais do que nos olhos) conhece bem o recurso dos campos de extermínio.

XXI
"Denominamos a força motriz da vida sexual de 'libido' [...] Não seria surpreendente se se verificasse ter cada sexualidade sua libido especial, apropriada para si, de forma que um tipo de libido perseguiria as finalidades de uma vida sexual masculina e um outro tipo, as finalidades de uma vida sexual feminina. Mas nada disso procede. Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo" (Freud, 1933/1996, p. 130) 

"Com a mudança para a feminilidade, o clitóris deve, total ou parcialmente, transferir sua sensibilidade, e ao mesmo tempo sua importância, para a vagina [...] ao passo que o homem, mais afortunado, só precisa continuar..." (Ibid., p. 119). 

Os trechos acima foram retirados da Conferência Introdutória XXXIII, de Sigmund Freud, publicada em 1933, acerca da 'Feminilidade'.

No mesmo texto em que Freud afirma que a libido não é exclusivamente masculina ou feminina, afirmação contundente que parece ter sido pouco lida pelos pós-freudianos, encontramos o pai da psicanálise realizando malabarismos para justificar a "inferioridade sexual original" (Ibid., p. 131) das mulheres. 

Sigamos: Deficiência genital, inferioridade, exclusividade na castração (os meninos - mais 'afortunados' - temem a castração ao notar a falta de pênis nas meninas, estas, sim, castradas), trocas de objetos de amor, identificação etc.

O clitóris, esse "mini-pipi desprezível", sob o ponto de vista freudiano, "deve" ceder lugar... ao 'feminino'?

Deve?

É bastante interessante notar que Freud, com a teoria da libido, havia chegado a um ponto fundamental sobre a sexualidade: a libido não distingue sexos, não é exclusivamente masculina (como dizem alguns pós-freudianos) ou exclusivamente feminina. 

Traduzindo libido por gozo - em sua articulação com as pulsões - podemos relembrar do que Lacan postulara posteriormente com o termo (a)sexual : um objeto de gozo/ pulsão que consubstancialmente é sexual (objeto a, sexual) e não diz sobre a pequena diferença entre os sexos. O que nos faria pensar em uma ordem de sexualidade própria ao ser falante.

Poderíamos pensar, outrossim, em algo como: o que cada um faz com sua bissexualidade inata (comportando como possibilidade a própria bissexualidade enquanto orientação sexual) é fruto de vicissitudades bastante singulares. O que cada ser falante faz com o terreno libidinal/ gozo, seus objetos e significantes, diz respeito a histórias, ficções e fixões as mais diversas. Incorporando o Real a essa conversa: o que cada um fez e/ ou faz com o oco que se traduz por um 'não há' do complemento sexual com o campo do Outro, isso é tão múltiplo como o são os sujeitos.

Não obstante o avanço pontuado no referido texto e os desdobramentos que dele se fazem possíveis, Freud parecia fixado na ideia da superioridade do elemento (anatômico) sexual masculino. 


- As meninas são castradas, os meninos não o são!


Por que insistir tanto nesta tal superioridade masculina?

Acompanhemos, um pouco, avanços da ciência, quanto ao tema que tanto povoou a imaginação freudiana: 

O artigo "Últimas notícias sobre o clitóris", de Ana Alfageme, publicado no El País, em 29 de fevereiro de 2020, começa assim: 

"Grande desconhecido. Ignorado. Inclusive mutilado. O único órgão humano destinado exclusivamente ao prazer simboliza a sexualidade das mulheres" 

O artigo continua: 

"Alguns milímetros rosados e sensíveis que todos acreditam que acabam por ali. Inclusive os dicionários [...] essa espécie de pirâmide se incha com a excitação e mede cerca de 10 centímetros" 

Com muito mais terminações nervosas que as da glande do pênis, o clitóris é um órgão (o único órgão humano) com função exclusiva de prazer. 

A cirurgiã e urologista australiana que primeiro o descreveu, Helen O'Connell, ressaltou a ausência e o desconhecimento em relação ao órgão nos livros de anatomia. Os estudantes de medicina não tinham acesso a qualquer descrição mais cuidadosa ou precisa do órgão até 1998. A cientista afirmou, entretanto, que as ausências e/ou os erros em relação ao clitóris não a surpreenderam, pois fazem parte, compõem nossa herança cultural. 

Órgão negado, menosprezado e, até os dias atuais, mutilado.

Por que o cruel controle da sexualidade feminina passa por mutilação? Por que parte da humanidade precisa impor poder por meio da extirpação de um órgão? - (À propósito: isso não nos serve de triste prova de que a castração não diz respeito à ausência de pênis? A mutilação do órgão sexual feminino - a perda brutal desse pedaço de corpo - não ressignificaria as diferenciações que Freud colocou quanto à presença ou a ausência de pênis em termos de castração?)


Com menor violência física, mas com uma enorme violência simbólica, por que o órgão de prazer feminino não esteve presente nos livros de anatomia até 1998, com suas dimensões e poderio?

Por que continuamos desconhecendo-o? Voltando à psicanálise: até quando continuaremos a repetir ignorâncias?

Uma delas: como sugeriu Freud, para que uma mulher pudesse lançar-se no terreno da feminilidade, ela deveria transferir sua sensibilidade... 

Para além (ou aquém) do desconhecimento, o que mais entraria como razão da manutenção desse estado de coisas?

Como psicanalistas, que tanto falamos sobre Édipo, poderíamos relembrar a figura do cego/ visionário Tirésias? (Lembremos que o sábio de Tebas declarou que seria a mulher, em uma comparação com o homem, quem mais teria prazer - de dez partes, as mulheres ficariam com 9 partes de prazer e os homens com 1).

Pois bem, até quando os psicanalistas continuarão repetindo mantras ultrapassados como "inveja do pênis"? - O que seria superado, segundo Freud, com a transferência de sensibilidade do clitóris para a vagina, pois provaria a superação do 'complexo de masculinidade' relativo aos prazeres envolvidos com o clitóris - para Freud - um pequeno-e-minúsculo-pipi.

Por que tentamos formatar o prazer feminino com tantos padrões? 


O que nossa herança cultural, nossos longos anos de história revelam sobre esse assunto?

Em seu seminário 21, ainda inédito, Lacan pontuara um passo possível a esse entendimento, qual seja: 

"acrescentar ao desconhecimento, a denegação" (Lacan, aula de 18 de dezembro de 1973).
De fato, ao desconhecimento - ou ao não querer saber sobre a sexualidade feminina, somou-se a negação como recalque. Mais ou menos brutais, as retiradas de campo e as tentativas de menosprezar a sexualidade e o desejo femininas reacendem um sinal de alerta e abrem a pergunta: até quando?

XX
O número de feminicídios aumentou mais uma vez no Brasil. A notícia, já veiculada, aparece no noticiário do G1, neste 5 de março de 2020:
"O Brasil teve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018, aponta levantamento feito pelo G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal. São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres - uma a cada 7 horas, em média.A alta acontece na contramão do número de assassinatos no Brasil em 2019, o menor da série histórica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública".
Pois bem, enquanto o governo comemora a "queda" da "criminalidade", o número de mulheres mortas pelo fato de serem mulheres, aumenta e parece não causar espécie ou preocupação por parte do mesmo governo. Ao contrário, tais dados alarmantes parecem harmonizar-se com o que é posto pelo discurso misógino daqueles que assumiram o poder.
O puro ódio pelas mulheres pode ser dito de várias formas. Vociferações explícitas; referências a atos criminosos - como o estupro; objetificação; hiper-sexualização; menosprezo pelas capacidades profissionais; desautorizações etc
Lamentavelmente, encontramos cada um desses ditos - expressão de puro ódio - em falas do presidente de ultra-direita que governa esse país desde 2019:
"Ela não merece (ser estuprada) porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque não merece." (em referência à deputada Maria do Rosário)
"Todo mundo ia atrás de galinha no galinheiro na minha cidade. Alguns mais malandros, iam atrás da bezerrinha, da jumentinha. Era comum. Não tinha mulher como tem hoje."
"Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade."
"Ela queria um furo. Ela queria dar o furo" (em referência à jornalista Patrícia Campos Mello)
Quando alguém alçado à lugar de autoridade profere frases que retiram quaisquer qualidades das mulheres e as reificam completamente, isso ecoa e ressoa no mais arraigado machismo de nossa história e de nossa estrutura sócio-cultural: mulheres são matéria de satisfação sexual dos homens (esses seres que não controlam seus "instintos"), são suas propriedades/ coisas, são desprovidas de capacidade racional e de trabalho, devem servir seus "amos", cuidar do lar etc.
Esse lugar - objeto - oferecido às mulheres, como única alternativa diante da força bruta, é um lugar dado por quem odeia. 
É um lugar dado por quem acredita que pode retirá-lo a qualquer tempo.
É um lugar dado por quem não concebe o outro como sujeito. Afinal, a mulher-propriedade, não é sujeito , é coisa.
O homem (cis) adulto branco no comando está autorizando atrocidades.

XIX

Quando vemos o declínio do laço social acompanhado da retirada dos corpos das cenas, verificamos um campo puramente imaginário que, paradoxalmente, dá-se mesmo sem corpo.

Para haver corpo, faz-se necessário, além da imagem, significantes que o dizem e um real que se realiza por ser furo. Aliás, é mesmo em volta dos furos que o corpo se faz corpo pulsante.

Corpos sem furos, esses das fotografias, e com baixíssima capacidade simbólica (mais propriamente de produzir, ler e abrir metáforas), são a própria negação do corpo.

Vivemos , desta feita, um momento de crença na imagem pela imagem, da imagem sem corpo. Narcisos sem matéria.

O individuo parece ficar "isento" do Real e do consequente não-todo. A castração, simbólica, outrossim disfarça-se em uma contundente negação de si.

Em psicanálise, dizemos que o imaginário é corpo, não reduzido à imagem do corpo, mas comportando-a.

O que acontece, então, quando se desvincula a imagem do corpo, não no sentido de reduções reais ou fragmentações, mas, sim, da construção de uma suposta imagem total, que prescinde do corpo?

Como pensar um imaginário preponderante, reduzido radicalmente à pura imagem, mas desvinculado do corpo?

Parece fácil pensar que em um cenário em que as imagens aparecem sem corpo, exclui-se a vergonha. Só há vergonha quando há corpo. 

Não se trata, é claro, de um elogio à vergonha, mas de sublinhar que a ausência desta pode apontar para uma ausência de corpo, afinal, entre corpo e castração, algo da vergonha surge como sinal. Em um estado sem vergonha, o ridículo não existe. 

O ódio, em seu desdém pelo simbólico - parece outrossim bem vincular-se à falta de pudor e, assim, manifestar-se abertamente. Aos berros, seres sem corpos destroem imagens por imagens. 

Não estaríamos vivendo uma impossibilidade de enodamento pela ausência de corpo?

Talvez seja essa a prova de que, para o corpo ser imaginário seja preciso o simbólico que o diz e o furo real. Sem essas dimensões corporais, o imaginário-imagem evidencia-se como não-corpo.

A imagem pela imagem faz de alguns que pretendem veiculá-la a todo custo, em troca de seguidores e/ ou cifras, seres capazes de reduzir suas capacidades intelectuais e cognitivas até a quase absoluta paralisia imaginária.

Explicações com legendas, mastigadinhas... e metáforas relegadas ao velho, ao antigo. Livros, meros alfarrábios. Imagens, imagens, imagens...

Por que cultivar a vida inteligente se a fama não a torna necessária?

O que pensar sobre esses Narcisos sem corpos? Há espelho na web? Como são?

A realidade (fantasmática, como o são as realidades) que se criou no mundo virtual - sem corpos - exigiria, então, uma revisão dos lugares para os registros propostos pela psicanálise.

Um imaginário desenodado e sem corpo, seria um imaginário supra-narcísico? Como se os Narcisos atuais tivessem êxito em abrir mão da materialidade corporal que se havia formado no e através do espelho. Como se os novos espelhos ganhassem vida própria e prescindissem da matéria corporal que primeiro refletiram.

Retirados os corpos real e simbólico, o imaginário da fama/ Web/ mídia, padece de uma aparência de não claudicação. O ódio expressa-se livremente e a inteligência metafórica aprisiona-se em algumas pequenas cabeças e em páginas de livros que ainda cismam em pensar.

XVIII

Quando o senso comum vira consenso

Quando ouvimos ou lemos psicanalistas pregando itens para a felicidade ou apregoando frases tais como: assumir o corpo (como equivalente a mostrar os supostos dotes-imagem), sai-se mais bonitx de uma análise etc

Quando ouvimos analisantes ou candidatos a analisantes apresentando-se por um imaginário inflado, compondo os mesmos motes das redes sociais, com frases caricatas e sem a menor crítica: porque quem tem que se achar bonitx é, em primeiro lugar, eu mesmx

Quando o discurso corrente revela-se a cada dia mais estúpido e essa estupidez parece servir ainda mais à cegueira necessária para mantermo-nos fiéis ao status quo, a dedicarmo-nos, furos tapados (principalmente os ouvidos), à obediência maciça aos ditames do pai

Quando o futuro se estende a um tempo em que a mão não alcança, o presente fica opaco e obstaculizado e o passado restrito ao não sabido

Quando o consenso faz multidão,

Resta-nos ceder à mídia, ao consumo, à redução da estética ao belo-imaginário de um corpo pouco flexível - sem poros?

O que será do corpo psicanalítico após tantas concessões ?

XVII

"A relação entre as cores, as nuvens e a luz é tal que, sem nenhuma tensão ou dinâmica, a imagem quase nunca dá a impressão de um estado definitivamente fixado, mas sim de uma Abertura [...] Isso porque a natureza não coincide consigo mesma por uma coincidência e presença inertes, mas porque, ausente de si mesma, ela está sempre a caminho por vir. Esta não coincidência da natureza consigo mesma constitui a condição de sua intimidade com o olhar exilado, mas fervoroso, que vem a seu encontro [...] Walter Benjamin chamou isso de "aura": "aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja", aquilo que força o "levantar o olhar". Contudo, Benjamin pensava que a fotografia destruísse a "aura", por obra de sua reprodutibilidade infinita, em contraste com a "unicidade" necessária à manifestação da aura. Mas sobretudo porque a fotografia traz todas as coisas para a proximidade, coloca-as à disposição, entrega-as ao olhar, em vez de forçar o "levantar o olhar". A fotografia impede a contemplação, ao reduzir todo objeto à finitude de sua mera singularidade, e, por esse efeito mortífero, transforma-o não em sua própria possibilidade ainda não advinda, mas em traço de si mesmo" (O real, cara e coroa, Youssef Ishaghpour, In. Kiarostami, A., 2013, pp. 96-97)

Ishaghpour comenta, no trecho acima, a fotografia/ paisagem de Abbas Kiarostami. Em relação à crítica assertiva de Benjamin, prova que o que fez o fotografo/ cineasta pode bem ser lido como exceção. Seria justamente o "inteiramente outro" o que se realiza na fotografia de Kiarostami:

"Sua beleza, a aparição de seu enigma, o visível de seu invisível aparecem para o homem como sua própria negação. Nela, ele vê sua própria ausência: a natureza, com o indizível de seu mistério, tendo existido antes dele e lhe sobrevivendo, dispensa-o perfeitamente [...] Ver a natureza e a paisagem exige a distância do olhar, o exílio. A contemplação da paisagem não tem nada de ingênuo e imediato" (Ibid., pp.90-91)

Interessante a dimensão do olhar que está sendo suscitada nos trechos acima. Abertura (de conjunto) para que possamos afirmar um artístico e a sustentação de uma negatividade que não se reverta em seu oposto. Como dizer que uma obra estética porta consigo o inteiramente outro e o exílio de si? O enigma presente descongela a aparição, assim como a exibição eternizada sem traços de ausência. A arte parece precisar forçar (no sentido matemático) o olhar para um "levantar o olhar".

Levantar o olhar traz uma dimensão histórica. Pode-se olhar para traz, para os traços esquecidos de uma narrativa. Para o que deixou de ser dito e ouvido. Para o que nunca foi visto.

Pode-se contemplar, ao levantar o olhar. Há uma dimensão encantada no que o mistério pode transmitir de único e transbordante.

Pode-se colocar em levante com o levantar o olhar. O inteiramente outro, enquanto abertura, não escreveu ainda o que virá.

Pode-se olhar além (e fora) do espelho ao levantar o olhar e não ficar, portanto, aprisionado às vestes simples das imagens.

Pode-se, sobremaneira, ousar ir ao campo do Outro ao levantar o olhar, em um movimento contra-narcísico que rompe os limites do eu.

Entretanto,

A presença maciça do olhar entregue, com legendas explicativas, consumível, de fácil digestão, traz a cerca tacanha e o cerne do exclusivamente familiar para bem perto. O brilho feérico dos narcisos não levanta o olhar. Solidifica-o e o mantém à serviço dos ditames dos gostos e das imposições caricatas.

Contemplar o óbvio é algo extremamente presente, o que, a um só tempo desencanta e nos expõe à barbárie.

A multiplicação de fotos (imagens) enquanto pura presença e exaltação caricata de si retira quaisquer possibilidades do inteiramente outro...

Fardo de uma imagética sem corpo e, por isso, sem presença, o olhar aprisionado apenas reproduz o mesmo, o idêntico. A entrada da arte, tantas vezes pode forçar a presença do vazio enigmático, que descompleta esses conjuntos autoritários e deserotizados (sem Eros).

Entre tanto... arte... 

XVI

"Ora, o que vemos é que a própria diferença é uma questão. É claro que a fala nos homens e nas mulheres é diferente; é diferente pelo estilo, pelo tom, pelo conteúdo. Fala-se como homem ou como mulher, e se fala disso porque existem significantes. No entanto, não se sabe o que é. Freud já insistia muito no fato de que não havia representação de masculino-feminino no inconsciente. Certamente vemos funcionar, ora a recusa a ser homem ou mulher, ora, mais frequentemente, a aspiração a ser verdadeiramente homem ou a ser uma mulher de verdade [...] Nós os dizemos diferentes, e o fazemos a partir da pequena diferença anatômica. Mas, quando os dizemos diferentes, não apontamos apenas uma diferença na forma do corpo, implicamos que eles são diferentes como sujeitos. Logo, é por ser um significante que o falo os diferencia. Para apreender isso, basta fazermos uma comparação com outras diferenças anatômicas: por exemplo, ter olhos azuis ou pretos. Dessa diferença do ter não se conclui por uma diferença do ser. É verdade que é isso que o racismo tenta fazer, em particular o ariano: reproduzir, a partir de um traço anatômico, uma diferença tão radical quanto a dos sexos, isto é, elevar um outro traço anatômico, como o tipo ariano ou mediterrâneo, à função de significante [...] Portanto, é por já estar presente o significante fálico que os dizemos diferentes, e, por os dizermos diferentes, eles passam a se relacionar diferentemente com a questão da diferença." (Soler, 2006, pp. 224-225)

Após essas colocações bastante contundentes, Soler procura insistir que não se trata de juízo de atribuição:

"Insisto em tornar sensível o esforço de Lacan para formular uma diferença que não decorre do juízo de atribuição, isto é, que não funciona de acordo com a forma - os homens são isso e as mulheres são aquilo -, forma esta em que se manifestam todas as ideologias sobre a questão, e que sempre supõe, por trás da atribuição, a referência a uma substância." (Ibid.)

Pensemos sobre as afirmações freudianas sobre o fato da libido não ser nem feminina nem masculina, bem como aquela, citada por Soler, segundo a qual não há representação masculino-feminino no inconsciente. A pequena diferença, anatômica, há tempos vem intrigando a humanidade e não menos os psicanalistas.

Da história de nossa civilização ocidental, podemos recolher, entre postulados religiosos (comecemos pelos mitos, aterrissemos em Adão e Eva), dizeres filosóficos (lembremos de Aristóteles) e depois "saberes" médico-jurídicos ("científicos"), a busca por qualificar homens e mulheres, atribuindo-lhes predicações as mais variáveis. Estas, não obstante, quase sempre redundaram em juízos menos valorosos para as mulheres.

Os racismos e as misoginias dos longos tempos da história acostumaram e nos fizeram acostumar com dizeres que pura e simplesmente estabeleceram hierarquias rígidas e baseadas em explícitos pontos ideológicos (de sustentação de poder e de comando). Mulheres domesticadas, fora do laço social (seja porque "do lar" ou por assumirem diversos trabalhos pouco reconhecidos), porque mais "frágeis", "pouco racionais", com um profundo e arraigado "instinto materno" etc.

Soler está avisada que qualquer atribuição predicativa para homens e mulheres é ideológica. Ela insiste, entretanto, na diferença. Afirma não se tratar da forma (do corpo). Ela a coloca (a diferença) em termos do significante. O falo, como significante privilegiado, diferenciá-los-ia (fala-se como homem ou como mulher).

Haveria uma inscrição inconsciente que acompanharia a anatomia? Ainda poderíamos pontuar, é claro, que os dizeres sobre a inferioridade - ou alteridade feminina, foram e são feitos com significantes.

As atribuições ideológicas tais como as do racismo ariano estiveram presentes nos mais escabrosos atos (e falas) do nazismo (e ainda proliferam nas "estéticas" e "gostos" atuais). Os juízos históricos sobre o lugar mínimo possibilitado às mulheres sobremodo se pautaram e se pautam nos sustentáculos das diferenças. A mulher-menos, puro corpo, muda, hétera, enigmática etc é dita por dizeres de longa duração. Por que forçar argumentações dessa ordem? Por que dizer, na comparação entre diferenças anatômicas, que uma diferença pôde ser utilizada por discursos racistas e a outra diferença é verdadeira, não ideológica e não pautada em misoginias afins?

Estamos às voltas com a crítica aos dizeres psicanalíticos sobre homens e mulheres. De Freud a Lacan, nosso binarismo e a cama armada para uma heterossexualidade compulsória (já introduzindo Butler), faz-nos cair na mesma armadilha dos racismos. Não temos como afirmar que se fala como homem ou como mulher, muito menos que homens e mulheres são diferentes como sujeitos (o sujeito não é o sujeito do inconsciente?) sem redundarmos nas mais caricatas hierarquias sexuais. As atribuições sobre possíveis diferenças exterminam as singularidades e forçam homens e mulheres a serem "verdadeiros" imitadores do que justamente não se sabe o que é... Isso é assumir uma posição política - binária, como fixão de gênero e hierarquias comuns.

Vejamos um trecho de Butler:

"Essa tarefa exigiu uma genealogia crítica da naturalização do sexo e dos corpos em geral [...] A partir de uma análise política da heterossexualidade compulsória, tornou-se necessário questionar a construção do sexo como binário, como um binário hierárquico [...] Não há ontologia de gênero sobre a qual podemos construir uma política [...] A desconstrução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada [...] Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruínas da antiga. As configurações culturais do sexo e do gênero poderiam então proliferar ou, melhor dizendo, sua proliferação atual poderia então tornar-se articulável nos discursos que criam a vida cultural inteligível, confundindo o próprio binarismo do sexo e denunciando sua não inaturalidade fundamental. Que outras estratégias locais para combater o "inatural" podem levar à desnaturalização do gênero como tal?" (Butler, 1990, p.256)

Como podemos pensar, em psicanálise, em uma política que nos afaste da naturalização do gênero (mesmo que travestida de estrutura, ou de significante) e nos permita a crítica ao binarismo hierárquico?

Nas formulações iniciais de Lacan (durante os anos 50), encontramos uma psicanálise atravessada por uma ordem inteiramente fálica (simbólica), muito embora paradoxalmente sustentada no registro imaginário - no que referia aos ditos corpos sexuados - o que girava entre o "ter" e o "ser" o falo. A castração imaginária (mulher "castrada") guiava uma clínica que pretendia colocar as mulheres em lugares marcados por diversos assujeitamentos. A mulher não tem o falo, conforme Freud assinalara, ela carregaria, por isso, uma "inferioridade sexual original" (Freud, 1933/1996, p. 131). A suposta deficiência genital das mulheres marcaria sua exclusividade na castração (os meninos temem a castração ao notar a falta de pênis nas meninas, estas, sim, castradas).

A castração imaginária (ausência do falo) de fato não parece suficiente para dizer sobre a castração simbólica (que inaugura o desejo), própria à incorporação significante (o que não conhece gênero) e mesmo ao radical oco real, que diz sobre a não relação sexual (ou seja, sobre o laço que não faz um - seja ele tecido por quaisquer corpos). A questão é que não é a mulher que é castrada[1], é o sujeito barrado (seja este do gênero que for) que é castrado. Assim, a castração, simbólica, não diz respeito ao ter ou não o falo-pênis.

É fundamental o entendimento da castração simbólica, pois a colagem falo-pênis rendeu-nos muitos danos clínicos. Entre o ser e o ter o falo (imaginário), as mulheres foram/são muitas vezes vistas imediatamente como histéricas (pelo fato de serem mulheres cis), e os homens, como obsessivos. Outro efeito desta colagem é o corrente discurso segundo o qual o perverso nega a ausência de pênis na mulher, logo, travestis são perversas, ou práticas com travestis são perversão. Nessa leitura preconceituosa, a travesti seria o exemplo da negação da ausência de pênis na mulher, já que seria uma mulher com pênis. As orientações clinicas rápidas, que não consideram o sujeito, com base nesta relação falo-pênis, podem promover também outros essencialismos como: as transexuais mulheres são psicóticas ("empuxo à mulher"); mulheres homossexuais são psicóticas (querem a mãe); casais homoafetivos, quando não chamados de perversos, recebem a contraindicação para adotar crianças, porque o infans ficará sem uma das figuras do casal parental heterossexual. O "declínio" do patriarcado é lido como um grande risco para a humanidade, com ponderações negativas sobre os efeitos de 'feminização' do mundo, riscos de psicoses generalizadas etc.

Vejamos, como exemplo, um comentário de Lacan sobre a transexual:

Chama-se Sex and Gender [Sexo e gênero], de um certo Stoller. E muito interessante de ler, primeiro porque desemboca num assunto importante - o dos transexuais, com um certo número de casos muito bem observados, com seus correlatos familiares. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. No livro vocês certamente aprenderão muitas coisas sobre esse transexualismo, pois as observações que se encontram ali são absolutamente utilizáveis. [...] Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma desses casos (LACAN, 2009, p. 30-31, grifos nossos).

A relação direta entre o "transexualismo" e a psicose, colocada assim no seminário De um discurso que não fosse do semblante, aponta para a faceta cis do discurso psicanalítico que, ao atrelar o falo ao pênis, acaba por construir uma teoria de gênero que pretende afastar-se da biologia, mas, inexoravelmente, reafirma a anatomia. "O importante é isto: a identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, 'homem' e 'mulher'" (LACAN, 2009, p. 30, grifo nosso).

Nossas tentativas de fazer homens e mulheres existirem, tanto sob o ponto de vista imaginário (ter ou não ter o falo-pênis imaginário) como por suas vias simbólicas (fala-se como homem ou como mulher - porque existe um significante que acompanha a diferença anatômica) e reais (a mulher não-toda enquanto o enigma real) apenas mantêm binarismo, heterossexualidade compulsória e lugares desprovidos para as mulheres (e/ ou afins do lugar Outro).

Aliás, ao colocar a mulher (barrada, por ser não-toda) enquanto enigma exclusivo do sexo, Lacan parece livrar os homens do real. E, mais ainda, parece tornar Real e "mulher" equivalentes domesticáveis.

Muito embora tenha havido um grande passo entre as concepções do ter e ser o falo e aquelas das fórmulas da sexuação, penso que a reificação de gênero entre uma e outra permaneceu operante. Entretanto, no início dos anos 60, Lacan concebeu sua invenção teórico-clínica, o objeto a e o articulou, dentre outros, à pulsão. Mais tarde, ao avançar sobre sua teorização, pensando o objeto a enquanto motor pulsional da sexualidade, afirmou-o (a)sexual. E ele o seria justamente por ser o a sexuado (da pulsão, do desejo, do erotismo inconsciente) e, ao mesmo tempo é assexual, por ser insuficiente para dizer a diferença sexual.

Sublinhando novamente a responsabilidade sexual do psicanalista e, agora, no que tange a pulsão como um eco no corpo (de que há um dizer), como pensar, clinicamente, as singularidades corporais e de gozo que nos dizem desses ecos?!... A pulsão, enquanto eco traz voz ao sujeito do desejo e à enunciação do erotismo inconsciente.

Quiçá essa notação - (a)sexual - possa escrever a impossibilidade de dizer a diferença sexual quanto ao desejo, à libido (e ao gozo) e ao enigma. Performatividades? Semblantes? Que deixem ser...


[1] Se a castração imaginária fosse verdadeira ou suficiente, talvez não se fizessem presentes tantos rituais de domínio, de diversas ordens, que envolvem mutilações femininas. Ou seja, se a mulher é castrada, cortar o quê? Costurar o quê?

XV

Há diversas formas de calar o que há de voz nos sujeitos. Há diversos modos de colocar o outro como objeto, como um passo para o dejeto. Uma confusão recorrente é a transformação do objeto causa de desejo em objeto masoquista (puro dejeto) Habitualmente encarnamos a causa de desejo no corpo feminino - Simone de Beauvoir bem colocou que só a mulher é corpo (parcializado), enquanto o homem é Sujeito, Absoluto.

Muito embora essa confusão necessite ser desfeita, o que ela transmite parece consonante ao que milenarmente têm-se feito de sua figura amordaçada. Entre a anulação da voz e a extrema exposição de seus corpos, a mulher causa de desejo e a mulher masoquista não estão ideologicamente tão distantes uma da outra.

Aliás, se a mulher é essa causa - alteridade, falada por sujeitos, homens, como pensá-la enquanto voz?

O ódio de gênero está pautado na construção da sexualidade em campos de poder (baseada em termos heterossexuais e fálicos). A mulher é falada (e difamada) e caricaturada. Não cansamos de assistir propagações de substâncias episódicas do feminino: a mãe, a puta, a santa, a bela, a bruxa etc. E não cansamos de dizer, tal quais ventríloquos, que essas são espécies de arquétipos do feminino, esse "grande mistério". Quem borda essas vestes? Quais discursos a sustentam? Por que entre os heróis da Guerra e as Deusas do Amor e da Beleza há um abismo mantido e mentido?

Não seria um modo de calar o sujeito-"mulher", colocar o desejo como prerrogativa heterossexual masculina (como alertou há tempos Butler)?

Se o desejo é masculino (aqui, um adendo: Freud, em seu último texto sobre a Feminilidade, afirmou que a libido não é masculina nem feminina - mesmo assim seguimos dizendo que é masculina), restam às mulheres lugares de causa e do fazer desejar. Como nos contos de fada, o que uma mulher pode desejar é um homem que a deseje (e, então, filhos).

Se a causa é feminina, o fazer-desejar prerrogativa feminina, não seria esse lugar ponto que detém e mantém a Vontade de Gozo social? Trocando em miúdos: tratar a causa de desejo em termos exclusivamente femininos, não seria deixar a mulher acorrentada e imobilizada nos jogos pervertidos do laço social?

A expressão "causa de desejo" é algo que desliza entre o vazio (do objeto) e a falta (correlata do desejo). Algo que implica enigma e castração. Refere-se ao real e ao sujeito barrado (o sujeito do inconsciente). Enquanto campo pulsional, faz do corpo, pedaços (de gozo). Por sua via significante-letra, remete-nos à ordem da cifra. Em seu terreno ético-político, aponta-nos o não-todo (o não absoluto). Como ponto lógico e poético, força a pertença do conjunto vazio que, por ser mistério indiscernível, permite invenções. Deste feita, dar a essa expressão cunho exclusivo de gênero (dizê-la mulher) não seria uma tentativa de domesticar o Real? Ou, por assim dizer, reduzi-lo à dimensão Imaginária? 

XIV

"Tu és aquela que não é"

No magnífico filme Nostalgia, de Andrei Tarkovski (1983), assistimos Domenico, um velho louco (e por isso mesmo mais próximo da verdade) dizer a Eugénia (personagem diretamente associada à Santa Catarina, assim como a esposa do protagonista, Maria): Deus disse à Santa - tu és aquela que não é. E sobre ele mesmo (Deus) - Eu sou aquele que é.

Santa Catarina de Siena, que dá nome ao hotel onde se passa boa parte do filme, é, ao lado de São Francisco de Assis, padroeira da Itália.

Ela deixou legados importantes. Sua obra O Diálogo da Providência Divina (1377), segundo alguns de seus contemporâneos, foi ditada a alguns escribas durante os seus êxtases religiosos.

Uma das mais importantes místicas da Igreja Católica, tal como Santa Teresa d'Ávila, desde muito cedo se deixou inundar pelo êxtase da devoção a Deus.

Há semelhanças entre as descrições/ testemunhos das duas Santas. Para alguns, Santa Catarina predisse alguns enunciados de Santa Teresa, nascida dois séculos mais tarde.

Vejamos um trecho do êxtase de Santa Teresa, inspiração para a obra de Bernini, depois de Santa Catarina:

Santa Teresa, em sua autobiografia, Livro da Vida:

"Eu vi um anjo perto de mim [...] Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro. Na ponta julguei haver um pouco de fogo. Parecia algumas vezes metê-lo pelo meu coração adentro, de modo que chegava às entranhas. Ao tirá-lo, parecia que as levava consigo, deixando-me em brasa, com um grande amor em Deus. A dor era tão grande, que me fazia dar gemidos. Essa dor imensa produz tão excessiva suavidade que não se deseja seu fim, nem a alma se contenta com menos do que com Deus [...] É um trato de amor tão suave entre minha alma e Deus, que suplico à sua bondade que o dê a provar a quem pensar que minto." (Santa Teresa, 1562/ 1983, p. 236)

Sobre Santa Catarina:

"No ano de 1367, no dia da ceia de Carnaval, véspera da Quarta-Feira de Cinzas, Nosso Senhor apareceu à Santa no recôndito de sua cela, desposando-a em núpcias místicas. Após colocar-lhe como sinal um anel de ouro no dedo, ordenou-lhe que fosse juntar-se à família na ceia, pois queria fazer dela um apóstolo ."(https://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/santa-catarina-de-siena-143650)

A própria Santa, no que ditou para ser escrito:

"A amizade íntima consiste nisto: que são dois corpos, mas uma só alma no amor, pois o amor transforma (o amante) na coisa amada. E quando (os amigos) se tornam uma só alma, entre eles já não haverá segredo. Por isso dizia meu Filho: 'Viverei e moraremos juntos." (SANTA CATARINA DE SENA. O Diálogo. Paulus. 1984. p. 132)

Jacques Lacan, quando estava teorizando o Não-Todo das Fórmulas da Sexuação, enfatizou o gozo místico como o gozo Outro (Não-Todo fálico). O Gozo da mulher barrada, não-toda.

Sobre Santa Teresa, disse:

"Basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida. E do que é que ela goza? É claro que o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele [...] essas jaculações místicas [...]." (LACAN, 1972-73/ 1985, p.103).

Logo depois:

"Eu creio no gozo da mulher [...] esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele que nos coloca na via da ex-sistência? E por que não interpretar uma face do Outro, a face de Deus, como suportada pelo Gozo feminino?" (Ibid.)

Lacan perguntava-se sobre o gozo da Mulher, não-toda:

"Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimente - isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a todas [...] Considerações amiudadas sobre o gozo clitoridiano e sobre o gozo que chamam como podem, o outro justamente, esse que estou a ponto de fazer vocês abordarem pela via lógica [...] O que dá alguma chance ao que avanço, isto é, que, desse gozo, a mulher nada sabe, é que há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos - eu falava da última vez das psicanalistas mulheres - que tentem nos dizer, pois bem, nem uma palavra! Então a gente o chama como pode, esse gozo, vaginal, fala-se do polo posterior do bico do útero e outras babaquices, é o caso de dizer. Se simplesmente ela o experimentava, ela não sabia nada dele..." (Ibid., pp. 100-101)

Esses trechos dão a dimensão do quão misterioso era o gozo da mulher para um homem todo-fálico. Esse gozo do qual supostamente as mulheres não falavam nada, Lacan o encontrou nos relatos de santas místicas. De Hadewijch (considerada uma mística do amor, também poetisa, do século XIII) à Santa Teresa (e agora incluímos Santa Catarina), essas mulheres capazes de uma devoção incondicional e total a Deus, que podiam gozar (um gozo permitido) dessa condição, porque Santa/ beata/ mística,

Se (supostamente) as psicanalistas mulheres, próximas a Lacan, nada puderam dizer sobre o Gozo da Mulher, por que Lacan o procurou e o "descobriu" nessas figuras místicas (sustentáculo do mistério)? E não, por exemplo, em poetisas consideradas libertinas?

"A face de Deus suportada pelo gozo feminino" não nos coloca no risco (já que Lacan considerou o risco) de acreditarmos que o gozo Outro (enigmático), do qual as mulheres nada sabem, não é nada mais que um gozo devastação? Da mulher capaz de toda anulação em nome do Um-homem?

Voltemos à Santa Catarina:

As visões do SENHOR se multiplicaram de modo notável e justamente, uma das primeiras aparições lhe causou muita admiração e ganhou fama:

"Sabes, Minha filha, quem tu és e Quem EU Sou? Se chegares saber estas duas coisas será bem-aventurada. Tu és aquela que não é; EU, ao contrário, Sou AQUELE que Sou. Se mantiveres na tua alma essa distinção, o inimigo não poderá te enganar e evitarás todas as suas armadilhas. Não permitirás jamais coisa alguma que seja contrária aos Meus Mandamentos, e obterás sem dificuldade toda graça, toda verdade e toda luz".

O gozo próprio à religião dos mistérios não nos reduziria, as mulheres, àquilo que não é? Muita devoção e nada de sujeito.

Adélia Prado nos interpretaria. Poetisa, neste caso, ironicamente católica, escreveu Festa do corpo de Deus, eis o trecho final:

"Ó mistério, mistério,

suspenso no madeiro

o corpo humano de Deus

É próprio do sexo o ar

que nos faunos velhos surpreendo,

em crianças supostamente pervertidas

e a que chamam dissoluto

Nisto consiste o crime,

em fotografar uma mulher gozando

e dizer: eis a face do pecado."

XIII

"Só que, o que ele aborda, é a causa do seu desejo, que eu designei pelo objeto a. Aí está o ato de amor. Fazer o amor, como o nome indica, é poesia. Mas há um mundo entre a poesia e o ato. O ato de amor, é a perversão polimorfa do macho, isso entre os seres falantes [...] quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica. É isto o que define a ... a o quê? - a mulher justamente, só que A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher, pois - já arrisquei o termo, e por que olharia eu para isso duas vezes? - por sua essência ela não é toda" (LACAN, 1972-73/1985, p.98).

Pois bem, Lacan não se propôs a olhar duas vezes para isso. Arriscou-se e, ao que parece, arriscou-se como um homem de seu tempo.

O que poderia constituir uma interessante articulação entre o amor e a poesia, ao tornar-se circunscrito ao macho, desfaz-se poeticamente. O fazer amor fica a cargo dos seres falantes que se inscrevem como Todos - logo, homens (mesmo que alguns possam ser anatomicamente mulheres). De qualquer modo, o fazer amor fica a cargo do macho.

Mais gritante é a inversão que parece novamente oferecer a mais longa Até (destino) às mulheres. Aqueles seres falantes que se alinham sob a bandeira - mulheres - fundam-se por serem não-todos, uma espécie de essência daqueles que assim surgem declarados/ inscritos/ performados etc... ou seja: se mulher -> não-todo. Alinhar-se sob a bandeira das mulheres = não-todo.

Deste modo, o não-todo deixa de ser uma abertura ou o resultado de operações conjuntistas/ analíticas, que permitem ao sujeito esburacar-se em uma retirada do apelo ao absoluto (o que poderia ser considerado um reduto possível de subversão analítica). O não-todo como destino da bandeira-mulher vem carregado de ideologia, faz escorrer mais uma vez a longa história (uma referência ao termo 'tempo longo' cunhado por Fernand Braudel) da dominação masculina que essencializa as mulheres.

Na citação acima, Lacan fala sobre a não possibilidade do Universal para as mulheres. Ele se referia, é claro, ao prosdiorismo aristotélico. Em seu seminário 18, dois anos antes, já havia feito essa referência e deixado claro por que não há universal para as mulheres:

"[...] toda essa pan-tomima da primeira grande lógica formal está essencialmente ligada à ideia que Aristóteles fazia das mulheres [...] Isso não impede que a única fórmula que ele não teria permissão de pronunciar fosse todas as mulheres." [negrito meu] (Lacan, J. (1971/ 2009, p. 144. Seminário 18)

A lógica aristotélica não permite afirmar Todo para as mulheres. Todo homem é mortal (a universal afirmativa) não encontraria seu equivalente para as mulheres, não seria possível afirmar: Toda mulher é mortal. Justificativa ideológica: o que Aristóteles pensava sobre as mulheres (que eram histéricas? Certamente). Um excelente exemplo do uso da ideologia travestida de lógica.

Beauvoir (1949/2016) deixara claro "a ideia que Aristóteles fazia das mulheres': "A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades [...] Devemos considerar o caráter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural" (Aristóteles, Apud. BEAUVOIR, p. 12)

A partir dessa "deficiência natural", da "carência de qualidades" ou da histeria (portadoras de útero - hystera), podemos justificar a impossibilidade de dizer Toda para as mulheres?

Beauvoir fez, outrossim, outras preciosas ponderações. Diante da pergunta formulada: o que é uma mulher? coloca-nos: "Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade" (p.11), "A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele [...] O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem" (p.12) e, para concluir: "O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro" (p. 13).

Ao concordar com Aristóteles, em um apelo, neste ponto, com disfarces de estrutura (para não dizer essencialista), Lacan não teria feito exatamente o que Beauvoir denunciara? Afinal, o não-todo (a mulher) é o Outro, não pensável sem o homem (é não-toda fálica, ou seja, não sem o falo). O Sujeito, absoluto (Todo) é o homem. Basta lermos os termos como estão distribuídos na escrita das fórmulas da sexuação.

Lacan parece ter lido o texto de Beauvoir, de 1949. Algo do que ela postulou explicita-se nos Seminários tardios daquele, mas, com o caráter crítico retirado:

"Não há mulher senão excluída pela natureza das coisas que é a natureza das palavras, e temos que dizer que se há algo de que elas mesmas se lamentam por hora, é mesmo disto - simplesmente, elas não sabem o que dizem, é toda a diferença que há entre elas e eu [...] por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar [...] Vocês notarão que eu disse suplementar. Se eu tivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no todo" (LACAN, 1972-73/1985, p. 99)

Mais ainda, Beauvoir, comentando um trecho de Levinás, mostra a nós psicanalistas a fonte da qual Lacan bebeu para afirmar o que acabamos de ler. Vejamos um trecho (já destacado em outro texto):

"O sexo não é uma diferença específica qualquer [...] Não é também a dualidade de dois termos complementares, porque esses dois termos complementares supõem um todo preexistente... A alteridade realiza-se no feminino." [negrito meu](Levinas, Apud. Beauvoir, 1949, p.13)

Se fossem complementares cairíamos no Todo. O gozo da mulher (essa alteridade) é suplementar. Lacan parece concordar mais com Levinás do que com a crítica que Beauvoir fez àquele (novamente):

"Suponho que Levinas não esquece que a mulher é igualmente consciência de si. Mas é impressionante que adote deliberadamente um ponto de vista de homem sem assinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto. Quando escreve que a mulher é mistério, subentende que é mistério para o homem. De modo que essa descrição que se apresenta com intenção objetiva é, na realidade, uma afirmação do privilégio masculino." (Beauvoir, 1949/ 2016, p.13).

Enfim, continuar a chamar de Homem e Mulher os lados das fórmulas da sexuação propostas por Lacan é perpetuar uma história de longa duração de dominação e falas em forma de monopólio - e, por que não?! - monólogo! (eles sabem o que dizem, sabem dizer, inclusive, sobre as mulheres e, quando assim não o sabem, sabem afirmar que as mulheres são o mistério).

Em uma política que possa dar lugar ao não-todo, por que não deixar lugar para aberturas que reduzam os poderes e deem voz àquelas e (agora sim) àqueles que ficam ideologicamente postos como Outros da história? Sujeitos de fala do não absoluto! 

XII

Imagens sem corpo


Reproduzimos, dentre os dizeres psicanalíticos, aquele que pontua, a respeito do corpo: tem-se um corpo, não se é um corpo de modo algum.

O corpo não é da ordem do ser.

O ter, segundo a psicanálise, relaciona-se à ordem significante, ao valor fálico que bordeia um corpo. Ao incorporar-se, o significante faz corpo-nome (pela via do corpse ). Ou seja, um corpo se faz corpo pela incorporação significante.

Desde as formulações de Freud, um corpo é um corpo-eu/ ego, uma superfície. Consubstancialmente, por seu valor simbólico, é um corpo falante.

Além de seus aspectos imaginário e simbólico, Lacan ainda apontou para um corpo-carne que tantas vezes angustia os sujeitos por sua dimensão real.

Em épocas de eu-empresa, entretanto, os corpos portam um excesso imagético (normalmente fabricado artificialmente)

O ter, quando apropriado pelo discurso capitalista, transforma corpo em mercadoria e comprá-lo (para aqueles que "podem" ou se desdobram por "poder") passa a ser uma ilusão possível.

"Tenho um corpo porque paguei por ele".

Engolido por esse mesmo discurso, reproduzido por revistas de modo, redes de televisão e famosos (de redes sociais) a vender em exagero desesperado suas imagens, o empoderamento (que tem sua origem legítima em lutas próprias de grupos historicamente excluídos e mutilados em relação ao laço social) ganha contornos de cortes de cabelo, mudanças de look ou forma e os valores dos itens de vestuário e afins utilizados pelos "super poderosos".

Ser dono de seu corpo e vestir (ou não vestir) o que quiser, no consumismo, vira "privilégio" dos que detêm os lugares "influenciadores". Comprar, pagar, vestir, sensualizar, mostrar... imagens, imagens, imagens...

A enxurrada de mensagens dos influenciadores, daqueles que têm voz, permite ecoar, tantas vezes, o pior da precariedade de auto-ajuda. Ajudar as pessoas a assumirem e amarem suas imagens: olhe para você no espelho, veja como é lindx. X mais lindx que existe. Produza-se, ouse, mostre, fotografe, fotografe, fotografe!!!

Uma foto para cada passo que o "sujeito" dá em seu dia. Seguida de postagens ovacionadas por seguidores que praticam a costura da crença na imagem.

Esses imperativos imagéticos que sustentam cada vez mais uma busca por alguma ordem de devoção toda a si, que não passa pelo corpo a corpo, podem trazer algumas reflexões aos psicanalistas: Narciso parecia fazer mais laço (com o "outro eu mesmo" aparecido no reflexo do espelho-pai) do que aqueles da prática da reificação da imagem. Imagem - imagem não parece mais portar um "outro eu". Eu-eu não traria, desta feita, outra ordem de totalização de si?! Esse esforço por manter uma imagem pura, religiosamente cultivada, não teria, paradoxalmente, como consequência, a própria eliminação do corpo?

As imagens atoladas em imagens não seriam, enfim, imagens sem corpos?

XI


O dono do Bahamas tem enviado mensagens por WhatsApp, a sua rede de contatos, apoiando a marcha fascista pró Bolsonaro.
O capitão provinciano, há algum tempo, afirmou que os brasileiros têm "famílias" e que o "turismo gay" não seria aqui bem vindo. Bem vindos seriam aqueles que queiram vir ao Brasil transar com mulheres.
Além do heteropatriarcado caricato, as afirmações de nosso deplorável chefe de Estado e de seus apoiadores (não menos obscenos) igualmente revelam o único lugar que a mulher pode ter naqueles inférteis imaginários, qual seja, de objeto de exploração sexual.
Exploração sexual, pode. Mulher-objeto, logicamente.
É realmente muito interessante como o falso moralismo da elite conservadora e truculenta anda de mãos dadas com o consumo brutal dos seres objetos. Em perfeita harmonia, propriedade privada (um dono de casa de programa), as armas e o assassinato de pobres e pretxs, o anti-feminismo e a homofobia gritantes, um lugar degradante para mulheres (muitas delas menores de idade, afinal, sabemos muito bem a visada do turismo sexual tão frequente no Brasil e em outros países não tão ricos...).O macho adulto branco (supostamente cis) ainda no comando.

X

"Citei anteriormente o comentário resumido de Birstein segundo o qual, conforme Adler, os conflitos internos e suas decorrências são a "triste consequência do preconceito social da superioridade do elemento masculino" - mais precisamente a triste consequência da posição atual da mulher na sociedade e, sobretudo, na ordem familiar. Quando disse, anteriormente, que o conflito sexual, "em sua enorme importância, só parece inteligível como expressão de uma condição social e psíquica geral", isso nos leva a dizer o seguinte, se formos a fundo: que a formação da posição atual da mulher na ordem social e familiar foi, na história humana, o trauma mais geral da humanidade - do qual derivou o sofrimento interior da humanidade em si mesmo" (Otto Gross, p. 124, 1914. In.: Por uma psicanálise revolucionária. Org. Checchia, M.; Souza Jr, P. S.; Lima, R. A. Annablume, 2017).Otto Gross coloca que a posição da mulher na ordem social e familiar constitui o grande trauma da humanidade. Ao mesmo tempo, faz eco à denúncia da "superioridade do elemento masculino" como peça chave para os conflitos sexuais que nos atingem enquanto humanos.Interessante pensar quais os motivos levaram a exclusão dessas ideias e seu silenciamento.
A psicanálise parece precisar da sustentação da superioridade do elemento masculino. Da sustentação mítica do pai.
Pensar o trauma humano como decorrente da violência milenar em relação às mulheres, seria sobremodo subversivo para um(a) psicanalista?Vejamos como essa subversão foi evitada também por Lacan: "É efetivamente isso que escrevo e pelo qual seria fácil, relendo Aristóteles, detectar a relação com a mulher, precisamente identificado por ele com a histérica - o que, aliás, coloca em ótima posição as mulheres de sua época, porque ao menos elas eram estimulantes para os homens -, que lhe permitiu, é um salto, instaurar sua lógica pelo vocábulo pan, panta, em vez de ekastos, para designar a proposição universal afirmativa, bem como a negativa, aliás. Enfim, toda essa pan-tomima da primeira grande lógica formal está essencialmente ligada à ideia que Aristóteles fazia das mulheres (...) Isso não impede que a única fórmula que ele não teria permissão de pronunciar fosse todas as mulheres (Lacan, J. (1971/ 2009, p. 144. Seminário 18).Sabemos das qualificações em falta ressaltadas por Aristóteles acerca das fêmeas. Literalmente: fêmeas são fêmeas por ausência de qualidades.
As mulheres gregas ao menos estimulavam os homens (será?)
Mais ainda, todo homem é mortal (a universal afirmativa) não seria replicável às mulheres. Toda mulher, justifica-se a partir daí, Lacan, isso não existe.
Os psicanalistas não terem notado a desfaçatez da localização dessa fenomenologia, disfarçada de estrutura, é, no mínimo, triste (acompanhando Gross).
O que Aristóteles pensava das mulheres autoriza (com todo o sarcasmo que uma frase como essa pode abarcar) o não há universal do lado da fêmea.
Com um acréscimo (feito por Lacan) de história um tanto posterior, Bíblica, da localização da mulher nas escrituras:
"Nos chamados mandamentos do Decálogo, a mulher é assemelhada aos citados animais, da seguinte forma: Não cobiçarás a mulher do próximo, nem seu boi nem seu asno" (Ibid., p.128).
Pois bem, o explícito deslizar da fêmea ao objeto animal parece falar por si.Outra insensatez, o universal masculino baseado no mito forjado por Freud:
"Daí resulta, por exemplo, que não se pode fundar nada do status do homem, visto pela experiência analítica, senão juntando artificialmente, miticamente , o todohomen com o suposto homem, o pai mítico, de Totem e Tabu, isto é, aquele que é capaz de satisfazer o gozo de todas as mulheres" (Ibid., p. 133).Sim, segundo o mito freudiano, o pai da horda é aquele que goza de todas as mulheres e interdita seus filhos que, em levante, abatem o pai, devoram-no. Lei instaurada, ninguém tocará na mãe.
Continua Lacan:
"É preciso o assassinato do Pai ter constituído - para quem? Para Freud? para seus leitores? (...) É curioso que tenha sido preciso eu esperar este momento para poder formular uma assertiva assim, qual seja, que Totem e Tabu é um produto neurótico, o que é absolutamente incontestável, sem que por isso eu questione, em absoluto, a verdade da construção " (Ibid., p. 150)Pois bem, se por um lado, o que Lacan chama de mulher nas fórmulas da sexuação se justifica, originalmente, pelo modo como Aristóteles lê as mulheres (sem falar da Bíblia, da mulher objeto de troca de Lévi-Strauss ou da mulher uma a uma de Dom Juan), ou seja, a impossibilidade de Toda Mulher não é prova histórica de um trauma humano, mas "estrutura" que impede a universal afirmativa para as fêmeas, por outro, o lado homem, a exceção e seu decorrente universal, justificam-se por um mito neurótico.
Lacan bem nos ensinou que a fantasia neurótica guarda uma verdade (mentirosa). Um dos pontos de uma análise seria, justamente, a travessia dessa verdade fantasmática que faz realidade para o sujeito neurótico.
Por que, então, continuarmos tomando um mito individual e neurótico como estrutura universal? Por que, enfim, devemos "crer" no pai forjado pelo mais caricato papel neurótico?
Se isso é uma fantasia neurótica, não seria interessante simplesmente atravessá-la? Ponderando que, por conta da histórica "superioridade do elemento masculino" e do subjulgado lugar do "elemento feminino" (trauma da humanidade), a tendência neurótica é constituir o pai e tomar a mulher como objeto (como um asno) - mesmo que às vezes disfarçada de valor por enigma ou inefabilidade?

IX

Impasses de alguns "feminismos"

Parece haver alguma contradição entre os feminismos e a sociedade patriarcal-capitalista. Não obstante, em se tratando de algumas apresentações do feminismo, será mesmo que o paradoxo se sustenta?
Dizer-se feminista entrou na moda e na roda para parte da elite. Divulgado por revistas (de moda) e pela grande mídia (a mesma capaz de derrubar presidentas), o feminismo bem comportado e, por isso, guardião dos mais caros valores da sociedade conservadora (valores machistas, portanto), parece apenas enfeite, ornamento ou qualquer termo bastante ordinário na boca do sistema. O feminismo de revistinha faz cócegas e provoca risos no capitalismo. Está longe, portanto, de oferecer qualquer ameaça.
Como a compra de uma peça de roupa em loja de grife, o feminismo bem compõe certos looks, pode andar por aí jogando pétalas e defendendo as "self made Woman", no mais alto grau de individualismo ou nas mais caricatas defesas dos "si mesmos" , das compras, das vestes, das imagens... narcisismos sem fim...
Como item de consumo, oferecido pelo discurso vigente - que traz consigo o pai como ideal, fundamento e sustentação - alguns modos supostos do feminismo podem mesmo bem servir ao capital.
O feminismo enquanto moda, o feminismo de etiqueta, as deturpações do empoderamento (disfarce perfeito para a objetificação da mulher) são modos muito adequados do "feminismo" e , enquanto adequação, servem ao status quo.
Permanecer nas discussões sobre as vestes femininas, defender a mulher "que vai pra cima e se coloca (ou se veste) como quer", seguir o blábláblá da meritocracia e dos artificialismos atrozes aos quais as mulheres se submetem para "melhorar a auto-estima" (para quem?), é permanecer nas mais supérfluas narrativas, tantas vezes ditadas por olhares masculinos (ou paternos).
Inclusive o "meu corpo, minhas regras", tão fundamental para impor o devido respeito às mulheres, quando vestido pelo discurso individualista-consumista, costuma trazer as mais explícitas figuras apropriadas ao imaginário masculino. O "fazer-desejar" pela via do objeto (próprio à dança dos afetos e das relações), não se confunde com os feminismos. Muito menos a exaltação do objeto exclusivamente para o homem. Quantas são as vezes que "a mulher poderosa" só serve à manutenção do poder masculino. A mulher desejante é algo bastante diferente disso. E o fazer-se de objeto tem lugares interessantes, em diversas configurações e parcerias sexuais (não precisa recair, sempre, na figura social da mulher-item-de-consumo).
É óbvio que não se deve justificar qualquer conduta violenta e desrespeitosa dos homens a partir de qualquer dado colocado nas mulheres. Ou seja, não devemos interrogar a violência contra as mulheres a partir das mulheres, mas, sim, devemos interrogar e proibir o agressor (as interrogações sobre eventuais ambivalências singulares ficam por conta da escuta clínica - da fantasia que pode compor determinadas cenas, mas isso não interessa ao público. E, mesmo que haja ambivalência, nada justifica a violência). Pois bem, nada justifica a violência (verbal, física ou de qualquer ordem). Procurar nas mulheres (na vítima) as justificativas é, além de um gesto de puro preconceito, um ato decidido de manutenção da ordem social: esse ou aquele fenômeno grotesco e repugnante acontece porque a mulher se veste disso ou daquilo, apanha consentindo etc etc. Estas são violências sociais extremas. Não se trata disso, definitivamente.
Ou seja, a defesa da liberdade de ir e vir, vestir-se, portar-se e fazer o que bem entender com seus corpos, é uma defesa legítima das mulheres (assim como de tantas outras minorias - não em número). Entretanto, essa defesa, disfarçada em cifras, em compras, em ostentações de plásticas, em fotos e mais fotos que pretendem fazer da imagem artificial algo ironicamente mais verdadeiro que qualquer outra, que pretendem fazer o objeto vendável e consumível, o objeto posto em ringues de competição, isso condiz com a sociedade de consumo que o sistema quer manter. Ou seja, esses feminismos de shopping, de "misses" e de livros de auto-ajuda, são órgãos que funcionam muito bem no corpo sarado do capitalismo atual. Nada a temer, portanto. Continuamos seguindo o mestre. Consumo garantido.

VIII


"Estamos habituados a empregar 'masculino' e 'feminino' também como qualidades mentais, e da mesma forma temos transferido a noção de bissexualidade para a vida mental. Assim, dizemos que uma pessoa, seja homem ou mulher, se comporta de modo masculino numa situação e de modo feminino, em outra. Os senhores, porém, logo percebem que isso é apenas ceder à anatomia ou às convenções (...) Quanto mais se afastarem da estreita esfera sexual, mais óbvio se lhes tornará o 'erro de suposição' (...) Se agora os senhores me disserem que esses fatos provam justamente que tanto os homens quanto as mulheres são bissexuais, no sentido psicológico, concluirei que decidiram, na sua mente, a fazer coincidir 'ativo' com 'masculino' e 'passivo' com 'feminino'. Mas advirto-os que não o façam. Parece-me que não serve a nenhum propósito útil e nada acrescenta aos nossos conhecimentos" (Freud, 1933/1996, pp. 115-116)

"Ambos os sexos parecem atravessar da mesma maneira as fases iniciais do desenvolvimento libidinal. Poder-se-ia esperar que, nas meninas, já teria havido algum abrandamento da agressividade na fase sádico-anal, mas não é o caso" (Ibid., p. 118).
"Uma outra questão parece madura para um julgamento no curso dessas pesquisas. Denominamos a força motriz da vida sexual de 'libido'. A vida sexual é denominada pela polaridade masculino-feminino; assim, insinua-se a ideia de considerarmos a relação da libido com essa antítese. Não seria surpreendente se se verificasse ter cada sexualidade sua libido especial, apropriada para si, de forma que um tipo de libido perseguiria as finalidades de uma vida sexual masculina e um outro tipo, as finalidades de uma vida sexual feminina. Mas nada disso procede. Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo" (Ibid., p. 130)
Esses trechos foram cuidadosamente retirados da Conferência Introdutória XXXIII, de Sigmund Freud, acerca da Feminilidade. Neles podemos encontrar asserções interessantes sobre a não necessidade de se agrupar atividade e masculino e passividade e feminino, a equivalência, relativa ao gênero, quanto ao desenvolvimento libidinal e, muito instigante, a clara colocação da libido como indistinta: a libido não é masculina nem feminina!
Parecem passos consideráveis na construção de um corpo teórico não refém da anatomia ou mesmo dos preconceitos de gênero (colocado no pressuposto de uma bissexualidade inata - um dos universais do freudismo).
Não obstante, curiosa e contraditoriamente, o mesmo Freud aparece submergido nas agruras sexistas de seu tempo. No mesmo texto, encontramo-no ainda realizando seus malabarismos para justificar a "inferioridade sexual original" (Ibid., p. 131) das mulheres. Sigamos.
Deficiência genital, inferioridade, exclusividade na castração (os meninos temem a castração ao notar a falta de pênis nas meninas, estas, sim, castradas), trocas de objetos de amor e identificação. AA menina precisaria fazer movimentos extras:
"Com a mudança para a feminilidade, o clitóris deve, total ou parcialmente, transferir sua sensibilidade, e ao mesmo tempo sua importância, para a vagina (...) ao passo que o homem, mais afortunado, só precisa continuar..." (Ibid., p. 119).
A menina precisaria, então, abrir mão da mãe, enquanto objeto e de sua "zona erógeno". Para um "curso normal" do desenvolvimento, a menina precisa passar da mãe para o pai (para sustentar a heteronormatividade que o Édipo masculino naturaliza).
O "Édipo feminino" vem banhado de preconceitos, heteronormatividade e misoginia. Estes sustentados pela tão inflada "inveja do pênis".
"O fato de que as mulheres devem ser consideradas possuidoras de pouco senso de justiça sem dúvida se relaciona à predominância da inveja em sua vida mental (...) Também consideramos as mulheres mais débeis em seus interesses sociais e possuidoras de menos capacidade de sublimar instintos do que os homens (...) um homem nos seus trinta anos, parece-nos um adolescente, um indivíduo não formado, que esperamos faça pleno uso das possibilidades de desenvolvimento que se lhe abrem com a análise. Uma mulher da mesma idade, porém, muitas vezes nos atemoriza com sua rigidez psíquica e imutabilidade (...) não desprezemos, todavia, que uma mulher possa ser uma criatura humana também em outros aspectos" (Ibid., pp. 133-134).lEle, entretanto, alerta-nos:
"Se os senhores rejeitarem essa ideia como fantasiosa e considerarem idée fixe a minha crença na influência da falta de pênis na configuração da feminilidade, estarei, naturalmente, sem apoio" (Ibid., p. 131)
Podemos, portanto, considerar essa crença pura fantasia (como as crenças costumam ser) e desapoiar esse aspecto bastante complicado da psicanálise... uma ideia fixa datada. Freud surge, nessas linhas como adepto do discurso corrente de seu tempo.
Afinal, como conclui o texto:
"Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerente" (Ibid., p. 134).
De fato consultar poetas, talvez principalmente, as poetas, pode ser algo mais constelar e polifônico.De fato, a ciência avançou de modo a não mais impor às mulheres a cessão do clitóris (por sinal bastante mais sensível que o pênis). O órgão sexual feminino, a vulva, não é sem o clitóris (o que não faz das mulheres, ao menos daquelas que assim não se querem identificar, pequenos homenzinhos).
Freud aponta para o futuro. O futuro nos poderia fazer obter maiores esclarecimentos sobre a sexualidade feminina. É certo. Entretanto, discorrendo tanto sobre o Édipo, por que será que não se deteve minimamente na figura de Tirésias?!...

VII

"Essa ideia foi expressa em sua forma mais explícita por E. Levinas em seu ensaio sobre Le Temps et l'Autre. Assim se exprime ele: "Não haveria uma situação em que a alteridade definiria um ser de maneira positiva, como essência? Qual é a alteridade que não entra pura e simplesmente na oposição das duas espécies do mesmo gênero? Penso que o contrário absolutamente contrário, cuja contrariedade não é em nada afetada pela relação que se pode estabelecer entre si e seu correlativo, a contrariedade que permite ao termo permanecer absolutamente outro, é o feminino. O sexo não é uma diferença específica qualquer... A diferença dos sexos não é tampouco uma contradição... Não é também a dualidade de dois termos complementares, porque esses dois termos complementares supõem um todo preexistente... A alteridade realiza-se no feminino. Termo do mesmo quilate, mas de sentido oposto à consciência" (Levinas, Apud. Beauvoir, 1949, p.13)

O trecho de Levinas, destacado por Simone de Beauvoir, em 1949, traz uma referência bastante intrigante sobre os sexos e o lugar de alteridade - de Outro, dado pelos homens às mulheres.

No texto destacado de Levinas, O tempo e o Outro, além da referência à alteridade, encontramos a asserção sobre a não complementariedade entre os sexos e a aproximação do feminino com o Real, o que, muitos anos mais tarde será usado por Lacan nos apanhados fenomenológicos de suas fórmulas da sexuação.

Beauvoir segue tecendo um alerta que, quem sabe, possa valer tanto para Levinas quanto para, mais tarde, Lacan:

"Suponho que Levinas não esquece que a mulher é igualmente consciência de si. Mas é impressionante que adote deliberadamente um ponto de vista de homem sem assinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto. Quando escreve que a mulher é mistério, subentende que é mistério para o homem. De modo que essa descrição que se apresenta com intenção objetiva é, na realidade, uma afirmação do privilégio masculino" (Beauvoir, 1949/ 2016, p.13).

Lacan outrossim colocou o mistério sob o signo da sexualidade feminina.O que quer uma mulher?, já havia perguntado Freud, abrindo o campo psicanalítico ao enigma da sexualidade, feminina.

"A psicologia é incapaz de solucionar o enigma da feminilidade" (Freud, 1933/1996, p.117).

Ou

"Determinada parte disso que nós, homens, chamamos de 'o enigma da mulher', pode, talvez, derivar-se dessa expressão da bissexualidade na vida da mulher" (Ibid., p. 130)

Quando o mistério é colocado como alteridade, mas essa alteridade é vestida pelo gênero, afirmado, mulher, o mistério se faz mistério para um homem (e consequentemente a sexualidade masculina, a ordem fálica, ao invés de apresentar-se pela ordem da falta e da contradição, aparece em sua máscara de consciência).

Se existe, para um psicanalista, alguma ordem de responsabilidade sexual, não seria importante ponderar o quão enigmática é a sexualidade para cada sujeito afetado pelo Real do corpo?

VI

Angela Davis dá ênfase a um termo-mostra: heteropatriarcado. O partriarcado, atualizado e re-criado a partir da expropriação que de algum modo fez coincidir a legião produtora da prole (significado romano do termo proletariado) e as mulheres, enquanto propriedade privada, impõe, por suas leis (que regulam modos de ser), a heteronormatividade, fazendo-a parecer natural ou estrutural.

A mulher objeto de troca, a mulher mercadoria, a mulher desprovida de ordem inteiramente simbólica, essas e outras leituras da mulher, calcadas em supostos universais, fazem girar os pressupostos heterossexuais. As trocas entre mulheres-objeto sustentam o casal heterossexual.

O lugar Outro ou de objeto, como precisamente pontuou Beauvoir, relegado historicamente às mulheres, é um lugar segundo.

O discurso macho faz a mulher existir segundo os critérios mestres. A histórica inferioridade imposta oferece poucas alternativas àqueles que caem diante das narrativas dominantes.

E é evidente que as mulheres negras caem (dupla ou triplamente) ainda mais nesta lógica da alteridades. Se ao conjunto das mulheres, estereotipado por quem bem entende colocar suas regras, é Outro, aquelas que além de designadas como mulheres são, ainda, excluídas por carregarem cor e raça (e, tantas vezes, classe social), em meio a mentes escravocratas, alargam as margens do que socialmente é considerado fora. Grada Kilomba escreveu: Outro do Outro para a mulher negra.

Marielle Franco fez coro a tantas pensadoras, dizendo que o feminismo negro carrega consigo, por suas causas, força e luta, potência de transformação. Se concordamos com a possível dialética lugar-exclusão extrema e lugar-potência, como entrar nessa conversa, repensando pressupostos teóricos e salientando condições críticas que possam desdobrar reflexões em diversos campos? Inclusive o psicanalítico.

Como desajustar esses modos de alteridades? Audre Lorde bem avisou que não se desfaz a casa do mestre com as ferramentas do mestre.

Eis uma dica preciosa.

V

As fórmulas da sexuação propostas por Lacan nos anos 70 abarcam teoria dos conjuntos e topologia. Enquanto proposições lógicas que são, rompem com as lógicas clássicas. Derrogam, efetivamente, princípios destas. Sustentam o modal (lógica modal) e o nodal (enodamento borromeano), a contradição e a suspensão de sentidos cristalizados.

Enquanto aposta clínica (lógica e poética), abrem para a equivocação significante, para o duplo sentido e para o vazio de sentido (o sentido em branco).

Apontando igualmente para seus consubstancias aspectos ético e político, o não-todo surge como um lance constelar que dá dignidade à contingência em oposição direta aos constantes elogios à totalidade e ao absoluto.

Não obstante, acompanham as leituras e feituras das fórmulas fenomenologias bastante datadas.

Lidas sob o viés da narrativa conteudista ou mesmo do não mais dialético apelo a uma estrutura supostamente vazia e universalizaste, com direito a mitos totêmicos e heteropatriarcado explícito, as fórmulas caem nas mais triviais caricaturas do casal Homem (dominante) - Mulher (objeto misterioso).

A exceção necessária, que faz o universal-Todo mostrar-se possível, nos desdobramentos mais maleáveis das contradições significantes, quando vestida de Pai da Horda, reduz-se ao mito sustentáculo do patriarcado, este sim, criado e endossado por Freud.

Diante do Um Pai que goza de todas as mulheres, a heteronormatividade está posta e o lugar das mulheres (sob o risco da violência) passa longe da condição de sujeito desejante.

Por outro lado, designar a mulher como enigma exclusivo do sexo - como se ao homem o mistério da sexualidade não estivesse posto de entrada, reservar ao lado Mulher um empuxo (as mulheres têm algo de loucas!), de sinthoma para o Homem, ou causa de desejo, objeto de fantasia de um Homem (isso quando não se faz a confusão entre objeto causa e objeto masoquista, abjeto etc).

Ou, ainda, sob o slogan "A mulher não existe", passa-se a considera-las, as mulheres, como contáveis, aquelas que são contadas uma a uma (em uma farsa singular, porque feita pelos e para os homens). Estes gestos e designações não permitem sair do falocentrismo. Apenas fazem o disco da história repetir-se. As mulheres são contáveis - são contáveis pela conta do Homem, que, ali, conta por si e para si e para as mulheres quem elas são. Isso não é estrutural, é histórico e ideológico.

Se a psicanálise continuar lendo as fórmulas com as lentes de uma época-macho, o não-todo como abertura do ressoar outra coisa que o sentido continuará encaixotado.

IV

Diz-se, em psicanálise, que desejo é falta.

Em um mundo atropelado pela lógica da mercadoria, a falta é rapidamente traduzida por aquilo que ainda não se tem: uma bolsa carmim, um cheiro novo, um corpo diferente, um tênis incrível, um... O que não se tem, trata-se de comprar.

As imagens supostamente totalizadas, perfeitas, sem furos, sem rugas, sem flacidez, que o discurso das aparências pretende veicular, criam uma noção de beleza radicalmente comprável. Isso fomenta o desejo?
Quer-se isso para fazer desejar?
O primeiro fio branco de cabelo, a primeira marca de expressão, a mínima diferença no corpo são sentidos como um pulo para longe do jogo entre os sexos. Aquelx passa a habitar algum ponto fora de mercado... não se tem mais vez. E a palavra mais execrada passa a valer: velhx! 
Comprar imagens, postá-las em redes sociais, fazer o jogo das aparências (que envolve uma crença cínica naquilo que se pretende veicular, em um movimento assim: sei que não é isso, mas...), enfim, exercitar essa espécie de catalogação à céu aberto, provoca uma série de afetos, por sinal, cultivados ao ar livre. O conhecido ditado sobre o mais verdinho da grama do vizinho, virou pura ditadura dos gramas a mais ou a menos. Além, claro, das granas.
A imagem vista é imediatamente colocada como "desejo": quero isso aí!
Os pedaços fetichizados que compõem um pacote de comércio por vez, a cada novo corpo, a cada nova ... são traduzidos por quereres imagéticos. O fetiche ganha estatuto de laço. O que é interessantemente falso.
Esses quereres parecem estar muito mais próximos de uma vontade de gozo do que da ordem do desejo. Gozar sem limites de uma condição absoluta. O todo revestido de hiper-todo (já que o todo comporta o furo da contradição - o hiper-todo parece querer gozar de um necessário que não depende do possível nem advenha do contingente, ou seja, que pretende abolir o impossível).
Não raro, os objetos eleitos como ícones do desejável são, na sequência do consumo, descartados ou, mais ainda, destruídos.
O garanhão (não por acaso chamado predador) ou o bom moço que sonha conquistar todas as mulheres, uma a uma, não podem, igualmente, abrir mão da fantasia do hiper-todo. 
As inúmeras falas machistas, quase sempre insufladas por forças de grupos, e que permeiam tantas conversas, são as caricaturas mais desenhadas do macho cristalizado em seu lugar de comando. O óbvio ululante é mais fácil de ser demarcado.
Uma frase propagada é que as mulheres são loucas. Isso aparece, inclusive, em Lacan.
Por que não ouvir a "loucura" de quem é calada repetidas vezes?
Feminicídio, violência física, relações abusivas, loucura?
Se são loucas porque são não-todas, sua loucura extrapola o simbólico, a palavra. Loucura inominável?
Loucura por ser designada apenas por objeto ou por ser sintoma para um homem? Existir para um homem? No "desejo" de um homem? Loucura por ser retirada de qualquer condição desejante ou acusada de "homem" ou de "super fálica" caso ouse fazer laço sem considerar a diminuição "natural" que a "cultura" lhe impõe? Loucura e devastação, sem palavras.
Há, entretanto, diversos modos bem comportados de manutenção do status quo. Há diversas formas de calar o que há de voz nos sujeitos. Há diversos modos de colocar o outro como objeto, como um passo para o dejeto.
O ódio de gênero, que tem história em nossa história milenar, faz uma confusão brutal entre fazer-se de objeto causa de desejo (o que não se faz por vontade ou por simples imaginário - afinal a causa remete ao vazio e o desejo à falta - que é estrutural e não comercial) e ser dejeto (ou objeto masoquista).
Despedaçar o outro no sexo, no ato sexual, deixar-se desejar e gozar de partes do corpo do outro, seja elx quem for (em termos de gênero) precisa ser algo dominado pelo consumo?
O que o consumo faz dos acontecimentos entre os corpos? 
Restos sem rostos?...
Parece que vivemos um momento em que pouco se deseja.

III

A afirmação de Kristeva segundo a qual não se pode dizer que existam "mulheres" é radicalmente distinta do aforismo lacaniano: A mulher não existe.
Muito embora Lacan não esteja propriamente criando uma identidade de gênero, ele acaba por identificar o suplemento ao simbólico (suplemento ao gozo fálico) à Mulher, figura não-toda inscrita falicamente e por isso mesmo, contável uma a uma.
A mulher não existe significa que ela é não-toda. E A mulher, toda, passa a pairar como uma espécie de ideal imaginário negociável em sociedades consumistas.
Não existem "mulheres" denuncia, justamente, a produção jurídico-política de particulares a serem representados e legislados.
Se os movimentos feministas precisaram afirmar a categoria "mulher" por sua até então total exclusão do campo político/ público, a seguinte reificação dessa figura, após a construção de conquistas (ainda bastante precárias em muitos países) apenas mantêm problemas identitários. Em sociedades falocentricas e heteronormativas a existência de "mulheres" mantém a distorção, a dominação e a colonização daquelas pelo discurso do macho (seja este propagado por homens ou mulheres).
Em sociedades em que as mulheres pudessem ser tão únicas e singulares quanto o são os homens ali habitantes, tão presentes no espaço político/ público quanto eles, a colagem sexo-mulher poderia ser desfeita em favor da noção de sujeitos. E o que em psicanálise chamamos não-todo, um além da ordem simbólica que, ali então, poderia superar as falácias de gênero, poderia incluir qualquer um que pudesse analiticamente (ética, lógica ou poeticamente) renunciar aos apelos do Absoluto.
Afirmar-se-iam: esse, aquele ou aquele outro e aquele outro sexo quem assim o quiser. 
Se a psicanálise tem uma responsabilidade sexual, pode mesmo levar a sério o fora de série que é o sexualidade e a condição desejante de cada sujeito que adentra a linguagem, lida com o imaginário do corpo e (des)encontra o real.

II

O "humor" do conservador é retumbante. Seu ódio pode sair do armário armado de piadas. Essa espécie de pistola que dispara gargalhadas. Punhal engraçadinho este, que pode chamar negra de macaca, reduzir quilombola à gado e dizer, com o sorriso de quem sabe da cumplicidade dos seus: é brincadeira! Não se pode mais brincar? Não falei por mal!
O que há no chiste, que causa boas (não obstante por vezes embaraçosas) risadas, é justamente o fator surpresa. O inédito pode apontar o absurdo, o ridículo, o extremo, a caricatura, o não-dito, o familiar, o estranho, o fora de sentido, a explosão de sentido, a suspensão do cristalizado, o erótico, o poético.
O que há, então, nesses "bem humorados" hábitos que apenas propagam o óbvio, o já dito, o conhecido, o médio, o fútil, a reificação, a agressividade gratuita (que tanto custa), o tosco, a tradição, o concreto, o pesado?
Sobremaneira chama a atenção a ausência de surpresa no "humor" do conservador. O que faz rir em uma piada machista? Certamente não é o modo novo como a mulher é tomada pelo macho! O que faz rir pode ser mesmo a repetição (infantil - com o perdão da redundância) do mesmo, garantido pela lei que determina que o modus operandi continue operando segundo consta nos autos...

I

Um mil e novecentos votos para a enquete: qual cadela fará mais falta? Com fotos da cadelinha espancada e morta e da vereadora assassinada Marielle Franco. O significante cadela, aplicado constantemente às mulheres, surge mais uma vez em mais um incentivo ao feminicídio, aplicado com a clássica misoginia, acrescido dos não menos habituais racismo, esquerdofobia e lgbtifobia. 
Nosso combo atual de combate às "minorias" que alguns em suposto lugar de "maioria" querem calar. Calem-se cadelas! Dizem "maiorais" que exercitam seus ódios anabolizados.
De quem é essa voz de comando?
Qual comando ancestral tenta fazer da voz das mulheres a voz das loucas, das sem razão e lhes oferecer o silêncio resignado do objeto dejeto que apenas serve de complemento fantasmático para que se mantenha a ordem e o "progresso" do mesmo status quo?
Combinados estratégicos ofertados em momento de repressão e truculência, autorizadas em nome da lei de um caricato pai patrão (e seus súditos filhos - com todas as nuances de vontade de poder que daquela condição brotam): vocês que ousaram tirar parte da população da linha da miséria, que ousaram trazer algumas das verdades escabrosas sobre os governos militares, que ousaram incentivar um movimento negro forte e consciente, que ousaram com uma nova onda do feminismo no Brasil, que ousaram movimentos sociais, movimentos lgbtis, reduzam-se aos seus estados reificados: esse do corpo morto, espancado, esfacelado.
A força bruta que nos cerca e nos permeia, que destroça o periférico, o alheio, o radicalmente outro, que cala expressões com gritos grossos, com bala, com muques e com sádicos risos, pode mesmo transformar o bicho em figura central - por identificação com o que, diga-se de passagem, nada tem em comum com o mundo animal - e, assim, fazer desumanidades com uma cadela no mesmo gesto que transforma uma mulher em quadrúpede. Onde mesmo está o selvagem?
Autorizações dessa ordem permeiam outrossim catálogos de um país continental às voltas com a volta do atraso, do retrógrado, da hipocrisia, do moralismo tosco, isto pelo ressurgimento, ao modo de vingança, do que ficou de sobreaviso. Consideremos, perplexos, a infame e obscena homenagem ao repOLHO ROXO, com a caixa alta fazendo vistas de um dizer sobre o que esperar da lei Maria da Penha. Essa é a Lei com a qual se pretende governar: destruam todo e qualquer indício de Lei (ou território) que proteja aqueles a quem se pretende colonizar (e/ ou exterminar). A negra, o pobre, o índio, a líder comunitária, o homossexual, o trans, a jovem etc 
Uma Lei - paterna - acima da Lei é extremamente caprichosa em seu visar todo-poderoso. O pode tudo do valentão (leia-se - covarde) vem acompanhado do riso cínico que não sai do canto da sua boca. Tristes espertos esses que zombam da Lei porque dela podem prescindir em nome da Lei. 
E o pai segue salvo. Um pouco mais duro, um pouco mais cheio, um pouco mais... perverso.